Memorial de Suelen Godoy Soares

A trajetória até a UFRGS










Minha trajetória até a UFRGS

Tudo começa na família, uma boa estrutura familiar certamente ajuda um indivíduo em sua trajetória escolar e, ou, acadêmica. Também outros fatores podem estar diretamente relacionados, como a própria força de vontade e a esperança de mudar de vida através da educação, entre outras motivações individuais.
Nasci em uma família humilde meu pai é caminhoneiro e minha mãe dona de casa. Meu pai não terminou o ensino fundamental e minha mãe estudou até o antigo ginásio atualmente conhecido como ensino médio. Tenho três irmãs mais velhas e nenhuma concluiu algum curso superior, no máximo cursaram alguns semestres de uma Universidade privada e logo depois acabaram trancando o curso. Meu pai nunca teve condições financeiras para pagar o ensino superior de minhas irmãs, logo, não fugi desta realidade.
Minha mãe engravidou de mim aos 40 anos, foi uma gravidez de risco. Minha diferença de idade com a irmã mais nova é de 14 anos. Naquela época os estudos não seriam prioridade para minhas irmãs e meus pais, o trabalho era fundamental para a sobrevivência da família.
Quando iniciei minha vida escolar, minha mãe optou por uma escola pública que ficava perto da minha casa, mas esta só funcionava até a 4º série. Lembro-me até hoje qual era nossa brincadeira favorita durante o recreio (era brincar de polícia e ladrão, eu sempre era da polícia...). Hoje me pergunto por que a escolha desta brincadeira? Percebo que o local onde moro, desde a infância, influencia em alguns aspectos a vida escolar de muitas crianças, inclusive a minha. A violência já estava presente em nosso cotidiano, e como criança acabava reproduzindo este cenário; principalmente na escola onde era o local de maior integração com outras crianças. Eu morava em Viamão, no bairro Santa Isabel; que é chamado de Vila Santa Isabel, nunca escutei alguém falar bairro Santa Isabel sempre ouvia as pessoas se referirem a este como vila. Um costume que carrego comigo até hoje, o qual só percebo quando estou fora de Viamão, é chamar meu bairro de vila. Parece pejorativo quando estou fora dele, já percebi em várias ocasiões, que quando falo vila surge uma certa discriminação. Fico um pouco constrangida quando pessoas me perguntam onde moro, pois geralmente relacionam Viamão com um lugar longe de tudo e de todos. Sempre me perguntam em que parada de Viamão você mora? Explico que em Viamão você mora em paradas de ônibus como referência, ou em Vilas, ou no centro de Viamão. Parece estranho, mas é assim que relacionamos as localidades. O pior, são Vilas que trazem consigo um característica mais “pesada”, seria na vila que a criminalidade impera, onde o descaso social é maior, e onde há um maior número de pessoas ocupando uma mesma região. Infelizmente, a minha vila se encaixa nesse quadro social. Várias vezes a violência esteve presente em meu cotidiano, inúmeras vezes invadiram minha casa para furtar coisas banais, como: botijão de gás, roupas do varal, pássaros de estimação, qualquer coisa que estivesse exposta e fosse moeda de troca para os ladrões; sem falar das tentativas mais ousadas de arrombamento em minha casa. Morar em local assim é complicado, aprendemos desde cedo a cuidar qualquer tipo de movimentação suspeita, e nunca esquecer de trancar-se em casa e verificar se algo de valor ficou no pátio, senão podem entrar e levar.
Eu estudava à tarde nesta escola, e logo após chegar em casa, ia direto para a rua brincar com meus vizinhos. Todos os dias durante toda a minha infância. Geralmente as brincadeiras eram com bola, talvez daí meu interesse pela Ed. Física. Brincávamos de bruxa (um corria atrás dos outros com a bola, tentado acertar a vítima e se acertasse, este seria a próxima bruxa, geralmente brigávamos a tardinha pegando o começo da noite, pois era mais emocionante); também brincávamos de superstars do momento, geralmente as meninas, inclusive eu, dançávamos na frente de casa imitando o grupo de dança É o Tchan, Bonde do Tigrão ou Chiquititas, brincávamos de andar de bike, e o máximo da brincadeira era dar uma volta na quadra sem os pais saberem, também brincavamos de guerra: guerra de sinamomos, guerra de fundas, guerra de pedrinhas e guerra de arminha de pressão e essa doía muito.
Minha mãe preocupada com meu comportamento ameaçava colocar-me em uma “escola de freiras” caso eu não mudasse minha conduta, só porque eu era “maloqueira” e vivia na casa dos vizinhos, de acordo com o ponto de vista dela. Hoje eu até concordo com ela neste aspecto. Por estar mais tempo na rua do que dentro de casa minha mãe vivia brigando comigo, e eu era muito revoltada, não queria ficar em casa mesmo, pois eu achava chato e ficava sem ter o que fazer, meu pai sempre estava longe de casa, minhas irmãs também e só restava eu e minha mãe, a rua era mais divertida e isso ela não entendia. Hoje percebo que se tivesse um filho que ficasse mais tempo na rua do que em casa, eu iria me sentir frustrada, e iria xingá-lo da mesma forma que a minha mãe me xingou, mas tentaria ocupar mais meu filho, e fazer-me mais presente na vida dele. A minha maior ocupação era a escola, e eu adorava ela, pois as professoras eram legais, e eu brincava muito, também gostava de participar das atividades que a escola oferecia como, ensaios para o desfile de 7 de setembro e algumas feiras.
Quando terminei o ensino fundamental, minha mãe cumpriu a promessa e me colocou em uma escola com princípios religiosos. Meu mundo caiu, odiei aquela escola, tive que me adaptar aos uniformes, as regras da escola que eu não conhecia; aos colegas nada receptivos, as aulas que agora eram divididas em períodos, e o número diverso de professores e matérias. Quase entrei em crise existencial... Minha adaptação foi muito difícil, primeiramente eu não tinha muitos amigos, só andava com meninos, as meninas não eram muito receptivas nos primeiros meses. Depois que fui aceita pela turma, só queria fazer bagunça e não gostava de estudar, eu era muito rebelde sempre acabava na monitoria. Estudei nesta escola até a 6º série. Depois fui sorteada para estudar no Colégio de Aplicação da UFRGS, fiquei muito feliz e minha mãe mais ainda, tive a sensação de que quanto mais eu avançava na escola maior ficava a distância de casa, pois agora eu precisava sair da vila para estudar, e isso nunca havia passado pela minha cabeça
Quando ingressei no Aplicação foi um momento marcante em minha vida pois eu ia à escola de ônibus sozinha, e para Porto Alegre, isso era o máximo para mim, sem contar que eu passaria longe de casa o dia todo em alguns dias da semana, pois o turno da escola era integral.
No começa a adaptação também foi difícil, pois quando eu falava onde morava em Viamão parecia que as pessoas me isolavam, não bastando isso tive muitas dificuldades na aprendizagem, principalmente na matéria de português e matemática, senti que entrei despreparada e com pouca bagagem de conhecimento. Minha sorte foi que a escola oferecia à tarde laboratórios de ensino, os quais me ajudaram muito nessa fase.
Quando comecei o 1º ano do ensino médio tudo mudou, comecei a me envolver com um grupo de adolescentes que tinham uma vida parecida com a minha, todos moravam na região metropolitana, exceto dois colegas que moravam em Porto Alegre. O que tínhamos em comum? Não usávamos as roupas da moda, não íamos de ônibus escolar e muito menos nossos pais nos levavam à escola; éramos mais um grupo ou tribo de alunos da escola. Éramos encarados como a ala da periferia, gostávamos de sair da escola e matar aula por matar, ficar batendo papo, contar vantagens e histórias da vida que presenciávamos, era uma espécie de união da malandragem, muitas vezes nos uníamos e um começava a cantar algum rap, e todos acompanhavam, também andávamos de skate na escola e na frente da escola no horário de aula.
Como o critério de seleção é sorteio os adolescentes eram de classes sociais diversas, mas predominava a classe média alta. A diversidade e a exclusão andavam juntas. A escola dava muita liberdade aos alunos e muitas vezes era monótona e cansativa, por exigir turno integral (manhã e tarde).
Meus amigos eram denominados como “maloqueiros” e considerados como “chinelos”, era clara a discriminação e olhar dos professores e coordenação pedagógica que nos tratava diferente, ou com mais atenção algumas vezes. Meus colegas tinham alguns problemas de aprendizagem, faltas excessivas e desvios de conduta.
Um problema social me marcou bastante, eu pude presenciar de perto o seu estrago na vida de um jovem. As drogas na escola.
O consumo de drogas rolava solto nos arredores do colégio. Infelizmente meus colegas passavam mais tempo na fora do que dentro das salas de aula, e eu seguia meu grupo até certo ponto.
Nunca quis repetir o ano, e quando eu percebia que ia repetir eu dava um jeito e me esforçava conseguindo passar na média. Sempre foi assim, nunca estudei efetivamente, nunca tive motivação.
No 3º ano eu havia percebido que três colegas meus já não estavam mais estudando, e os motivos foram às drogas e a constante repetência. Outros dois repetiram o ano por desinteresse.
No final eu olhei para trás e percebi a trajetória dos meus semelhantes e vi que nada do que eles fizeram valeu a pena, não chegaram a lugar nenhum apenas atrasaram suas vidas. Hoje eu sei que a maioria deu a volta por cima, mas sei que não deve ter sido fácil, uns procuraram ajuda médica, outros familiar, e um eu não sei que fim levou...
Fiquei feliz por mim, consegui amadurecer e tentar mudar minha realidade. Nunca pensei em fazer faculdade, minha família nunca me incentivou a isso, e nessa trajetória escolar tive sérios problemas familiares que muitas vezes me atrapalhavam e me puxavam para outros caminhos. Mas no final fui forte, fiz por mim mesma. No meu último ano escolar eu estudava e trabalhava não pensava em fazer nem vestibular. Mesmo minha escola sendo da UFRGS, não sentia efetivamente um incentivo ao ingresso na faculdade, nem testes vocacionais foram feitos, hoje fico triste em lembrar, pois talvez eu tivesse estudado mais se me mostrassem outros caminhos ali na escola mesmo.
Minha formatura foi marcante para mim, pois só assim meu pai voltou a falar comigo depois de quase um ano.
Começou então outra fase em minha vida, a busca por um emprego. Com 17 para 18 anos, pouca experiência, sem curso de línguas ou informática é difícil conseguir alguma coisa hoje. Procurei tanto que desisti, um dia pensei em fazer um curso técnico, só não sabia do que.
Acompanhei minha irmã em uma clínica de fisioterapia sem nenhum compromisso e me chamou a atenção os procedimentos de cada tratamento, descobri que existia um curso técnico de auxiliar de fisioterapia que era necessário para trabalhar naquela função. O curso não era caro, o que motivou a fazer e o tempo também era curto (três meses) incluindo um estágio de 250h prático sem remuneração e muita exploração da clínica conveniada. Concluído meu curso, fui distribuindo currículos pela cidade, mas nada de oportunidades. Logo depois descobri que o curso era “frio”, não me dava direito de trabalhar naquela função de acordo com o conselho de fisioterapia. Acabei perdendo tempo e dinheiro neste caminho. Em compensação fiquei apaixonada pela área de Fisioterapia, tive a certeza de que seria está a profissão que me completaria.
Quase na metade do ao de 2006, entendi que era necessário ter um curso superior para ser reconhecida diante a sociedade e ter um bom emprego. Detalhe, ter um bom emprego, mas sem garantia de estabilidade.
Conversando com meu pai, disse que gostaria de fazer uma faculdade de Fisioterapia, a principio ele aprovou a idéia, mas quando soube o valor descartou a hipótese. Tentei uma bolsa no pro uni, sem sucesso. Minhas irmãs foram totalmente contra minha escolha, e não facilitaram nada o meu lado com meus pais. Foi difícil, mas nessa hora percebi que não deveria depender de ninguém senão não chegaria a lugar algum.
Comecei a pensar e tentar solucionar meus problemas. Lembrei-me que uma amiga me disse que Fisioterapia era parecido com Ed.Física em algumas cadeiras. Logo pensei em fazer Ed. Física, mas igual meu pai não ia pagar e minha mãe era totalmente contra este curso, por não conhecer a área de atuação do profissional. Então pensei em fazer um curso superior sem depender deles, a solução foi a UFRGS. Vendo uma amiga minha passar na UFRGS, tentei me espelhar nela, e sentia que minha família ficou orgulhosa demais por ela, depositaram certa expectativa em mim, foi mais uma comparação de que ela era melhor do que eu, por passar eu não. Sinceramente achei impossível passar na UFRGS, mas era a minha única salvação. Um filme passou em minha cabeça, lembrei do tempo de escola, que não havia aprendido muita coisa, que fiz o vestibular de 2006 e fui muito mal, estava totalmente despreparada. Um detalhe sobre meu último dia de provas do vestibular 2006, foi engraçado, depois que sai da prova, com a certeza que não tinha passado e a sensação de estar perdida sem rumo, sem saber o que fazer dali para frente, comecei a andar pela rua, em uma direção que eu não havia certeza se iria chegar ao meu destino ou não. De repente eu dou de cara com uma placa dizendo: Coloca - se cartas e búzios!Parei, pensei, fiz um minuto de silêncio decidindo se entrava ou não nessa casa. Já estava sem rumo mesmo, nunca tinha ido nessas coisas, nem sabia se eu acreditava ou não, entrei. Lembro-me que era perto do horário do meio-dia, e a cartomante não queria me atender. Eu estava indo embora e ela me chamou de volta. Ela me disse várias coisas que eu sinceramente não acreditei, e disse que era para eu estudar que eu ia me dar bem.
Fui embora com a mesma sensação que entrei, sem respostas e ainda mais confusa, estudar o que?
Continuando de quando descobri que a UFRGS era minha salvação... Eu sabia que daquela vez não poderia entrar despreparada na prova, então fui pesquisar alguns cursos pré-vestibulares. Todos eram muito caros, isso me desiludiu um pouco, naquela época eu não sabia que existiam cursos pré-vestibulares gratuitos. Mas enfim, lembrei-me que no último ano de escola eu havia participado de um concurso para escolha da capa da agenda de 2006. Fiz um desenho insinuando uma sátira à escola, naquela época eu adorava grafites e todas as formas de cultura relacionadas ao estilo hip- hop, que é um movimento social o qual envolve, dança (break), música (rap, hip-hop etc..), arte (grafite) e cultura (geralmente relacionada com a periferia). Meu desenho não foi o escolhido, mas só pela participação eu ganhei um bilhete de meia bolsa em um curso pré-vestibular. Na hora eu não dei bola, até ia jogar fora aquele papel, mas acabei guardando no fundo de uma gaveta. Lembrei-me desse bilhete, encontrei-o e depois fui ver as condições de pagamento, com essa meia bolsa ficou bem acessível e mais uma vez fui conversar com meu pai. Senti que essa era uma oportunidade única em minha vida e depois de muitas brigas em família consegui a ajuda de meu pai para pagar o curso pré-vestibular. Sinceramente ninguém de minha família acreditava em meu potencial, nem mesmo os amigos ou conhecidos, muitos pensavam que essa era uma desculpa para passar o tempo, achavam que eu não levaria a serio.
A bolsa só era válida para o turno da tarde, e eu aceitei, foquei-me em meu objetivo entrava muda e saia calada das aulas, prestava atenção em todos os macetes e em casa eu me focava nos exercícios.
Minha rotina era na parte da manhã estudar, à tarde curso e à noite estudar. Apenas no domingo eu relaxava um pouco, este dia era dedicado ao Grêmio e ao chimarrão com os amigos. Lembro que os finais de semana eram complicados para estudar, pois minha família é grande todos moram na mesma casa, o barulho era intenso e não sentia nenhuma consideração dos meus familiares para com meus estudos. Muitas vezes eu brigava em casa por esses motivos e isso me dava mais vontade de querer passar na UFRGS.Apesar de tudo, eu consegui! Fiz o vestibular de 2007 e passei para 2007/2 no curso de Ed.Física Licenciatura . O dia em que recebi a notícia foi um dos dias mais felizes de minha vida, pois consegui fazer todas as pessoas ao meu redor me reconhecer e de certa forma me respeitar mais, pois agora sou uma universitária e a única da família que sonhou mais alto até então.

2 comentários:

Anônimo disse...

Parabéns Su, venceu, e espero que vença até o final da vida!!!

Que Deus possa te guardar e te abençoar sempre!



Deus te abençoe!

Anônimo disse...

Por onde anda?