A ÚLTIMA NAU
Levando a bordo El-Rei Dom Sebastião,
E erguendo, como um nome, alto, o pendão
Do Império,
Foi-se a última nau, ao sol aziago
Erma, e entre choros de ancia e de presago
Mystério.
Não voltou mais. A que ilha indescoberta
Aportou? Volverá da sorte incerta
Que teve?
Deus guarda o corpo e a forma do futuro,
Mas Sua luz projecta-o, sonho escuro
E breve.
Ah, quanto mais ao povo a alma falta,
Mais a minh'alma atlântica se exalta
E entorna,
E em mim, num mar que não tem tempo ou 'spaço,
Vejo entre a cerração teu vulto baço
Que torna.
Não sei a hora, mas sei que há a hora,
Demore-a Deus, chame-lhe a alma embora
Mystério.
Surges ao sol em mim, e a névoa finda:
A mesma, e trazes o pendão ainda
Do Império.
Fernando Pessoa
EMBARCANDO NA NAU
O poema A Última Nau de Fernando Pessoa, permite o inicio do desvelar de minha trajetória e a explicitação dos caminhos que trilhei. D. Sebastião ao sair para uma viagem que não teria volta e que iria modificar o rumo de muitas vidas e histórias, fato esse narrado no poema, permite fazer invariavelmente, analogia com a minha caminhada profissional e a viagem que faço a partir de meu ingresso em 1995 na antiga Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (FEBEM), quando ainda era aluno do curso de História na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
Em 1995 comecei a trabalhar no já extinto Instituto Central de Menores[1] (ICM), posteriormente conhecido como “Casa dos Horrores”, devido ao número de rebeliões e mortes ocorridas em seu interior. Foi neste ambiente inóspito que comecei a conhecer e a lidar com a incerteza e o medo. Como nunca tive contato com uma instituição prisional, a estrutura física, a organização e, principalmente, os olhares surpreenderam e impactaram. Por mais que eu tenha ouvido falar, jamais imaginaria que havia um presídio para menores, pois era isso que o ICM , de fato, representava.
Após passar por tantos portões, por inúmeros monitores com um olhar inquiridor, fui apresentado a chefia do departamento que definiria para que ala eu seria designado. Pude notar neste momento que a designação da função se dava principalmente pelo porte físico do profissional e para meu azar, como os demais candidatos eram menores do que eu acabei sendo designado para uma ala com adolescentes com maior comprometimento, que havia cometido delitos mais graves. Ingressavam no ICM os menores que haviam cometido um ou mais de um delito, dentre: homicídio, latrocínio, estupro e roubo. O aprendizado que tive nesta época, até hoje me ajuda a valorizar a liberdade.
Atualmente trabalho na Fundação de Atendimento Sócio-Educativo do Rio Grande do Sul (FASE/RS) fundação que após a divisão da extinta Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (FEBEM) em outras duas fundações, ficou responsável pelos adolescentes que cometem ato infracional. Tento repassar o que aprendi nestas experiências para meus colegas e para aos adolescentes. No antigo ICM, a escola era a válvula de escape dos adolescentes, pois muitas vezes era para suas professoras que estes adolescentes confidenciavam situações cotidianas, familiares ou, até mesmo, situações de conflitos. Trabalhei durante três anos como monitor contratado emergencialmente e ao término deste período tive meu contrato rescindido. Após essa incursão na FEBEM, minha vida jamais retornou ao que era, aprendi muito, comecei a valorizar coisas que antes eu não valorizava... como D. Sebastião após o embarque na Nau, a minha vida nunca mais voltou a ser a mesma.
ADENTRANDO NUM MAR DE INCERTEZAS
Trabalhei em outras instituições como, por exemplo: o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômicos (DIEESE), instituto que calcula o custo da cesta básica e o custo de vida; e o Tribunal de Justiça. Até chegar ao ano de 2002 e, finalmente desembarcar no porto de uma escola de educação especial, adentrando num mar de incertezas, pois tudo o que eu conhecia sobre síndromes e deficiências, resumia-se a visitas esporádicas a um amigo que tinha um irmão com Síndrome de Down.
Quando fui entregar a documentação exigida pela Fundação de Articulação e Desenvolvimento de Políticas Públicas para PPDs (Pesssoas Portadoras de deficiências) e PPAHs (Pessoas Portadoras de Altas Habilidades) no Rio Grande do Sul (FADERS) para o cargo de monitor e me candidatar à vaga, fui questionado se eu conhecia a Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS), pois havia vaga para monitor com e sem conhecimento da LIBRAS. Então perguntei para a servidora que preenchia a ficha, o que vinha a ser LIBRAS, porque não sabia o que era. Fui inscrito na vaga de monitor sem conhecimento de LIBRAS e a vaga para a qual fui selecionado era para uma escola de educação especial com crianças com deficiência mental. Foi um susto no inicio, pois jamais havia pensado em trabalhar com deficientes, meu trabalho na FEBEM era com infratores como já disse. Mas aos poucos as situações de estranhamento inicial foram sendo minimizadas.
Após alguns dias de capacitação na FADERS, visitamos todas as unidades atendidas pela instituição, e aos poucos fui percebendo quem eram os sujeitos atendidos pela escola especial. Estas visitas serviam para que os recém contratados pudessem conhecer a FADERS e se familiarizar com suas ações. O último centro visitado foi à escola especial para a qual fui designado e lá chegando, fui muito bem recebido por todos os profissionais. Neste dia não havia alunos na escola, pois estava acontecendo uma reunião docente.
O primeiro dia de trabalho foi o que mais me surpreendeu, pois os alunos agiam como se já me conhecessem há muito tempo, e para mim, ali estava o diferencial, pois recebi abraços, cumprimentos, vários vieram conversar comigo, me convidaram para brincar com eles e neste contato inicial desmistifiquei muitos conceitos que tinha em relação à pessoa com deficiência e posso afirmar que em nenhum outro local de trabalho eu fui recepcionado daquela maneira. Quando meus amigos me questionavam sobre meu emprego, a primeira pergunta que faziam era sobre o comportamento dos alunos. Queriam saber se eles eram agitados demais, agressivos demais... e eu explicava que não, que eram muitas vezes dóceis e carinhosos o que extrapolava os estereótipos da deficiência amplamente divulgados. Sei que nem todas as pessoas com deficiência mental são dóceis e cordatas, no entanto, esta não foi à realidade encontrada nesta escola a qual estive vinculado. Aos poucos fui estabelecendo um vínculo afetivo tão grande com a escola e mesmo após o meu afastamento profissional, sempre que possível eu visitava esta escola até o seu encerramento no inicio de 2009, pois a FADERS repassou esta escola para a Secretaria Estadual de Educação e a mesma encaminhou os alunos e alguns professores e funcionários para a Escola de Educação Especial Renascença.
Aprendi a olhar o mundo de outra maneira, sendo mais autêntico, mais espontâneo, me despindo de preconceitos, valorizando as pequenas coisas que antes eu não valorizava. Um ano após sair da escola, meu pai sofreu um acidente vascular cerebral (AVC) ficando com o lado esquerdo paralisado e os conhecimentos adquiridos na experiência com a escola especial permitiram com que eu interagisse com ele viabilizando um pouco mais de qualidade de vida. Passei a ter uma pessoa com limitações dentro de casa, mas também com possibilidades e aos poucos, pude ver o quanto às pessoas (amigos e parentes) acabam se afastando por não conseguirem lidar com pessoas fora da ‘norma’, fora do padrão estabelecido como normal. Meu pai perdeu apenas alguns movimentos, mas para muitas pessoas parece que isso é contagioso. Levo sempre que possível meu pai para todos os lugares e quando saía com os alunos da escola especial para alguma saída externa, notava que muitos não tinham o hábito de andar em elevadores, não se familiarizavam com a escada rolante, alguns alunos simplesmente não saiam para outros lugares que não fosse à escola ou à casa de algum parente.
Ao sair para atividades externas com os alunos da escola especial percebi que e as pessoas olhavam com estranhamento e medo para eles, da mesma forma que meus amigos faziam com meu pai, não sabiam como lidar, como agir com eles. Acabando por se afastar. Mas havia pessoas que interagiam com eles, que conversavam e brincavam com as crianças e os jovens com deficiência mental, e nesses momentos eu podia vislumbrar ações inclusivas. Vejo que as pessoas têm dificuldade em mudar a visão estereotipada da deficiência e a escola e a família tem ajudado na manutenção desta posição, na medida em que reproduzem uma visão determinista da sociedade, pois classificam os alunos em mais e menos inteligentes, entre aqueles que podem ou não podem aprender, aqueles que devem estar em uma escola especial e aqueles que devem estar em uma escola inclusiva.
Devido a estas classificações surge a exclusão não só de alunos com deficiência, mas de todos aqueles que não se encaixam em um padrão idealizado e são esses padrões pré-estabelecidos que perpetuam os estereótipos e influenciam a prática pedagógica escolar, reforçando o fracasso e remetendo para o indivíduo a responsabilidade por este insucesso.
Em 2008, como tive que realizar meu estágio curricular do Curso de Pedagogia pensei que seria oportuno realizá-lo nesta escola especial, pois fazia cinco anos que eu havia saído da escola para trabalhar na FASE. Essa experiência foi muito significativa, mas em alguns momentos frustrante, pois reencontrei alunos que em 2003 estavam em uma determinada turma e continuavam nesta mesma turma cinco anos depois, não havia progressão ou avanços no processo de aprendizagem desses sujeitos. Fiquei pensando sobre a minha prática...
O poema A Última Nau de Fernando Pessoa, permite o inicio do desvelar de minha trajetória e a explicitação dos caminhos que trilhei. D. Sebastião ao sair para uma viagem que não teria volta e que iria modificar o rumo de muitas vidas e histórias, fato esse narrado no poema, permite fazer invariavelmente, analogia com a minha caminhada profissional e a viagem que faço a partir de meu ingresso em 1995 na antiga Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (FEBEM), quando ainda era aluno do curso de História na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
Em 1995 comecei a trabalhar no já extinto Instituto Central de Menores[1] (ICM), posteriormente conhecido como “Casa dos Horrores”, devido ao número de rebeliões e mortes ocorridas em seu interior. Foi neste ambiente inóspito que comecei a conhecer e a lidar com a incerteza e o medo. Como nunca tive contato com uma instituição prisional, a estrutura física, a organização e, principalmente, os olhares surpreenderam e impactaram. Por mais que eu tenha ouvido falar, jamais imaginaria que havia um presídio para menores, pois era isso que o ICM , de fato, representava.
Após passar por tantos portões, por inúmeros monitores com um olhar inquiridor, fui apresentado a chefia do departamento que definiria para que ala eu seria designado. Pude notar neste momento que a designação da função se dava principalmente pelo porte físico do profissional e para meu azar, como os demais candidatos eram menores do que eu acabei sendo designado para uma ala com adolescentes com maior comprometimento, que havia cometido delitos mais graves. Ingressavam no ICM os menores que haviam cometido um ou mais de um delito, dentre: homicídio, latrocínio, estupro e roubo. O aprendizado que tive nesta época, até hoje me ajuda a valorizar a liberdade.
Atualmente trabalho na Fundação de Atendimento Sócio-Educativo do Rio Grande do Sul (FASE/RS) fundação que após a divisão da extinta Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (FEBEM) em outras duas fundações, ficou responsável pelos adolescentes que cometem ato infracional. Tento repassar o que aprendi nestas experiências para meus colegas e para aos adolescentes. No antigo ICM, a escola era a válvula de escape dos adolescentes, pois muitas vezes era para suas professoras que estes adolescentes confidenciavam situações cotidianas, familiares ou, até mesmo, situações de conflitos. Trabalhei durante três anos como monitor contratado emergencialmente e ao término deste período tive meu contrato rescindido. Após essa incursão na FEBEM, minha vida jamais retornou ao que era, aprendi muito, comecei a valorizar coisas que antes eu não valorizava... como D. Sebastião após o embarque na Nau, a minha vida nunca mais voltou a ser a mesma.
ADENTRANDO NUM MAR DE INCERTEZAS
Trabalhei em outras instituições como, por exemplo: o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômicos (DIEESE), instituto que calcula o custo da cesta básica e o custo de vida; e o Tribunal de Justiça. Até chegar ao ano de 2002 e, finalmente desembarcar no porto de uma escola de educação especial, adentrando num mar de incertezas, pois tudo o que eu conhecia sobre síndromes e deficiências, resumia-se a visitas esporádicas a um amigo que tinha um irmão com Síndrome de Down.
Quando fui entregar a documentação exigida pela Fundação de Articulação e Desenvolvimento de Políticas Públicas para PPDs (Pesssoas Portadoras de deficiências) e PPAHs (Pessoas Portadoras de Altas Habilidades) no Rio Grande do Sul (FADERS) para o cargo de monitor e me candidatar à vaga, fui questionado se eu conhecia a Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS), pois havia vaga para monitor com e sem conhecimento da LIBRAS. Então perguntei para a servidora que preenchia a ficha, o que vinha a ser LIBRAS, porque não sabia o que era. Fui inscrito na vaga de monitor sem conhecimento de LIBRAS e a vaga para a qual fui selecionado era para uma escola de educação especial com crianças com deficiência mental. Foi um susto no inicio, pois jamais havia pensado em trabalhar com deficientes, meu trabalho na FEBEM era com infratores como já disse. Mas aos poucos as situações de estranhamento inicial foram sendo minimizadas.
Após alguns dias de capacitação na FADERS, visitamos todas as unidades atendidas pela instituição, e aos poucos fui percebendo quem eram os sujeitos atendidos pela escola especial. Estas visitas serviam para que os recém contratados pudessem conhecer a FADERS e se familiarizar com suas ações. O último centro visitado foi à escola especial para a qual fui designado e lá chegando, fui muito bem recebido por todos os profissionais. Neste dia não havia alunos na escola, pois estava acontecendo uma reunião docente.
O primeiro dia de trabalho foi o que mais me surpreendeu, pois os alunos agiam como se já me conhecessem há muito tempo, e para mim, ali estava o diferencial, pois recebi abraços, cumprimentos, vários vieram conversar comigo, me convidaram para brincar com eles e neste contato inicial desmistifiquei muitos conceitos que tinha em relação à pessoa com deficiência e posso afirmar que em nenhum outro local de trabalho eu fui recepcionado daquela maneira. Quando meus amigos me questionavam sobre meu emprego, a primeira pergunta que faziam era sobre o comportamento dos alunos. Queriam saber se eles eram agitados demais, agressivos demais... e eu explicava que não, que eram muitas vezes dóceis e carinhosos o que extrapolava os estereótipos da deficiência amplamente divulgados. Sei que nem todas as pessoas com deficiência mental são dóceis e cordatas, no entanto, esta não foi à realidade encontrada nesta escola a qual estive vinculado. Aos poucos fui estabelecendo um vínculo afetivo tão grande com a escola e mesmo após o meu afastamento profissional, sempre que possível eu visitava esta escola até o seu encerramento no inicio de 2009, pois a FADERS repassou esta escola para a Secretaria Estadual de Educação e a mesma encaminhou os alunos e alguns professores e funcionários para a Escola de Educação Especial Renascença.
Aprendi a olhar o mundo de outra maneira, sendo mais autêntico, mais espontâneo, me despindo de preconceitos, valorizando as pequenas coisas que antes eu não valorizava. Um ano após sair da escola, meu pai sofreu um acidente vascular cerebral (AVC) ficando com o lado esquerdo paralisado e os conhecimentos adquiridos na experiência com a escola especial permitiram com que eu interagisse com ele viabilizando um pouco mais de qualidade de vida. Passei a ter uma pessoa com limitações dentro de casa, mas também com possibilidades e aos poucos, pude ver o quanto às pessoas (amigos e parentes) acabam se afastando por não conseguirem lidar com pessoas fora da ‘norma’, fora do padrão estabelecido como normal. Meu pai perdeu apenas alguns movimentos, mas para muitas pessoas parece que isso é contagioso. Levo sempre que possível meu pai para todos os lugares e quando saía com os alunos da escola especial para alguma saída externa, notava que muitos não tinham o hábito de andar em elevadores, não se familiarizavam com a escada rolante, alguns alunos simplesmente não saiam para outros lugares que não fosse à escola ou à casa de algum parente.
Ao sair para atividades externas com os alunos da escola especial percebi que e as pessoas olhavam com estranhamento e medo para eles, da mesma forma que meus amigos faziam com meu pai, não sabiam como lidar, como agir com eles. Acabando por se afastar. Mas havia pessoas que interagiam com eles, que conversavam e brincavam com as crianças e os jovens com deficiência mental, e nesses momentos eu podia vislumbrar ações inclusivas. Vejo que as pessoas têm dificuldade em mudar a visão estereotipada da deficiência e a escola e a família tem ajudado na manutenção desta posição, na medida em que reproduzem uma visão determinista da sociedade, pois classificam os alunos em mais e menos inteligentes, entre aqueles que podem ou não podem aprender, aqueles que devem estar em uma escola especial e aqueles que devem estar em uma escola inclusiva.
Devido a estas classificações surge a exclusão não só de alunos com deficiência, mas de todos aqueles que não se encaixam em um padrão idealizado e são esses padrões pré-estabelecidos que perpetuam os estereótipos e influenciam a prática pedagógica escolar, reforçando o fracasso e remetendo para o indivíduo a responsabilidade por este insucesso.
Em 2008, como tive que realizar meu estágio curricular do Curso de Pedagogia pensei que seria oportuno realizá-lo nesta escola especial, pois fazia cinco anos que eu havia saído da escola para trabalhar na FASE. Essa experiência foi muito significativa, mas em alguns momentos frustrante, pois reencontrei alunos que em 2003 estavam em uma determinada turma e continuavam nesta mesma turma cinco anos depois, não havia progressão ou avanços no processo de aprendizagem desses sujeitos. Fiquei pensando sobre a minha prática...
Tenho medo de escrever. É tão perigoso. Quem tentou, sabe. Perigo de mexer no que está oculto – e o mundo não está à tona, está oculto em suas raízes submersas em profundidades do mar. Para escrever tenho que me colocar no vazio. Neste vazio é que existo intuitivamente. Mas é um vazio terrivelmente perigoso: dele arranco sangue... Escrever é uma pedra lançada no poço fundo.
(Clarice Lispector)
Talvez esta passagem do livro Um sopro de vida, de Clarisse Lispector, seja a que melhor retrata os dilemas experienciados por mim durante o período de estágio. O medo pelo qual os alunos passaram frente à escrita, muitas vezes a impossibilidade dessa escrita e as dificuldades que eu, estagiário, passei por sentir-me despreparado para muitas das questões da prática docente sobre as quais a academia sequer discutiu no currículo normal de forma aprofundada se constituíram em desassossegos.
A exceção de uma disciplina que abordou, ainda que de forma introdutória, mas nem por isso, superficial, a temática da educação de pessoas com necessidade educacionais especiais eu não tive nenhum preparo para a realidade de sala de aula com alunos com necessidades educacionais especiais.
Meus alunos tinham medo de escrever, de errar, medo de se arriscar. Um deles, o José (nome fictício) quando eu olhava para ele, já pegava a borracha e apagava o que estava fazendo, sem mesmo me deixar ler. Durante o período de estágio pude observar o valor que a escrita tem na escola e o que ela representa para estes alunos, os preconceitos e os rótulos aos quais eles são expostos (preguiçosos, burros, débeis mentais), entre tantos outros que fazem com que a escrita pareça um objetivo inalcançável para estes sujeitos. E sei que esta não é uma realidade apenas da escola especial, na verdade há ainda uma superior valoração da escrita na escola, muitas vezes em detrimento de outras possibilidades de intervenção pedagógica...
A CONSTRUÇÃO DE UM IMPÉRIO UNIVERSAL
Retomo o poema cujas duas últimas estrofes remetem ao possível/esperado regresso de D. Sebastião, que o poeta diz ser certo, embora não saiba quando. E que, D. Sebastião, ao regressar vem ainda com a determinação de construir um império universal (não material, mas do espírito). E faço analogia com a inclusão escolar como uma construção, não de um império, mas de uma sociedade que respeita as diferenças.
Ao me aproximar da conclusão deste memorial, procuro não idealizar um final de percurso e sim as expectativas de um processo. Escrevo que este texto não tem a pretensão de ser verdade, mas sim produzir algumas inquietações na forma de pensar e agir sobre a instituição escolar.
Será necessário, então, retomar alguns pontos desta trajetória e, ao mesmo tempo, alguns questionamentos que me fizeram companhia durante estes anos de aprendizado.
Lembro de minhas experiências nas instituições escolares, o começo no Colégio Farroupilha em meados dos anos 80 (eu era o único negro da turma e nem conhecia este discurso de diferença, de minorias), o Curso Unificado (idem), o Curso de História na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), na Faculdade Porto Alegrense (FAPA), tempo e espaço de angústias e de inquietações, de vislumbramentos e também de criação.
Retomo minha passagem profissional em uma escola de educação especial e o meu trabalho na FASE que me ajudaram a problematizar a categoria “diferença” e, conseqüentemente, a lógica normalidade/anormalidade. Entender o que vem a ser esta idéia de diferença, de alguém em relação ao outro é apenas continuidade do processo. Leituras como: Foucault, Freire, Morin e Charlot foram essenciais para o aprendizado contribuíram para que eu pudesse ir formando meu referencial teórico que permitiu pensar que devemos entender a nós mesmos e nos reconhecermos como sujeitos do processo educacional, antes de querermos entender o outro.
Reconhecer que somos seres inacabados; que não existe fracasso escolar, mas pessoas em situação de fracasso; que o fracasso é algo bem mais abrangente que somente o sujeito; que para Foucault a norma está associada ao campo médico e psiquiátrico far-se-ão necessário no futuro.
A exceção de uma disciplina que abordou, ainda que de forma introdutória, mas nem por isso, superficial, a temática da educação de pessoas com necessidade educacionais especiais eu não tive nenhum preparo para a realidade de sala de aula com alunos com necessidades educacionais especiais.
Meus alunos tinham medo de escrever, de errar, medo de se arriscar. Um deles, o José (nome fictício) quando eu olhava para ele, já pegava a borracha e apagava o que estava fazendo, sem mesmo me deixar ler. Durante o período de estágio pude observar o valor que a escrita tem na escola e o que ela representa para estes alunos, os preconceitos e os rótulos aos quais eles são expostos (preguiçosos, burros, débeis mentais), entre tantos outros que fazem com que a escrita pareça um objetivo inalcançável para estes sujeitos. E sei que esta não é uma realidade apenas da escola especial, na verdade há ainda uma superior valoração da escrita na escola, muitas vezes em detrimento de outras possibilidades de intervenção pedagógica...
A CONSTRUÇÃO DE UM IMPÉRIO UNIVERSAL
Retomo o poema cujas duas últimas estrofes remetem ao possível/esperado regresso de D. Sebastião, que o poeta diz ser certo, embora não saiba quando. E que, D. Sebastião, ao regressar vem ainda com a determinação de construir um império universal (não material, mas do espírito). E faço analogia com a inclusão escolar como uma construção, não de um império, mas de uma sociedade que respeita as diferenças.
Ao me aproximar da conclusão deste memorial, procuro não idealizar um final de percurso e sim as expectativas de um processo. Escrevo que este texto não tem a pretensão de ser verdade, mas sim produzir algumas inquietações na forma de pensar e agir sobre a instituição escolar.
Será necessário, então, retomar alguns pontos desta trajetória e, ao mesmo tempo, alguns questionamentos que me fizeram companhia durante estes anos de aprendizado.
Lembro de minhas experiências nas instituições escolares, o começo no Colégio Farroupilha em meados dos anos 80 (eu era o único negro da turma e nem conhecia este discurso de diferença, de minorias), o Curso Unificado (idem), o Curso de História na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), na Faculdade Porto Alegrense (FAPA), tempo e espaço de angústias e de inquietações, de vislumbramentos e também de criação.
Retomo minha passagem profissional em uma escola de educação especial e o meu trabalho na FASE que me ajudaram a problematizar a categoria “diferença” e, conseqüentemente, a lógica normalidade/anormalidade. Entender o que vem a ser esta idéia de diferença, de alguém em relação ao outro é apenas continuidade do processo. Leituras como: Foucault, Freire, Morin e Charlot foram essenciais para o aprendizado contribuíram para que eu pudesse ir formando meu referencial teórico que permitiu pensar que devemos entender a nós mesmos e nos reconhecermos como sujeitos do processo educacional, antes de querermos entender o outro.
Reconhecer que somos seres inacabados; que não existe fracasso escolar, mas pessoas em situação de fracasso; que o fracasso é algo bem mais abrangente que somente o sujeito; que para Foucault a norma está associada ao campo médico e psiquiátrico far-se-ão necessário no futuro.
O que mata um jardim não é mesmo alguma ausência, nem abandono... O que mata um jardim é esse olhar vazio, de quem por ele passa indiferente. (Mário Quintana)
Chego então à conclusão de que não poderia ficar calado a estas questões, ser indiferente com a diferença, ser cego, surdo, insensível ao diferente, por isso concordo com Quintana e espero tornar meu olhar mais sensível às questões trazidas até aqui.
REFERÊNCIAS
BAPTISTA, Claudio Roberto (Org.); Inclusão e escolarização : múltiplas perspectivas. Porto Alegre: Mediação, 2006.
BAPTISTA, Cláudio Roberto; CAIADO, Kátia Regina Moreno; JESUS, Denise Meyrelles de (orgs.). Educação especial: diálogo e pluralidade. Porto Alegre: Editora Medicação, 2008.
MANTOAN, Maria Tereza Eglér. Inclusão escolar: o que é? Por quê? como fazer? São Paulo: Plexus Editora, 2003.
Pintura a óleo de Carlos Alberto Santos.
QUINTANA, Mário. A cor do invisível. 2ª Edição. Porto Alegre: Editora Globo,1989.
REFERÊNCIAS
BAPTISTA, Claudio Roberto (Org.); Inclusão e escolarização : múltiplas perspectivas. Porto Alegre: Mediação, 2006.
BAPTISTA, Cláudio Roberto; CAIADO, Kátia Regina Moreno; JESUS, Denise Meyrelles de (orgs.). Educação especial: diálogo e pluralidade. Porto Alegre: Editora Medicação, 2008.
MANTOAN, Maria Tereza Eglér. Inclusão escolar: o que é? Por quê? como fazer? São Paulo: Plexus Editora, 2003.
Pintura a óleo de Carlos Alberto Santos.
QUINTANA, Mário. A cor do invisível. 2ª Edição. Porto Alegre: Editora Globo,1989.
[1] Unidade da extinta Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (FEBEM/RS)
Um comentário:
Parabéns Marco, pela sensibilidade do texto. Por meio dele, somos capazes de percorrer os caminhos apresentados. Fraterno abraço, Maria Ester do Nascimento.
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