Memorial de Maíra Teixeira Cordeiro

Procurando Superar...
Sou filha única. Nasci de pais deficientes visuais: mãe com baixa visão e pai cego total. Eu também tenho baixa visão, enxergo aproximadamente, 20% da visão de alguém sem nenhum problema nos olhos quando estou usando óculos. .
Cresci na Cohab-A de Gravataí. Era um bairro popular, mas que tinha o mínimo de infra-estrutura para os moradores. Por precisar trabalhar, minha mãe me pôs na escola aos dois anos de idade. De início, já demonstrei interesse e facilidade. No meu primeiro ano de escola, meus pais se separaram mas, mesmo morando com minha mãe, eu nunca perdi contato com meu pai pois ele passou a morar no mesmo pátio em que morávamos (mas em outra casa) após constatar que não daria certo voltar a morar na casa de meus avós. A separação foi tranqüila para mim também porque meus pais davam-se bem, continuaram amigos mesmo depois de separados.
Meus dois primeiros anos de escola foram tranqüilos. Mas o preço da mensalidade mais o do transporte ficaram pesados e minha mãe teve de me trocar de escola. Eu não consegui me adaptar a esse segundo colégio. Como não havia lugar certo para cada um se sentar na sala de aula, eu geralmente ficava longe demais do quadro para enxergá-lo. Também me incomodavam as mesinhas redondas que geralmente forçam alguns alunos a se sentarem de costas para o quadro. Eu não conseguia acompanhar as aulas. Dava graças a Deus quando a professora dava as lições em folhas de ofício. Mas eu era muito pequena. Não conseguia compreender o que estava me atrapalhando muito menos expressar. Quando passou um pouco da metade do ano eu comecei a pedir todos os dias para não ir para a escola. Eu passava as manhãs com uma vizinha que cuidava de mim e a tarde ia para a escola. De início, a vizinha relutava em me deixar ficar em casa, mas logo ela cedeu e minha mãe deu o aval. Elas entenderam que eu tinha dificuldades.
Alugamos então um apartamento na vila dos Bancários (Porto Alegre) e nos mudamos para lá. Queríamos morar perto do Instituto Santa Luzia, escola especializada em deficientes visuais, para que eu pudesse estudar nesse colégio sem ter de ficar internada lá. O Santa Luzia aceitava alunos em regime regular, internato ou semi-internato (turno integral). A última foi a opção da minha mãe.
Foi complicado. Embora eu estivesse conseguindo acompanhar bem as aulas de manhã, as tardes que eu passava na escola eram muito maçantes, pois não havia nenhuma atividade para os alunos do semi-internato no turno inverso ao da sua aula regular. Sem contar na diferença que as freiras da escola faziam entre os alunos que pagavam a mensalidade e os bolsistas como eu. Assim foi o meu ano de pré-escola. No ano seguinte continuei na mesma escola, mas na opção regular.O problema da diferença de tratamento persistiu. Passava as tardes em casa com minha avó, que morava comigo e minha mãe no apartamento. Durante os dois anos em que morei lá, ia visitar meu pai em Gravataí de quinze em quinze dias nos finais de semana.
O aluguel começou a ficar pesado. Resolvemos voltar para nossa casa em Gravataí, que não havíamos vendido. Fui estudar então em uma escola pública das redondezas. Foi muito melhor do que as duas anteriores. Tanto os colegas quanto os professores me compreenderam bem e tentavam fazer de tudo para me ajudar. Fiquei muito amiga de um menino que havia estudado comigo na minha segunda escola também e voltara a ser meu colega. Ele me visitava de tardezinha quase todos os dias depois da escola. Nós nos dávamos muito bem.
Estudei durante dois anos naquela escola. Mas abriu mais perto da minha casa uma outra escola pública onde teria também o Ensino Médio. Como havia poucas escolas por perto com Ensino Médio, minha mãe resolveu me colocar naquela escola logo, pois assim asseguraria uma vaga para mim na continuação dos meus estudos perto de casa.
Comecei então na minha época da quarta série a fazer curso de informática. Eu adorava aquilo! Meus pais não entendiam nada disso, mas achavam que valia a pena investir em mim. Conheci na escola uma menina um pouco mais velha que eu que se tornou minha amiga..
Minhe mãe logo ficou amiga da mãe dela. Elas tinham uma família muito complicada. O pai dela já era falecido e ela tinha uma irmã mais velha, já adolescente que (minha amiga e sua mãe nos disseram) ter um problema forte no coração.
Houve uma vez em que a irmã da minha amiga teve de ser internada. A minha mãe insistiu para ir visitá-la no hospital. Depois da insistência, a mãe da minha amiga deixou minha mãe ir com ela. Chegando lá, minha mãe teve uma surpresa: na realidade a garota havia ido ganhar um filho! Minha mãe ficou chateada com a mentira, mas perdoou.
Elas duas não saíam nunca lá de casa. Até a metade da quinta série mais ou menos minha amiga e eu andávamos juntas na escola. A partir da metade da quinta série, porém começamos a andar num grupo eu, ela, o meu já citado amigo da escola antierior (que também havia trocado de colégio) e a Camila, uma outra colega. Se não me engano, antes de terminar a quinta série, eu e a Camila já havíamos nos afastado dos outros dois colegas, pois eles não eram muito estudiosos e eu e a Camila éramos muito preocupadas com essas coisas.
Mas a minha colega, apesar do afastamento, nunca deixou de ir e voltar da escola comigo. A mãe dela passava quase o dia inteiro lá em casa. Minha mãe não se importava mas eu já não estava mais gostando daquilo, embora também não conseguisse dizer isso para ninguém.
Eu e Camila andávamos juntas na escola, quando o professor escrevia algo no quadro que eu não conseguia ler, ela ditava para mim. Quando fazíamos algum trabalho juntas, geralmente era o melhor de toda a turma. Na sexta série descobri que adorava história, tinha um professor muito bom. Na sétima, descobri que adorava escrever. Tinha uma professora que nos ensinou muito sobre redação.
Meu pai se mudou dos fundos do meu pátio para uma casa alugada lá perto. A minha mãe convidou a minha colega da qual eu havia me afastado e sua mãe para morarem na antiga casa de meu pai, pois elas estavam tendo problemas de relacionamento com o cunhado da minha colega, pai da sobrinha dela.
Eu achava um saco! Primeiro a minha colega começou a andar com a Elisabete, uma menina legal que ia sempre lá para a casa dela. Depois... Bem, vou contar depois.
Saí da Informática e resolvi fazer o curso de Inglês. Era legal. Nessa época eu já estava na oitava série. A Camila estava se afastando de mim. Comecei a sentir inquietações muito fortes. Eu sempre falei sozinha, mas agora estava muito pior, eu falava quase o tempo todo! Isso causava risos e deboches dos colegas na escola. Foi nessa época que comecei a fazer análise.
No primeiro ano eu sofri bastante, não tinha mais amigos na escola. O que amenizava um pouco isso é que eu havia conseguido um aparelhinho ótico chamado telelupa que me possibilitava ler do quadro sem precisar de ajuda. Mas ser sozinha dói muito. Fiquei doente no meio do ano. Minha avó morreu de repente. Não dormia a noite, ficava acordada tentando refletir sobre os meus problemas e sempre chegava a conclusão de que não havia solução. Cheguei a pensar em suicídio! Apenas não o cometi por ter medo de sentir muita dor e não conseguir morrer. De manhã, nunca tinha ânimo para as aulas. Às vezes dormia debruçada sobre a classe durante a aula inteira. Tive convulsões no início do ano, descobri que tinha epilepsia e ainda não tinha conseguido me adaptar ao tratamento. Fui reprovada aquele ano. Isso me deixou profundamente decepcionada comigo mesma. Perdi no meu próprio jogo. Falhei na coisa que eu achei que fazia melhor. Na minha festa de quinze anos, em novembro, a minha colega levou uns amigos drogaditos dela de penetra na festa. Foi a gota D’água! Ela já andava levando eles para dentro do nosso pátio, mas aquilo!!! Minha mãe pediu que ela e a mãe dela saíssem da casa. Elas se mudaram no Natal.
A minha turma do segundo primeiro ano que cursei era bem mais legal. Consegui melhorar bastante em tudo. Voltei a ser boa aluna e passei a me sentir melhor. Passei a encarar o vestibular como um desafio possível. Mas minha tranqüilidade ainda era entrecortada de momentos de depressão.
O segundo ano transcorreu normalmente. O terceiro também, até julho mais ou menos...
Em julho, quando cheguei das minhas férias de inverno na casa de meus primos em Livramento, minha mãe me contou que o filho da minha psicóloga havia se suicidado! No início o choque não foi tão grande, mas eu ouvi as músicas que o garoto criou em vida (era um compositor genial). Foi muito forte o sentimento. Aquelas músicas expressavam algo que eu já havia sentido: vontade de morrer. Era como se eu revivesse tudo o que eu passei na época mais obscura da minha vida. Até hoje me sinto comovida quando escuto aquelas músicas ou lembro da história.
Fui então para o cursinho pré-vestibular no ano seguinte. Fiz o cursinho no CEUE, na engenharia da UFRGS. Não passei no meu primeiro vestibular, logo que acabei a escola por um tris! Faltaram apenas doze posições para eu passar para Ciências Sociais. Os meus professores de literatura do cursinho eram demais! Me apaixonei por literatura. Resolvi tentar então para Letras. Achei que seria bom também porque eu sempre gostei de ler e, inclusive, lia livros em voz alta para meu pai que é cego total. Passei no Vestiba em 2008.
Sempre fui uma boa aluna na escola onde estudava. Quando entrei na universidade levei um choque! Vi que boa parte dos meus colegas tinha uma cultura geral muito maior do que a minha. A exigência cultural tácita dos alunos da UFRGS é enorme! Isso não é necessariamente ruim, mas muita gente que chega à universidade não teve acesso a tanta cultura. Muitas vezes me senti um tanto quanto deslocada, eu parecia ser a única pessoa do mundo que não sabia tudo aquilo. Tenho tentado não ficar triste, mas sim ir tentando preencher aos poucos as lacunas de minha cultura geral e me dedicar às atividades da Universidade. E olha que isso não é pouca coisa! Mas tem valido muito a pena.

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