Memorial de Tatiane Garrido

Apesar de tudo ela tem sonhos...

“Sempre precisei de um pouco de atenção,
acho que não sei quem sou
só sei do que não gosto” [1]
Os primeiros meses

Me chamo Tatiane, e esse nome foi selecionado de uma enorme lista feita pelos meus pais, onde eles anotavam todos os nomes que gostavam. Minha mãe Noeli e meu pai Raul tiveram três filhos: o primeiro foi o Luciano, que faleceu pouco antes de completar dois anos, ele tinha problemas cardíacos, era uma criança frágil e chorava muito. Onze meses depois da morte do meu irmão nasceu a Luciana. O período da gravidez foi difícil, minha mãe enjoava demais, e se envolvia com muitos problemas familiares.
A Luciana tinha seis anos quando a minha mãe a chamou para avisá - la que ela teria uma irmãzinho (a), e ela desde o início adorou a idéia.
Dessa vez a gravidez foi muito tranquila, sem enjoos e problemas. A família torcia para que nascesse um menino, achando que ele substituiria o Luciano, minha mãe queria uma menina, pois além de saber que o filho nunca seria substituído, tinha a impressão de que se carregasse no ventre uma menina, de alguma forma a mesma já estaria sendo rejeitada pela família.
No dia 12 de outubro de 1987, aos nove meses de gestação, a Luciana foi acordada no meio da madrugada, recebeu o seu presente de dia das crianças e foi levada para a casa da minha avó, onde passaria o próximo dia. Minha mãe foi levada ao hospital Divina Providência, por ser o mais perto de casa, mas lá a médica disse que o bebê era prematuro, e que minha mãe tinha que “deitar o cabelo dali” (foi essa a expressão utilizada pela médica). O próximo hospital a ser procurado foi a Santa Casa de Porto Alegre, que na época era considerado um hospital muito ruim, mas foi lá que acreditaram nas evidências e nos meus pais, e foi lá que no dia 12 de outubro eu nasci. O meu parto foi difícil e demorado, minha mãe conta que preocupou-se pois eu não chorava, foi quando me mostraram para ela, chupando o dedo, então ela tranquilizou-se.

Uma infância feliz e cheia de sonhos...

Tive uma infância muito feliz e não tenho dúvida que fui muito amada pelos meus pais. Cresci no bairro Vila Nova, um lugar relativamente seguro e confortável, por estar longe do centro de Porto Alegre, eu podia brincar na rua com os amigos até tarde sem preocupar os meus pais. Tive diversos bichos de estimação, o que me transformou em alguém que ama muito todos animais. Fui integrante de um Diretório de tradições Gaúchas (DTG), coral e grupo de dança, além de participar de desfiles sempre que podia.

“Voa, voa que a vida é tão boa.
Passa um tempinho à toa
Que eu chego em qualquer
Voa no carrossel da
Pra terra da
Venha comigo voar” [2]
Estudei da primeira à oitava série na escola Pedro Sirângelo, considerada por muitos uma escola ruim, e mesmo assim era comum eu ficar em recuperação.
Quando tive que escolher uma escola para estudar no ensino médio decidi que iria ser professora. Só havia três escolas, que possuíam o curso de magistério, uma delas era noturna, ficava longe da minha casa e em um bairro considerado violento, e como eu tinha quatorze anos, minha mãe não permitiu que eu estudasse lá. A outra escola era localizada no bairro em que eu morava, mas era particular, e meus pais não tinham condições de pagar. A última opção de escola era o Instituto de educação, escola de nome, onde havia uma prova seletiva para os alunos de magistério. Fui conhecer a escola com a minha mãe e odiei o lugar, era horário de recreio, havia uma bagunça e diversos outros detalhes que me fizeram detestar o lugar. Decidi que não queria estudar ali, mas mesmo assim me inscrevi para a prova.
Era dezembro de 2001, eu estava lutando contra a matemática para concluir o ensino fundamental, acabei não estudando nada para a prova do Instituto de Educação. Quando chegou o dia eu estava muito calma, afinal, não queria estudar naquela escola mesmo. Fiz a prova da mesma maneira que respondia a questionários escolares, ao invés de pensar, eu chutava as questões que tinha dúvida ou não sabia. Tive um grande cuidado com a redação, pois gostava muito de escrever, e sabia o valor de um texto bem feito. Após entregar a prova, fui dar uma volta pelo local, havia muitos candidatos e todas as salas estavam cheias.
Depois desse dia passei a ver a escola de uma forma diferente, percebi que queria sim estudar ali, e fiquei arrasada por ter feito a prova com tanto descaso. Senti-me pior ainda quando descobri que a desclassificação me levaria a ser matriculada em algum colégio que houvesse sobra de vagas.
Era janeiro do ano de 2002 e eu estava confiante, acreditando que seria aprovada, mesmo sem ter motivos para isso, algo dentro de mim dizia que eu tinha uma vocação, e que eu deveria acreditar nela, foi quando uma amiga me disse que eu jamais passaria, pois além de não ser inteligente, eu não havia estudado. Isso me desmotivou, pois eu achava que ela tinha razão. Mas achava que se eu tinha mesmo que ser professora, então eu iria passar, não importa como fosse, mas iria ser aprovada.
Em fevereiro recebi uma carta da SEC me parabenizando pela minha aprovação no processo seletivo do curso normal. Fiquei feliz pela conquista e mais ainda por saber que sairia de lá com uma formação.
Foi no primeiro ano do magistério, que talvez por vir de uma escola não muito boa, ou por contestar a forma de ensino de uma determinada professora, eu obtive 5,7 na disciplina da mesma, e acabei repetindo o ano, pois a média era 6,0.

O início das responsabilidades e a fusão entre adolescência e vida adulta...

No ano de 2003 eu passei a estudar mais e consegui tirar boas notas na disciplina em que havia sido reprovada, a maior motivação para o estudo, foi pensar que por não ter passado de ano, eu era muito burra. Nesse mesmo ano consegui o meu primeiro estágio, tinha então 15 anos e muita responsabilidade. Era eu professora de 25 crianças de uma turma de jardim em uma escola do bairro onde morava. As manhãs eram difíceis, e eu não tinha um bom domínio de turma, fato que fazia eu me sentir incompetente demais, talvez por isso eu chorava muito quando estava longe do serviço. Quando o relógio marcava 13:00 eu saía correndo, pois tinha que ir para o colégio, onde estudava muito para não repetir o ano novamente. Tudo o que sabia era que não queria ser professora, mas não achava certo desistir. Uma experiência fracassada não era o suficiente para me fazer abandonar o curso.
Frequentemente o assunto “faculdade” surgia na sala de aula, e eu era a única que não sabia o que queria cursar, eu só sabia o que não queria. Foi nesse mesmo ano que as aulas de teatro se destacaram entre as outras, e eu senti que deveria, e queria cursar Artes cênicas (na época esse era o nome do curso), logo soube que esse curso só havia no “monstro chamado UFRGS”.
No ano de 2005 eu passei a me dedicar mais ao serviço e ao teatro. Foi nesse mesmo ano que comecei a namorar pela primeira vez, e para mim, isso aliviava qualquer problema que eu pudesse ter, talvez por isso eu passei a compreender o mundo das crianças e amar a profissão que exercia, pois aprendi a encarar os problemas e dar a eles o valor que realmente tinham. O André era um cara legal, que apesar de tudo conseguia me entender e aceitava todos os problemas para não entrar em conflito comigo. Hoje vejo que eu amava de uma forma errada, obsessiva demais.
“Se um dia eu pudesse ver meu passado inteiro
e fizesse parar de chover nos primeiros erros“ [3]
Em 2007 eu iniciei o meu estágio obrigatório. Era professora de uma turma complicada, com alunos de oito à quatorze anos, que tinham muitas carências e dificuldades, mas o progresso observado diariamente era muito gratificante. A minha supervisora exigia muito de mim e eu passava todas as tardes e finais de semana ocupada com os planejamentos. As minhas noites estavam livres, e foi então que um grande amigo me falou de um cursinho popular marista que acontecia no colégio Rosário. Achei uma ótima oportunidade, André e eu nos inscrevemos, fomos selecionados e logo começamos a frequentar as aulas. Além de namorados éramos colegas de sala de aula, algo que pra mim era muito bom, pois ele me ajudava nos exercícios de física, matemática e inglês, onde eu apresentava grande dificuldade. Devido ao estágio eu só tinha tempo para estudar nos finais de semana, e isso começava a me preocupar.

Ah...vida real!

No segundo semestre do ano de 2007 pude me dedicar mais ao vestibular. Já estava formada no magistério e então tinha todo o meu tempo dedicado aos estudos, quanto mais eu estudava, mais achava que tinha que estudar. Eu ia a palestras, lia materiais da internet, escutava CD’s de literatura, lia vários jornais, e tudo que fosse fonte de informação eu queria acessar. Muitas vezes achava que não estava preparada, tinha muito medo, mas meus pais e amigos me ajudavam muito.
Em novembro de 2007 descobri que meu namoro de quase três anos estava prestes a acabar, e essa situação me machucou e preocupou muito. Eu colocava o André em um pedestal, e tinha um sentimento que ultrapassava o amor. O fato de saber que iria perdê-lo e justamente naquele momento em que eu tanto precisava dele, quase me enlouqueceu. Faltava um mês para o vestibular e eu não conseguia estudar, estava cansada de ter aulas, de correr atrás dos conteúdos e para completar estava sofrendo demais com essa situação. Apesar de tudo, achamos melhor decidir isso depois do vestibular, mas mesmo assim eu sabia que estava chegando ao fim. Não conversava com ninguém sobre o que estava acontecendo, e sabia que isso me deixava pior ainda.
"Mas é claro que o sol vai voltar amanhã
Mais uma vez eu sei
Escuridão já vi pior de endoidecer gente sã
Espera que o sol já vem“[4]
Passada uma semana dessa notícia que tanto me machucava, eu resolvi ocupar o meu tempo ao máximo, e fazia isso estudando. Eu ficava cerca de dez horas por dia em meio aos livros e cadernos, e aos finais de semana, para relaxar ficava com os amigos, que durante os três anos de namoro eu quase nem procurei. Nessa fase passavam muitas coisas pela minha cabeça, eu pensava em tudo e nada ao mesmo tempo. Eu estava pesando 40 Kg, e só chorava, estudava e sentia medo, e isso começou a preocupar a minha família.
Chegou o dia do vestibular, muito antes do horário da abertura das portas eu já estava na Reitoria. Eu tentava analisar os candidatos, e cada camiseta de cursinhos influentes me apavorava, e deixava mais nervosa ainda.
Eu achava que não estava preparada, mas achava que merecia passar, e pedia isso a Deus todas as noites. A primeira correção foi decepcionante para mim, meu rendimento na prova de português não havia sido muito bom. Decidi que não corrigiria mais nenhuma prova, iria esperar o resultado.
“ Mas ela diz
Que apesar de tudo ela tem sonhos
Ela diz
Que um dia a gente há de ser feliz
Ela diz
Que apesar de tudo ela tem sonhos
Ela diz
Que um dia a gente há de ser feliz
Se Deus quiser.....” [5]
Eu estava na praia, ainda com o meu namorado, aliás, foi nessa viagem que realmente tudo acabou, lembro que era noite e vi em uma propaganda que o listão da UFRGS sairia no próximo dia. No dia seguinte acordei às dez horas e não vi nenhuma chamada no meu celular, fiquei desmotivada, peguei o jornal e me deparei com uma nota que dizia: “UFRGS divulgará o listão dos aprovados ainda hoje.” Ainda me restava uma esperança.
Nesse mesmo dia fomos para Palmares, e eu nem pensava mais no resultado, fiquei longe do celular por muito tempo, e quando lembrei dele, vi que alguns dos meus melhores amigos tinham ligado. Fiquei nervosa e liguei para um deles, e foi ele quem me deu a notícia de que eu havia sido aprovada. No início eu não acreditei, mas devido às outras ligações e mensagens, passei a acreditar no que estava acontecendo.

“O que eu penso à respeito da vida
È que um dia ela vai perguntar,
O que é que eu fiz com meus sonhos
E qual foi o meu jeito de amar
O que é que eu deixei pras pessoas
Que no mundo vão continuar,
Pra que eu não tenha vivido à toa
E que não seja tarde demais.” [6]

Era emoção, felicidade e satisfação. Eu estava pronta, pronta pra fazer o que queria, e pronta pra fazer uma das coisas que pode mudar o mundo. A educação e a arte. Eu era Bixo em Teatro Licenciatura. De toda a minha família, eu fui a primeira oriunda de escola pública a entrar na UFRGS, e isso serviu de exemplo, eu fui a primeira a mostrar que é possível, que a universidade é um direito de todos, e agora, vejo duas primas, também vindas de escola pública que batalham por essa universidade que é pública, mas infelizmente ainda não é popular.
Do fundo do meu coração agradeço a meus amigos e minha família, pois sei que não conseguiria sem eles.
“Nunca deixe que lhe digam que não vale a pena
Acreditar no sonho que se tem
Ou que seus planos nunca vão dar certo
Ou que você nunca vai ser alguém
Tem gente que machuca os outros
Tem gente que não sabe amar
Mas eu sei que um dia a gente aprende
Se você quiser alguém em quem confiar
Confie em si mesmo
Quem acredita sempre alcança” [7]
______________________
[1] Teatro dos vampiros, composição Renato Russo, álbum “como é que se diz eu te amo”.
² Nave verde e amarela, composição Eliana, álbum “Eliana” 1994.
[3] Primeiros erros, composição Kiko Zambianchi, álbum “acústico MTV Capital Inicial”.
[4] Mais uma vez, composição Renato Russo, álbum “Presente”
[5] Janaína, composição Álvaro, Bruno, Coelho, Miguel e Sheik, álbum “biquíni.com.br”
[6] Certas coisas para dizer, composição Jorge Trevisol.
[7] Mais uma vez, composição Renato Russo, álbum “Presente”

Nenhum comentário: