Memorial de Letícia Gomes Farias


Imagens de uma vida
Letícia Gomes Farias [1]

“O além exige a mediação de um aquém. Sem um fundo de invisível, não há forma visível. Sem a angustia do precário não há necessidade do memorial. Os imortais não batem fotos entre si. Deus é luz; somente o homem é fotografo. Com efeito somente aquele que passa e sabe disso quer permanecer.” (Regis Debray, 1994)

O Demônio e a “Menina Pobre”

Sempre achei interessante como as pessoas descrevem seu ingresso no mundo das Artes Visuais.
É quase sempre muito semelhante, nascem em famílias de artistas, ou de pessoas que gostariam de ser artistas. Crescem rodeadas de arte em todas as suas formas e em algum momento descobrem-se irremediavelmente contaminadas pelo ‘fazer arte’.
A primeira pintura que vi, não posso precisar a quanto tempo, nem sequer era uma pintura e sim uma reprodução barata, que só me chamou a atenção, após determinado que teria um fim trágico: seria queimada a coitada, pois segundo a minha tia, abrigava o demônio.
Nunca havia prestado atenção, naquele único ornamento das paredes de minha casa, até saber que nas vestes da menina chorosa, escondia-se ninguém menos que o próprio satanás que a estava devorando.
Lembro-me de olhar por todos os ângulos a tal “Menina Pobre” (suposto título da tela) e ainda assim, não enxergar nenhum capeta. Vi apenas as dobras do tecido, cuidadosamente montadas em uma seqüência de linhas, coberta por camadas de cores escuras em degrade com camadas mais claras.
Presenciei até o último minuto, o triste fim da “Menina Pobre”, na secreta esperança de finalmente ver o capeta levantar-se das chamas.
Naquela semana (que deve em muito ter contribuído para o aquecimento global) vários outros “meninos e meninas ricos ou pobres”, todos do mesmo autor, foram também incinerados.
Somente na minha rua presenciei cinco execuções e para minha decepção em nenhuma vi o capeta.
Desconheço até mesmo o nome do autor da obra que deu origem aquelas reproduções que enfeitavam a casa de quase todo mundo que eu conhecia na época, mas dessa história jamais esqueci.
Depois da interessante convivência com o demônio, que segundo minha tia, morou conosco por anos dentro daquele quadro, minha casa não teve mais ornamentos, nenhum tipo de objeto artístico e talvez por isso me seja tão presente a imagem daquela menina, com as lágrimas escorridas, como que a implorar diante de um trágico fim.
Não tenho dúvidas de que esse foi meu rito de iniciação em arte e foi forte o suficiente para abrir meus olhos e fazer modificar minha maneira de ver todas aquelas reproduções de vida que rodeavam meu cotidiano, em livros, revistas ou mesmo na televisão.
As imagens de minha vida se confundem em minha memória com as imagens que perpassaram meu caminho, às vezes não sei diferenciá-las, visto que ambas foram captadas pela mesma fonte, percebidas pelo mesmo corpo e quando significadas, interagiram na minha noção do real.
Em muitas dessas imagens encontrei lições, lembretes, avisos.
Em muitas encontrei consolo...
Em algumas até me encontrei.
Não sei se escolhi a arte ou fui escolhida por ela, mas ainda procuro, com o mesmo fascínio, em cada objeto artístico o demônio que eu jamais enxerguei.

Um defunto multidões em lágrimas

Sempre fui meio vampiro, gosto quando o sol se põe...
Não gosto de acordar cedo, não gosto das manhãs, nem sequer acho bonito o nascer do sol...
Me doem os olhos, que acometidos pela hipermetropia, insistem em ser sensíveis.
Por mim dormiria de dia e acordaria a noite.
Mas o que fazer, se o horário da escola não concordava comigo?
Dormia o máximo que podia até que alguém resolvesse me chamar e insistir, sem muitas delicadezas, para que eu levantasse.
Gostava da escola, apesar daquele banheiro fétido, que me fazia segurar o xixi até voltar pra casa.
Confesso que não gostava muito dos gritos constantes das professoras e de estar sempre no alto da lista dos mais agredidos pelos colegas. Porque será que sempre que se tem de se eleger um saco de pancadas as meninas tímidas, sensíveis e que tiram boas notas, são as primeiras a serem lembradas?
E também tinha aquela merenda...
A merenda horrorosa continha : leite sabor morango, servido em canecas de plástico azul, nada frágeis, porém muito apegadas a suas camadas de gordura e crostas. Sorte que sabíamos exatamente de que eram as crostas, já que as canecas serviam, invariavelmente, “leite sabor morango”.
A iguaria acompanhava uma porção de bolachas doces que eram entregues de mão em mão. Todos ao dias.
A merendeira ainda se dava ao trabalho de dizer: “Não tem repetição!” Como se alguém fosse querer!
Tá bom, eu não gostava tanto assim da escola.
Pensando bem, eu gostava mesmo era de aprender. Tive a sorte de nascer em uma família que amava livros, herdei o amor pela leitura.
Por isso, mesmo não gostando da escola, nem dos colegas e tendo medo das professoras, aprendi a ler com extrema facilidade.
E ficava triste quando mais algum parente da professora morria (a coitada era de “família morredeira”[2], só o pai dela morreu três vezes em um ano) .
Sempre que se perdia o dia de aula, eu ficava com a cartilha na mão esperando ansiosamente a próxima letra que aprenderíamos, afinal, aprender me permitia decifrar finalmente aqueles códigos mágicos e me tornaria independente para alcançar sozinha o prazer das histórias que minhas tias me contavam antes de dormir.
Porém, naquela manhã específica algo acontecia...
Há tempos eu já fingia que dormia, esperando que alguém, (alguém muito desagradável, claro) fosse me acordar...
Ninguém vinha.
O que de tão importante faziam aquelas mulheres a ponto de permitir que eu me atrasasse e perdesse o dia de aula?
Minha mãe ficaria furiosa.
A pouco ela havia ido a escola, indignada com a declaração da professora de que em dias de chuva não precisávamos ir a aula. Imaginem quantos dias letivos perderíamos no inverno gaúcho!
Agucei os ouvidos ...
Não, nem sequer chovia.
Mas havia ao longe uns gemidos e alguns suspiros.
A voz da minha mãe, minha mãe estava em casa, algo realmente sério acontecera para que ela não fosse trabalhar.
Levantei aos poucos e fiz meu caminho habitual, da cama que dividia com minha vó, até o sofá em frente a TV.
Se algo de sério houvesse, as mulheres não iriam mesmo me contar, me restava ficar ali e tentar descobrir o que havia juntando os pedaços das conversas.
Ninguém me viu entrar, deitar no sofá cama que ainda abrigava as cobertas do meu avô e ligar a televisão.
No primeiro canal nada de Tom e Jerry[3].
Tento de novo, já deve ser hora da Formiga Atômica no outro canal.
Nada, a TV estava estranha.
Todos os canais mostravam uma sucessão de pessoas chorando copiosamente.
Paraliso naquela cena: gente parada em pé chorando, muita gente mesmo...
Em minha casa também todos estavam tristes, minhas tias choravam.
Criei coragem e perguntei o que realmente me interessava, se eu não iria a aula. Alguém respondeu:
“Não minha filha, hoje é feriado nacional.”
Lembro bem de ter pensado quando finalmente a TV mostrou a imagem do caixão rodeado por mulheres de preto: “Puxa, esse tal Tancredo além de fazer toda essa gente chorar ainda tinha de me fazer perder a aula...e justo hoje que nem choveu!

Uma lua cinematográfica

Era uma daquelas semanas em que tudo dava errado.
Aquele homem que ninguém me dizia quem era, mas que havia se mudado para nossa casa implicava comigo o tempo todo.
Eu estava triste, chorava pelos cantos e pedia para minha vó para voltarmos para casa, ou seja, para aquele lugar que por mais de 5 anos eu conheci por meu lar, a casa de minha avó em Bagé.
Minha mãe finalmente tinha conseguido as tais condições para ficar comigo.
Nunca entendi o que eram estas tais condições que ela buscava, mas sabia que deviam ser importantes, pois elas nos separavam há anos. Estavam sempre presentes nas falas de minha vó: “Tua mãe está trabalhando, lutando para ter condições de ficar contigo.”
Agora, com as tais condições tudo parecia diferente do que eu havia sonhado.
Tudo porque eu fazia muitas coisas erradas.
Meu Deus como eu fazia coisas erradas. Descobri isso depois que aquele que eu não sabia pronunciar o nome veio morar conosco e ocupou um lugar que eu não sabia bem ao certo qual era, o de fazer críticas, acho.
Minha mãe nunca me defendeu ou tentou me proteger daquele homem, penso que temia se incomodar, afinal ele era bom o bastante para aceitá-la com uma filha.
Porém naquele dia iniciou-se um ritual que se repetiria muitas vezes.
Eu nem queria ir.
Mas eu precisava ser boa, pois os bons sempre são recompensados no final... Por isso, não importava se minha mãe parecia uma perfeita estranha.
Minha mãe me enfeitou como uma árvore de natal.
Usava fitinhas, chiquinhas, tranças e meus sapatos combinavam com a bolsa de crochê.
Fingia gostar das roupas e até mesmo das odiosas bolsas de crochê.
Fui.
Não sabia onde íamos, mas fui.
Também não gostei quando chegamos.
Era um local todo fechado, com pouca ventilação.
Tínhamos que andar com cuidado, pois estava muito escuro...eu tenho medo do escuro... apertei a mão de minha mãe.
Lá dentro já havia muita gente e todos falavam baixo, cochichavam.
Era difícil não esbarrar nas cadeiras que estavam por toda parte, quem seria tão burro de espalhá-las tanto?
Sentei sob protesto, louca para perguntar quando iríamos embora.
Um ruído estrondoso e meus olhos se arregalaram.
Pela primeira vez em minha vida senti meus pensamentos silenciarem.
O turbilhão que acompanha meu cérebro incessantemente se reduziu até silenciar por completo.
Era como se eu tivesse me apagado, deixado para trás todas as coisas ruins que eu queria esquecer, agora eu fazia parte daquela grande tela.
Era mágico, eu podia viver outra vida.
Sorria sem parar, pois me senti voando junto a eles quando as bicicletas levantaram e cruzaram o céu em frente a mais esplendorosa lua que já vi, era uma sensação diferente. Diferente de ler uma história, diferente de ver algo na TV, era perfeito. Como se realmente fosse eu, cruzando os céus sobre minha bicicleta, salvando a vida de meu amigo alienígena.
Graças à maneira estranha de minha mãe de demonstrar que me amava e de me compensar pelas coisas que ela devia fazer e não fazia, eu descobri que podia ter um amigo alienígena, podia ser outra pessoa...
Podia voar...

Todo o horror de Guernica

Sobrevivei a todos os meus anos de escola, sendo socialmente excluída.
A única negra na escola pública, porém burguesa que minha mãe conseguiu para substituir a escolinha de vila onde fiz o primário; a única que não podia esconder a pobreza.
Quando não se é forte, é melhor não ser muito notado. Passei a me cuidar para não ter notas muito altas e assim não atrair a atenção das outras crianças.
Também passava meus recreios em um lugar ótimo, livre de qualquer ameaça: a biblioteca .
Pode-se pensar em um lugar melhor para passar o recreio quando não se tem dinheiro para freqüentar o concorrido bar da escola?
Era no bar que se se estabeleciam as hierarquias sociais entre os alunos, onde se mostrava o quanto se podia, o quanto se era legal, o quanto se estava na moda.
Eu não era considerada legal e também não tinha as roupas da moda, por isso devorei todos os livros do cantinho da leitura.
Claro, isso me tornava menos popular ainda, mas tudo bem, já que na letra A das prateleiras da biblioteca, descobri a Arte.
Escolhi um livro ao acaso, o mais bonito.
Vermelho, grande, encadernação de luxo, novo, parecia jamais ter sido aberto (provavelmente nunca havia sido).
Abri uma página, esperando encontrar algo lindo no senso comum de belo, o belo platônico. Talvez até algo que eu, uma iniciante pintora de guardanapos pudesse copiar.
Me desesperei com o que vi.
Em tons de cinza e preto, pinceladas regulares e geométricas descreviam seres humanos mutilados, representados em múltiplos ângulos simultaneamente. Tudo era destorcido por um geometrismo que chocou minha noção de arte mimética.
Recorri ao título do livro, tentando entender imagem tão perturbadora:Picasso e Matisse[4].
O nome da obra ali reproduzida: “Guernica”[5].
Fechei o livro, guardei-o na certeza de que não voltaria mais abrí-lo.
Tarde de mais, aquele bichinho matreiro chamado ‘provocação da arte’ já havia me enfeitiçado.
No outro dia, no recreio, corri para a biblioteca e mais uma vez me debrucei sobre aquele livro tentando entender porque motivo aquele senhor careca tão simpático que a foto da contra capa denominava Picasso, representava as pessoas daquela maneira.
Nunca mais parei de tentar entender.
Os anos passaram e meu esconderijo na biblioteca se tornou cada vez mais perfeito: Aquele era sem dúvida um local que não constava no mapa de nenhum adolescente, na verdade, só passar na frente já poderia destruir a reputação de alguém.
Eu com confirmada reputação de NERD[6] (esconder as notas nunca deu muito certo), continuei a devorar livros.
Cheguei até o Expressionismo Abstrato, na prateleira de livros de arte da biblioteca.
Infelizmente esse era o último livro, graças a Deus, também era o último ano.
Minha irmã, que ao contrário de mim, sempre foi um gênio, acabara o curso técnico de contabilidade.
Ela ia ter uma carreira. Todos achavam que ela devia prosseguir os estudos, afinal formará-se com notas máximas, era provavelmente superdotada.
Foi nesse momento que foi me introduzida a idéia de Faculdade.
O gênio, não havia visto em seu curso técnico, as matérias básicas do ensino médio, e só por isso precisou da minha ajuda quando decidiu presta Vestibular.
Em mais uma das intermináveis greves do magistério, dediquei-me a ensinar-lhe, o máximo que podia de matemática, física, química e biologia.
Fiz o Vestibular com ela, só para testar.
Lembro me apenas de uma questão daquele Vestibular no qual fui a primeira colocada para o segundo semestre de Administração de Empresas na UFRGS, na prova de história, 2° guerra Mundial, pedia-se uma interpretação para a reprodução de uma obra de arte: “Guernica de Pablo Picasso”.

O Sorriso amarelo do gato de Alice

Logo ao chegar, andando apressada pela calçada da Osvaldo Aranha, detalhei a paisagem daquele local que me acompanharia por muito tempo.
Observando as diversas árvores, lembrei de uma imagem:
Um gigantesco sorriso amarelo.
O sorriso malicioso e enigmático, era parte de um não menos misterioso gato, que esperava em cima de uma árvore para guiar Alice ao País das Maravilhas...
Tanto eu, quanto Alice chegamos quase sem querer, ela ao “País das Maravilhas” e eu aos portões daquela Universidade.
Também como Alice, eu pensava estar entrando em um local maravilhoso, achava estar abrindo as portas do paraíso.
O gato de sorriso amarelo guiou Letícia, desculpem, Alice por um lugar muito diferente de tudo que ela conhecia.
Naquele lugar, todos corriam de um lado para o outro o tempo todo, na verdade o tempo era pensado de maneira diferente, era dividido como uma corrida de obstáculos. Para controlar a corrida havia uma planilha da qual todos eram escravos, era ela que dizia onde cada um deveria estar a cada hora.
A planilha se chamava “Horário”, não sei se este era seu nome verdadeiro, apelido ou pseudônimo, porém era isto que estava escrito em letras grandes no cabeçalho.
Todos sabiam se comunicar com o Horário, apesar das letras miúdas e dos códigos que só mais tarde o gato traduziu como abreviaturas de determinadas palavras.
Palavras diferentes, naquele lugar se falava uma língua estranha: “entregue a documentação no SAE, faça o requerimento no DECORD, entre com o processo na CONGRAD!
Por trás daquelas palavras escondia-se um monstro malvado que dominava tudo por aquelas bandas. Nada se fazia sem passar pelo monstro.
Teve uma vez que Letícia, desculpem, Alice encolheu e quase foi devorada por esse monstro chamado Burocracia.
O gato era por demais esperto e contava com algumas proteções, por vezes apareciam em seu pescoço peludo guias de Ogum e Iemanjá. Ainda bem, pois assim ele pode conduzi-la por caminhos estreitos e atalhos até que ela começasse a compreender como as coisas funcionavam por ali.
Aquele local era tão diferente de tudo que ela conhecia que ali quem era considerada estranha era ela. Achavam estranhas suas roupas, seu jeito de falar, as coisas que ela não tinha, os lugares que não conhecia e até seu deslumbramento com tudo que estava vivendo era motivo de estranheza para os outros.
Logo ela passou a se sentir sozinha.
Uma solidão nunca dantes experimentada, a solidão de olhar em volta e não ver pessoas como ela. A solidão de caminhar sozinha, lanchar sozinha, estar rodeada de outros e ainda assim estar sozinha.
Um dia o gato que sempre aparecia para tirá-la de alguma encrenca trouxe a novidade:
A rainha de copas que mandava até mesmo no monstro Burocracia, uma tal de Wrana, descobriu que havia intrusos naquele local de excelência e decretou: “Cortem a cabeça!”
Os instrumentos usados foram chamados “Jubilamento e Recusa de Matrícula”.
Letícia (puxa vida, como eu confundo), Alice passou a correr muito perigo.
Não era bem-vinda.
Aquele lugar não era para ela e sim para os que a rainha considerava “escolhidos”, os melhores, os que podiam pagar um tributo chamado “dedicação exclusiva”.
Letícia, ou melhor, Alice não podia pagar o tal tributo.
Exausta, mal agüentava-se sobre as pernas. A viagem aquele lugar estava lhe custando bem mais do que ela esperava.
Não descansava direito, corria de um lugar para o outro o dia todo para satisfazer o tal Horário que se esparramava da manhã até a noite. Comia mal e ainda tinha de viver se escondendo.
“Cortem a cabeça!”
E o gato malandro que tinha a ginga de sambista, rebolava para tirá-la de uma encrenca e de outra...
Até que um dia Alice, digo Letícia, (sei lá tanto faz), começou a crescer.
Quanto mais crescia mais difícil ficava se esconder.
Esconder sua história, suas raízes, sua cultura.
Não, ela não comeu nenhuma frutinha misteriosa, ela apenas começou a se perguntar por que tinha de ser igual.
Com o tempo, começou a descobrir o quanto era importante ser diferente, o quanto tinha a acrescentar com seu gê nê se quá do Morro Santana.
Se descobriu humana, única, singular e genuína.
E principalmente descobriu que aquele gato sambista, malandro, esperto, malicioso, filho de Ogum com Iemanjá, era um reflexo de uma parte de si, que mesmo escondida relegada, continuava de forma viva e vibrante a ajudando a sobreviver naquele local.
Que importa se lhe cortassem a cabeça, ela já sabia quem era e aquele sorriso amarelo agora estava estampado em seu rosto.

O fantasma de Gabriela

Nunca entendi porque ela subiu no telhado, mas a cena me é presente como se acontecesse agora e como se eu fosse um dos transeuntes a observá-la.
Também não podia entender porque uma mulher adulta agia como criança e porque diabos seu vocabulário se resumia ao sofrível: “Seu Nacibe é moço bonito.”
Coitada, pensava eu do auge de minha sabedoria de 9 anos, tem problemas mentais.
Claro, a música já explicava: “Ela nasceu assim, cresceu assim, é mesmo assim, seria sempre assim”...pobre Gabriela!
Mal sabia eu por quantas e quantas vezes o fantasma de Gabriela cruzaria o meu caminho.
Óbvio, a pele parda, os cabelos longos, ondulados e rebeldes, as formas arredondadas que passaram a me acompanhar desde os doze anos....
Muito tive de falar para demonstrar que meu vocabulário ia muito além do “Seu Nacibe é moço bonito”. Via com estranheza a decepção que isso causava em muitos.
Difícil de entender, Gabriela era popular mesmo tendo apenas com cinco palavras na boca, eu que já lia livros de arte e falava sobre a situação política e econômica do país era quase sempre ignorada.
Ou era a exibidinha que entrou na faculdade, ou era a pobretona do morro tentando impressionar, enfim era sempre invisível.
Nisso me assemelhava a Gabriela, era e sempre fui uma retirante.
Alguém de fora, uma intrusa, tanto nas escolas, públicas é bem verdade, porém burguesas que minha mãe conseguia me matricular, quanto na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
A faculdade de Administração de Empresas pesava sobre os meus ombros juntamente com o orgulho de toda a família Farias por ter sua primeira representante em um curso superior.
Já ingressara no mundo adulto e os dramas da casa e da família já não me eram mais poupados.
Um tio ficava desempregado?
Mais um morador para nossa casa, camas apertadas, banheiro ocupado, bife dividido.
Uma tia que ganha nenê?
Fraldas pela casa, choro de madrugada e revezamento para cuidar do pequeno enquanto a mãe trabalhava.
Nada de mais para uma família que começou em Bagé, uma lavadeira, um encanador, sete crianças em um casebre sem banheiro.
Cheguei a conhecer o casebre sem banheiro, portanto, nada de mais para mim.
Nada de roupas, nada do tênis da moda, nada dos materiais escolares caros e enfeitados que eu tanto gostava.
Mas de uma coisa minha mãe, chefe da casa e herdeira natural de todos os problemas da família não abria mão:
Enquanto estudássemos, não trabalharíamos.
Essa era a regra de ouro, indiscutível, custasse o sacrifício que fosse.
Já tinha vinte anos quando pensei em desobedecer a regra.
Sabia que as coisas estavam apertadas demais.
A Universidade estava custando muito para minha mãe, eram muitas passagens, fotocópias, livros, alimentação.
Foi quando o fantasma da Gabriela se apresentou a mim, desta vez, cara a cara.
Nunca havia trabalhado, nada a não ser o serviço doméstico, para o qual minha vó me treinara com dedicação desde a mais tenra idade na esperança de que eu encontrasse um “homem bom” que cuidasse de mim.
Mesmo assim, comecei a sair de manhã bem cedo com meu currículo em baixo do braço. A esperança era que o fato de estar no quarto semestre do curso de Administração de Empresas na UFRGS me abrisse portas, me valesse uma oportunidade.
Após as caminhadas ia para a aula, com fome e bolhas nos pés. Queixava-me desiludida com a única amiga que tinha na Faculdade, foi uma surpresa para mim quando ela me fez uma proposta:
Disse, escolhendo as palavras cuidadosamente que com o meu biotipo, não havia como não ganhar dinheiro, quanto mais sendo Universitária da UFRGS...
Havia sim em mim um pouco de Gabriela, mas não estava no biotipo e sim na ingenuidade, pois demorei algum tempo para entender que estava sendo aliciada a prostituição.
Nunca havia notado como minha colega com uma história de vida tão parecida com a minha, tinha tantas coisas que eu não tinha: carro, roupas caras, viagens...
Sempre acreditei quando ela dizia que havia sido promovida na loja em que trabalhava. Nunca contestei o fato de ela ter tanto tempo livre.
Nunca havia pensado o quanto os estereótipos podem estar em toda parte, nas pessoas, que não são o que parecem ou que não parecem o que são, ou mesmo nos lugares...
Quem diria que eu sairia do morro, onde sempre fui tratada com profundo respeito como a princesa intocada que teria um futuro, para ser aliciada a prostituição dentro da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, um centro de excelência na produção de conhecimento.
Naquele ano, continuei a dividir o melhor par de sapatos que tinha com minha irmã.
Acabei abandonando a Faculdade de Administração de Empresas no 7° semestre.
Não consegui encontrar um jeito de me manter, mas recusei o dela.
Me afastei de minha colega e única amiga.
Sei que ela não nasceu assim, não cresceu assim, não era mesmo assim e não precisava ser sempre assim, mas não soube lidar com o segredo que ela me confidenciou.
Gostaria muito de reencontrá-la.


O fantástico show da vida


Em dez segundos vi os flashes de toda minha vida.
Só imagens.
A banheira que eu tomava banho, meu ursinho de pelúcia, minha primeira bicicleta, o dia em que quase quebrei o dente dando o primeiro beijo, o cartaz que minha irmã fez para mim quando fui aprovada no vestibular...tudo em flashes que passavam em velocidade assustadora, vertiginosa.
Acordei. Abri os olhos e pensei “o que aconteceu?”
A pergunta era retórica, mas meu cérebro é exibido, gosta de mostrar que sabe, respondeu: “Eu cai.”
Caíra mesmo, do alto da escada de minha casa.
Era a primeira vez que eu morava sozinha, por isso eu limpava a casa exaustivamente, como criança que limpa o tênis novo a cada passo dado...limpei tanto que cai, às 2:00 da madrugada, no meio de uma faxina.
A escada era alta, um metro e meio no mínimo, mas tudo bem pois meu braço amorteceu a queda, quer dizer, para ele não ficou tudo bem.
Foi fratura exposta do rádio, com luxação grau três, em termos leigos, separei a mão esquerda do resto do corpo.
No outro dia no Hospital olho no espelho e dou de cara com a Tina Turner.
Os cabelos desgrenhados estavam volumosos como nunca e ainda contavam com ornamentos de grama e folhas ganhados no tempo que passei desmaiada até me socorrerem, os olhos vermelhos de tanto chorar pareciam querer saltar das órbitas, usava uma sainha minúscula (daquelas roupas que agente só usa para fazer faxina em casa), tinha marcas roxas espalhadas pelo corpo todo e claro um peso enorme em gesso cobrindo todo braço esquerdo.
A primeira lembrança do que ocorrera comigo, não foi a dor ou o trauma de ver minha mão pedindo o divorcio do meu corpo... foi aquele flash back de imagens.
E quer saber achei tudo muito chato...
Não teve abertura espetacular com mulheres geométricas se levantando da água, nem mesmo uma música de fundo que fosse condizente com cada fato.
Limpei as lágrimas e pensei realmente não era hora de morrer, tenho muito que colocar nessas imagens, muito que fazer para torná-las interessantes.
O médico me dissera que minha recuperação dependeria muito de mim, da reação do meu organismo, mas não garantia que eu recuperasse os movimentos da mão.
Disse a ele: “Se depende de mim então estou em boas mãos, eu vou sair daqui logo, logo! Tenho muito que fazer lá fora, tenho que fazer tudo que sempre quis e ainda não fiz.”
Dez dias depois eu e meu gesso estávamos fora do hospital.
Desenvolvi um amor por aquele gesso, ele estava ali para me lembrar de quanta vida eu ainda tinha pela frente.
Ele me acompanhou por seis meses.
Nesses seis meses tratei de botar em prática um plano que tinha : Fazer uma Faculdade, não mais por necessidade, pressão ou por querer um bom emprego, mas por satisfação pessoal, porque eu mereço.
O plano que antes não tinha data prevista para ser posto em prática se tornou minha grande meta e me motivou para recuperar aos poucos os movimentos da mão esquerda.
Estudava para o vestibular enquanto me exercitava com bolinhas de fisioterapia.
No ano de 2004 da graça de Nossa Senhora, exatamente dez meses após ter sofrido um grave acidente que quase me fez deficiente física, passei novamente no Vestibular da UFRGS agora para artes visuais minha grande paixão.



O universo cabia dentro de mim


Convivi com grávidas a minha vida inteira.
No morro, cachorro e criança parece que surge por geração espontânea, sempre tem algum recém chegado e estamos sempre a perguntar de onde virá o próximo.
Para mim, por muito tempo, era assim que eles surgiam: em um dia não estavam lá e no outro, pimba ! Apareciam no colo de suas mães.
A primeira vez que vi um parto, foi em um vídeo-clipe.
Eu já era grandinha, já sabia, é claro do alto de minha “capacidade intelectual avançada” de tudo sobre a vida, mas uma coisa é achar que sabe, outra, é ver.
Era aterrorizante ver o quanto a natureza pode deformar um corpo em busca de um milagre. As imagens foram tão fortes que a música esqueci, nem mesmo sei qual a banda, só lembro de pensar: Alguém que pode produzir a complexidade de um ser humano, abriga dentro de si um universo.
Eu, grávida pensava muito no parto e lembrava aterrorizada daquele vídeo.
Sempre disse : “O melhor lugar do mundo para se ter um bebê com certeza é o Projak[7] , todas as grávidas deviam ir ganhar lá.
Lá a bolsa d’água sempre rompe e claro alguém faz a piada clássica aproveitando o trocadilho entre bolsa d’água e bolsa de carregar a tira colo. (Será que ninguém vai avisar a eles que esse humor de trocadilhos é coisa de americano que não pegou por aqui?)
Lá é só sentir as primeiras dores e se tem de sair correndo pois o bebê já está quase nascendo. Não sei por que correm tanto, pois o parto acontece mesmo em qualquer lugar: no ônibus, no taxi, mata fechada, nave alienígena, beira de riachos... o local menos provável é o hospital.
Outra facilidade é que qualquer um que esteja por perto tem a perícia necessária para fazer o parto, basta dizer as palavras mágicas: “Aqueçam bastante água e fervam uma tesoura!” Pronto, alguns minutos (e algumas caretas) depois terás em seus braços uma linda, limpa e saudável criança aparentando seis meses de vida.
Claro que nem o vídeo-clipe, muito menos as cenas da Globo, te fazem entender o quanto dói.
Ninguém fala sobre ficar dez, doze, quatorze horas sofrendo e gritando.
Ninguém explica, ou pode explicar, a sensação de que seu corpo está espontaneamente se partindo em dois.
Ninguém fala o quanto o universo é pesado, pois só se pode descobrir isso quando ele força os ossos da sua pelves.
Não tem como se ter noção do que é estar prestes a explodir, devido à enorme pressão interna.
Ninguém fala o quanto isso é assustador.
Quem não cresce nessa hora, talvez nunca mais cresça.
A dor física é tão intensa, que só pode ser o prenúncio de uma mudança, uma transformação. As larvas devem experimentar algo assim ao virarem borboletas.
O ponto limítrofe dessa passagem ocorre, sem dúvida, quando seu corpo se rompe.
O universo sai.
Assim, simplesmente sai. Após tanta intensidade, ele simplesmente escorrega para fora de você, te abandona.
Corta-se o elo que unia você àquela coisinha cinzenta, melequenta e enrugada e é como se alguém simplesmente puxasse o fio da tomada.
A música intensa e desesperadora que tocava dentro de sua cabeça em um volume ensurdecedor, cessa.
Faz se o silencio.
Tudo passa.
A transformação já ocorreu.
Ainda é visível o espaço aberto, seqüela da passagem do universo, porém ali, meio sentada, meio deitada, exausta, frágil a sangrar e chorar o corpo fica, mas já não é o mesmo.
Seu coração, sua alma já não estão mais com ele, seus olhos já estão presos na sala para onde a coisinha cinza foi levada.
Minhas primeiras palavras não foram de alívio, queixa ou mesmo de agradecimento, foram um resumo do que seria minha vida dali em diante: “Porque ela não está chorando?”
Porque ele não está chorando, perguntava eu enquanto o médico me mandava fazer mais uma forcinha para expulsar a placenta.
Vocês conhecem? Essa tal placenta? Eu não, pois não vi nada.
Já que não permitiram levantar para ver o que ocorria na tal salinha, fiquei ali agarrada à cama olhando e repetindo: “Porque ela não está chorando?” Assim se passaram os mais angustiantes minutos de minha vida, não sosseguei até ver a coisinha cinza chegando aos berros no colo de uma enfermeira.
Só então após a apresentação oficial, com direito a beijos e abraços deitei, pensando que iria apreciar uma sensação que a muito eu havia esquecido: sentir-me sozinha em meu corpo...
Ledo engano, a presença do universo havia deixado marcas em mim.
A mudança era permanente.
Era impossível parar de pensar na coisinha cinza.
Porque será que ela era cinza? Não tive tempo de contar os dedos, vou chamar a enfermeira e pedir para alguém contar... Será que eu posso ir até lá lembrar que tem de fazer o teste da orelhinha, vi na TV que agora é obrigatório em hospitais públicos, mas sabe-se lá se agente não cobra...
Esquecido, relegado a um segundo plano, depois das fraldas, das meias que não secaram pois choveu, depois das cólicas e depois, muito depois do primeiro sorriso, lá esta o eu quase inexistente.
Calma, o eu voltará a existir, mas jamais será o mesmo.
Abnegado, subserviente, dócil e quem diria disciplinado, ao olhar para si, enxergará ela, o centro do universo e acreditem, irá sorrir, feliz como jamais foi.

Um e-mail para B.O.


Sinto me compelida a escrever-te B.O., pois parece que já nos conhecemos!
Há todos esses meses acompanho-te e torço tanto, vibro tanto ! É tão grande em mim a alegria de ver te ai, tão no alto...
Sou uma universitária do sul do Brasil... Sim, temos essas coisas por aqui... Sim, também tem carnaval e selva...
E B.O., deixa eu te contar, sou negra como tu!
Sou tataraneta de escravos e tive a sorte de poder ouvir minha bisavó contar histórias do mesmo jeito que a mãe dela contava para ela quando ambas ainda eram cativas.
Eram histórias sobre ervas que curam, mistérios do além e algumas coisas sobre uma terra distante.
A minha favorita, B.O., era quando ela contava como conheceu seu pai.
Era uma história sobre meu tataravô, Libânio um mestiço de negro e índio que era o capataz da fazenda onde minha bisavó nascera.
Naquele momento uma guerra cobria nosso Estado de sangue, porém grande era a recompensa oficialmente oferecida para os escravos que fossem defender a pátria: seriam livres.
Libânio foi lutar na guerra do Paraguai, deixando as porteiras da fazenda uma negra e uma promessa: voltaria e se a criança que ela trazia no ventre fosse uma menina, a levaria consigo.
Eu sempre chorava ao ver minha bisavó contar como, dez anos depois, a mãe lhe apresentou o pai e despediu-se. A liberdade da filha fora conquistada por nascer em “ventre livre”, a matriarca ainda cativa não ia a lugar nenhum.
Aos portões da fazenda, a negra valente disse apontando o homem que nem desapeou do cavalo branco: “Esse é teu pai e de agora em diante tu vai morar com ele!”
Queria ter podido conhecer à negra que entregou o que tinha de mais precioso para que a filha pudesse ser livre e também o pai Libânio um homem que honrava promessas.
Como minha bisavó Euclides, e com tu, B.O., eu também nasci de uma mistura racial, no meu caso, um pai branco que me abandonou sem sequer conhecer-me e uma mãe negra, guerreira, batalhadora que me criou sozinha com a força de seu trabalho, na melhor tradição do orgulho negro: sem nunca ter de pedir nada a ninguém.
Não é mesmo uma grande ironia, B.O., que às vezes esse orgulho, que fez nossa gente sobreviver ao seqüestro, que os manteve vivos por meses nos porões daqueles navios fétidos e insalubres, que os fez suportar a chibata, os trabalhos forçados, os estupros e mutilações, esse orgulho que os fez prosseguir e assentar aqui nesse país as raízes de nossa cultura, nos atrapalhe?
É incrível mas muitos de nós ainda renegam o direito que temos a reparação por todas as faltas de oportunidades que nos oprimiram, rechaçaram, segregaram, marginalizaram, sutil e silenciosamente mesmo após a tal “Lei Áurea”.
Há um ano BO., aqui em minha Universidade deixei de apenas falar sobre questões raciais e abracei a causa das ações afirmativas.
É um projeto lindo chamado Conexões de Saberes, onde participo do território Conexões Afirmativas.
Nessa luta, que dividimos com muitos outros, grandes vitórias já foram alcançadas como por exemplo a implantação do Programa de Reserva de Vagas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Conquistamos cotas sociais e raciais, mas sinto que ainda estamos apenas no começo.
O trabalho de meu grupo, consiste em transmitir informações sobre ações afirmativas e sobre o funcionamento do Programa de Reserva de Vagas da UFRGS, demonstrando a importância de desmitificar a meritocracia como única forma de acesso ao ensino superior e desvelando o mito da democracia racial brasileira.
Esbarramos em muitas barreiras invisíveis de nossa sociedade , mas B.O, o que mais dói em mim, é quando um negro diz : “Não precisamos disso!”
É duro ver o quanto as pessoas desconhecem os entraves que a sociedade impõe ao seu progresso.
É duro saber que sem tomar conhecimento disso, talvez jamais consigam ultrapassá-los.
Por isso B.O., foi tão importante para mim te ver, aquele dia sentado “naquela cadeira”, com direito as bandeiras ao lado, a mesa imponente com livros ao fundo e todo aquele requinte austero do “topo do mundo”.
Essa é a imagem que pretendo guardar em minha mente para descrever aos meus filhos: um homem negro, lindamente sentado no topo do mundo.
Escrevo-te agora B.O., enquanto és em minha mente tão imaculado quanto a tua imagem no “topo do mundo”, nada do que fizeres daqui para frente poderá me fazer esquecer isso, porém já perdi muitos heróis e após o último, que perdi para os escândalos de corrupção e para uma insuportável tendência a “nunca saber de nada” sinceramente não achei que fosse ter mais um.
Por isso B.O. enquanto é tempo, te faço um pedido:
Só não me aperte nenhum botão vermelho, de resto tudo se resolve mas...
Por Favor Obama: “Mantenha-se longe dos botões vermelhos!”


Marronzinho : Ele vai falar!


Marronzinho, o mais marcante candidato a Presidência do Brasil que já conheci era negro.
Sim, com certeza esse fato foi importante para que eu o destacasse entre tantos outros candidatos exóticos que desfilavam no horário eleitoral do ano de 1994.
Mais o importante é que ele ia falar.
Nunca vi campanha de marketing eleitoral tão corajosa e provocativa: um homem negro, com a maior cara de povo, ocupando aquele espaço, almejando aquele cargo já era por demais inovador...
Acrescia-se o fato de que ele ia falar.
Nos segundos destinados a ele na propaganda eleitoral, apenas essas informações eram passadas, seu nome, seu partido (que não foi tão marcante assim) e uma promessa feita como o dedo em riste, ele iria falar.
Os dias se passavam e não se ouvia o som de sua voz, apenas o locutor a garantir com veemência: “Ele vai falar!”
Apesar da marca indelével em minha memória somente agora, vinte anos depois me dou conta do peso das palavras.
De quanta coragem é preciso para simplesmente se levantar e falar e de quanta responsabilidade isso implica.
É isso que tenho feito desde o ano passado, falado.
Falado diante de muitas pessoas, diante de grupos pequenos, grandes, diante de turmas de alunos, grupos de professores, colegas.
Já é quase automático, levantar e falar. Expor, argumentar.
No inicio gostei, da atenção dos olhares da admiração que provocava. Gostei do desafio, do jogo. Não basta coragem é preciso conhecer o tema, dominar, saber o que dizer e quando se é uma negra falando de ações afirmativas, é preciso saber mais.
Seus argumentos tem de ser mais consistentes, sua postura mais firme, seu raciocínio mais rápido, sua oratória fluente.
Afinal, sempre estarás legislando em causa própria.
Um branco que fala em reparação a populações que passaram por processos históricos de privações de oportunidades é sempre uma pessoa bondosa. Mesmo aqueles que acham que ele está falando bobagens reconhecem nele um altruísmo louvável, um amor ao próximo admirável.
Um negro que encara a mesma temática deverá estar preparado para enxergar no rosto das pessoas aquele sorriso que insinua que ele esta tentando levar vantagem.
O estereótipo de negro inclui o “se dar bem”, a desonestidade, a trapaça, é preciso estar pronto para isso quando se levantar e falar.
Deve-se também estar pronto para carregar o peso de uma parcela da população sobre suas costas e para ser cobrado por tudo o que for feito em seu nome.
Estar pronto para ver seu trabalho esquecido, desconsiderado, desmerecido ou simplesmente citado sem nenhuma referência ao seu nome.
Tem de estar preparado para assumir lideranças inesperadas que caem em seu colo como um presente de grego e saber que por mais que tu faça o melhor de ti, sempre aparecerá alguém para dizer que tu devia ter feito diferente.
Hoje sinto um pouco de medo. Sim sinto medo, sou humana.
Hoje recebi uma crítica que me abalou bastante, me fez pensar no quanto é grande esse caminho e no quanto eu sou pequena . Me senti solitária.
Como disse certa feita Sandra Corazza “A colheita é pública a capina é solitária.”[8]
Vai ver que foi por isso, que Marronzinho nunca falou.

Notas:
[1] Graduada em Artes Visuais pela UFRGS, Pesquisadora Iniciante do Projeto “Movimentos Pedagógicos da Gestão do Cuidado: Acompanhando Estudantes Negros e Indígenas na UFRGS”, Arte-educadora da Rede Estadual de ensino do Rio Grande do Sul.
[2] Expressão popular que denomina famílias onde se percebe uma alta mortalidade.
[3] Série de desenho animado produzida para a TV por william Hanna e Joseph Barbera desde 1953.
[4] Pintores Europeus adeptos as Vanguardas Modernistas, o cubismo e o Fauvismo.
[5] Painel pintado por Pablo Picasso em 1937, na ocasião da Exposição Internacional de Paris.
[6] Expressão pejorativa americanizada que denomina os alunos extremamente estudiosos e impopulares entre os colegas.
[7] Central de Produções de novelas da Rede Globo de Televisão.
[8] CORAZZA, Sandra. Pequeno manual infame para escrever uma Proposta de Dissertação de mestrado.

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