Memorial de Rogerio Adriani Fontoura da Rosa

O início é o começo?

A memória é o resgate do tempo,a busca do tempo perdido, como diria Marcel Proust, mas o que é o tempo? O que é isto que devo buscar? Busco o tempo, ou o que fiz através dele? Poderia fazê-lo, se nele não estivesse? O tempo, não é uma “coisa”, é um conceito, possui uma história, ou melhor, várias histórias, infinitas histórias, as oficiais, as esquecidas, as que insistem em aparecer...a minha é apenas uma delas, que é minha na medida em que é muitas, e que tem a importância que lhe dou. E isto basta.
Minhas lembranças não são exatamente cronológicas, porque a densidade daquilo que historicamente me constitui como educador possui “pontos paralelos” com diferentes níveis de aproximação com o presente. Começos no entanto com o “início”.
É uma lembrança materna e literária, composta de uma ausência e de algo que seria minha companhia pelo resto da vida (como compensação? talvez.). A mãe e os livros.
“A conquista do Mar Oceano”, é o título. A capa mostra caravelas em repouso num mar calmo,sob um vivo e estranho céu amarelo. Em primeiro plano, numa embarcação menor, vemos alguns homens apontando para algo, atentos, ansiosos para chegar a algum lugar. Entre eles destaca-se um jovem, melhor vestido que os demais, em posição triunfal, transparecendo segurança e determinação. Ao ler a obra, descobrimos que esta figura chama-se Cristóvão Colombo e que a cena acima descrita é o momento do descobrimento de uma Terra Nova, habitada por seres que dificilmente teriam alma, andavam semi-nus e eram de uma ingenuidade quase cômica.
A autora, só algum tempo depois descobri o que significava esta palavra, tinha um nome sonoro, que eu repetia calmamente, como se estivesse sorvendo um gostoso sorvete. Virgínia Lefèvre.
Ao abrir o livro, em diagonal, leio as palavras que me preparam para o que esta por vir e me lembram que aquilo que tenho em mãos não é apenas um objeto, é uma forma de amar.
“Meu querido filho e amigo. Sempre que pegares este livro para ler, sintas a paz e encontres o amor que mamãe sente por ti. Que tuas conquistas pelos mares da vida sejam gloriosas. Com amor da mãe e amiga. Feliz aniversário.” Eu estava fazendo 10 anos.
No canto esquerdo, embaixo, leio “mara”. É a tentativa da minha vó escrever “Maria”, seu nome. Seu analfabetismo aparece na grafia insegura e cambiante, na timidez da tentativa em deixar algum tipo de registro que me acompanhasse. Comovo-me com a dignidade do gesto.
Uma mistura de romance com fatos históricos foi a porta de entrada na fantasia, na curiosidade.
Depois viria “O velho e o mar” de Ernest Henigway. Sempre tive curiosidade em saber quais os critério de escolha de minha mãe, para os livros que me deu de presente.
Minha paixão pela leitura, pelo “mundo das idéias”, como fuga ou não, estava definitivamente instalada.
Com 15 anos, a inquietude da adolescência e o hábito da leitura surtem seu primeiro efeito prático. Uma simples conversa de fim de aula com meu professor de história, resulta na indicação de um livro que seria o responsável por boa parte das minhas escolhas profissionais e políticas futuras. “As veias abertas da América Latina” de Eduardo Galeano. Novamente as Américas, agora sob uma nova perspectiva. Pouco entendi na primeira leitura, mas algo me dizia que ali estavam idéias e informações, que contradiziam tudo que eu havia aprendido, e era quase nada, sobre a história da América Latina. Foi a primeira vez que eu entendi o que poderia significar a relação professor- aluno.

Bandeirar e ensinar: a difícil equação

Como se aprende a ser professor? Sendo. Meu inicio “prático” se deu num período conturbado e rico politicamente na história do Rio Grande do Sul, o fim dos anos 80. Foi uma época de intensa disputa de projetos políticos antagônicos, que trouxeram a tona, com rara clareza, as contradições regionais do atual estágio da acumulação capitalista. Meu envolvimento foi grande, apaixonado e acabei transferindo para minha incipiente prática pedagógica toda a energia militante do momento. Logo coloquei-me uma questão que me parecia importante do ponto de vista ético-pedagógica, mas que hoje tenho como resolvida. Que postura eu deveria ter em aula? Uma “neutralidade” cientifica ou usar o espaço da sala de aula como um “locus” de atividade crítica?
Desta experiência construí minha própria forma de manter meus princípios éticos ao mesmo tempo em que trabalho com as diferentes maneiras de entender a realidade. Meu compromisso como educador é ajudar meus educandos à construírem seus próprios caminhos, à elaborarem da forma mais rica possível seus próprios argumentos. Não há dicotomia entre posição política e ensino qualificado. Não acredito na neutralidade de uma ciência positivista. Não acredito no conhecimento que esteja acima das contradições sociais, muito menos no ensinar que assim também esteja.
O dogmatismo do discurso puramente ideológico é tão nocivo quanto o seu contrário, por que também emburrece, torna epistemologicamente sólido justamente o que deveria ser objeto de dúvida, de investigação, em última análise, do ato de conhecer.
Não foi fácil encontrar o equilíbrio (sempre instável) entre o político e o pedagógico, ou melhor, o político no pedagógico. É interessante notar que com o avançar da idade, as contradições são outras, o amadurecimento não nos torna isentos do erro, mas nos ajuda a percebê-los com maior nitidez.

Ensino Superior, à que?

A entrada no “mundo acadêmico” foi a realização de um sonho, a criação de imensas expectativa, baseadas é claro, no senso comum de que a universidade seria um lugar habitado por seres acima das mesquinhas disputas do cotidiano, seres capazes de traduzir todo o conhecimento acumulado pela humanidade, em sabedoria. Um local de pessoas interessantes, criativas, ansiosas por mudar a realidade social. Ingenuidade? Sem dúvida, mas até que ponto? Por que construir essa imagem do ensino superior? Não haveria nada de real nela? E se houvesse seria o melhor que poderíamos ter feito?
Logo percebi que a universidade não era a ilha de sapiência e rebeldia que eu havia imaginado; existiam disputas pelo “capital simbólico” como diria Bourdieu, que geralmente se utilizavam de modas teóricas para justificar a partilha de cargos na burocracia acadêmica e do espaço polìtico-financeiro e mesmo físico nos departamentos . Onde terminava o debate sincero, vinculado à um projeto de nação, fundamentado não em “novos paradigmas” importados de outras realidades, sem qualquer mediação, mas na análise crítica da sociedade, a partir dos nossos problemas, que procurasse dialogar com as matrizes intelectuais das ciências humanas, notadamente, França, Alemanha, Inglaterra e Estados Unidos, e iniciava a verborragia insossa e inútil tanto dos professores, quanto nossa, dos alunos?
Também tive a felicidade de encontrar professores que “faziam a diferença”, ou seja, estimulavam a inteligência dos seus educandos, a capacidade de questionamento e pesquisa e o que era para mim algo até certo ponto surpreendente, faziam isso da forma mais “simples” possível, sem arabescos metodológicos, contorcionismos metafísicos ou sofisticações desnecessárias. Encantava-me a paciência quase maternal ou paternal, conforme o caso, de alguns “mestres”. Paciência que não era condescendência com nossos escorregões de caráter e eventuais ataques de mediocridade disfarçada no discurso de vitima do sistema. Nunca consegui atingir essa virtude na minha prática docente.
A partir da convivência com estes professores, aprendi que o difícil é tornar simples o complexo, sem ser simplista. A diferença entre conhecimento e sabedoria é gigantesca.
Ah, claro e tinham as festas, as garotas, o papo-cabeça, o trago e tudo isso. No meu caso, não me deslumbrei, acho até que poderia ter aproveitado mais. Na verdade, não tinha muita paciência para certas festas ou rituais de conquista. Preferia ficar em casa lendo ou vendo filmes, o que me conferia (assim eu imaginava), um certo charme intelectual, um distanciamento calculado do frenesi estudantil. Na realidade, eu deveria passar por um tremendo chato.

A classe social sou eu

O que me levou a pensar a educação a partir do ponto de vista do trabalhador, ou melhor, da categoria analítica trabalho? Minha própria vida. A melhor forma que encontrei para entender o que significa a expressão “classe social” foi refletir sobre minha própria condição e a de algumas pessoas próximas de mim. Penso aqui na história de vida e nesse caso, morte, do meu padastro. Como pode um homem trabalhar a vida inteira, como dono de um mini-mercado, e só conseguir adquirir um imóvel próprio praticamente no fim da vida? Quais mecanismos sociais justificam e explicam essa realidade? Porque um homem é obrigado a botar fora o melhor de sua vida, a juventude, trabalhando em algo que no final dela não representará mudança alguma? Um homem que morreu endividado porque não conseguia “competir” com o Zaffari.Um homem que fazia cálculos imensos “de cabeça” e mal conseguia assinar o nome, me fez pensar que os saberes não surgem espontaneamente, não são desconectados da vida, pelo contrário, expressam uma determinada configuração social, de classe, de subordinação à uma lógica perversa, excludente e elitista. O que me tornava “melhor”, “mais sabido”, “mais inteligente” do que ele? A história da educação não seria a luta constante para universalizar o conhecimento, construído socialmente, feito de diferentes saberes?
Porque eu tive que fazer minha faculdade PÚBLICA, em horários incompatíveis com o trabalho e quando não consegui mais administrar a situação, tive de estudar à noite? Porque, nos cursos mais concorridos, só entravam na universidade PÚBLICA, quem podia pagar por uma privada (sem trocadilhos)? Onde estavam aqueles que viviam do trabalho? Onde estava o “público” da universidade?
Quando tive a oportunidade de entrar no sistema de ensino público, agora como professor, percebi que a engrenagem montada pelo aparelho de Estado para naturalizar a divisão social do trabalho, era mais complexa do que meu voluntarismo poderia imaginar.
Leciono numa escola técnica estadual que prepara mão-de-obra barata para o mercado. Uma escola com uma tradição de 103 anos no ensino técnico-profissionalizante, e que apesar do esforço sincero e abnegado de alguns, continua positivista na sua percepção do que seja educar para o mundo do trabalho. Refém de uma lógica subserviente ao capital, minha escola não consegue colocar em prática uma visão minimamente crítica do que seja educar. Isto exige coragem e disposição, coisa que nos falta.

O mundo gira...e fica no mesmo lugar

Sou do tempo, eis outra forma de dizer “tô velho”, em que minha escola de Primeiro Grau tinha um consultório dentário completo à disposição dos alunos ( que eu não freqüentava muito, dada minha notória coragem para entrar nestes ambientes). Havia a semana da pátria, quando “guardávamos a bandeira”, sabíamos de cor os hinos do Brasil, e do Rio Grande e cantávamos no12 pátio, que aliás me parecia enorme. Mas o que mais me deixava de peito estufado era tocar na Banda Marcial. Os ensaios impressionavam as meninas e isso era ponto pra mim, já que eu não era exatamente o garoto mais “popular” do colégio.
Até hoje escuto, vindo de alguma tarde feliz que ficou em mim, a batida sutil, forte, compassada, do tarol que eu tocava. Na semana de 07 de setembro colocávamos nosso uniforme da banda e tocávamos em diferentes lugares da cidade. Parecíamos soldadinhos de chumbo.
Nunca mais escutei na Cristóvão Colombo a música alegre, bonita, da Banda Marcial do Olegário Mariano, minha escola. toda a avenida parecia ser o pátio do colégio.

A vida ficou mais triste por lá...

Tive as famigeradas “técnicas”, no caso técnicas domésticas, onde aprendi a costurar botão e pintar em pano e técnicas industriais onde aprendi...não lembro, e comecei ali a perceber que existe o conhecimento prático e o conhecimento intelectual. Sutilmente meu lugar na sociedade começava a ser traçado.
Hoje não temos mais as técnicas, nem Educação Moral e Cívica, nem OSPB. Hoje, os paradigmas são outros, porque o processo de acumulação do capital é outro, suas necessidades mudaram. Vivemos o estágio da flexibilização e precarização das relações trabalhistas, da terceirização, da “compressão” do tempo e do espaço, da fusão dos interesses privados e do ente público, do voluntariado tomando lugar da noção de direitos sociais básicos, da ideologia da inexistência da ideologia. Mas o fundamental permanece, a educação deve desenvolver “competências” e “ habilidades” que as atuais relações sociais de produção demandam. Nada de educação critica, nada de questionar o próprio conceito de propriedade privada, nada de peguntar a quem o Estado serve e porque, nada que possa provocar espanto diante da simples necessidade de educarmos pessoas.

Não é o final, é um toque de amor

Gostaria de encerrar meu memorial com um fato que talvez fuja um pouco dos propósitos “acadêmicos” destas mal traçadas linhas. Enquanto educador, no meu ato pedagógico, conheci aquela que tem sido minha companheira e amor da minha vida desde então. Foi minha aluna, e agora é mãe da coisinha mais maravilhosa e tinhosa que conheço, minha pequena Laurinha.
Hoje, exercemos juntos a maravilhosa e complicada arte de educar. Educar e nós mesmos e a este pequeno ser que colocamos no mundo.

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