Memorial de Fernanda Dutra Corrêa

Um planeta chamado UFRGS!

Quando eu soube que teria que escrever um memorial sobre a minha caminhada desde a infância até a entrada na universidade, levei um grande susto! Dizia-se que era pra escrever no máximo 10 páginas e eu fiquei apavorada achando que não teria história pra contar que coubesse em uma só folha.
Bom, então começarei a contar minha história.
Nasci no dia 9 de agosto de 1983. Primeira filha e primeira neta por parte de mãe, foi uma festa! Minha mãe sempre diz que gostava muito do nome Fernanda e que se tivesse uma menina seria esse o nome, o fato é que nasci no dia do aniversário do meu pai, que “casualmente” se chama Fernando, e acabou por este mesmo ser meu nome: Fernanda, que eu adoro.
Sempre moramos no bairro popular onde nasci, Passo D´Areia, divisa com Jardim Ipiranga em Porto Alegre/RS. Não vivíamos de luxos, no entanto o salário do meu pai proporcionava uma vida tranqüila sem muitos sacrifícios.
Nasci no segundo semestre do ano, e quando estava na idade de entrar para a pré-escola meus pais fizeram um esforço e me colocaram em uma escola particular, pois a escola pública só aceitava os alunos que completassem 6 anos no primeiro semestre e eu ficaria atrasada na visão dos meus pais. Fui alfabetizada na escola particular para poder conseguir vaga na escola pública. E foi nesta escola que tive minhas primeiras experiências de amigos novos, professoras, momentos longe da minha mãe, etc. E foi lá que tive um acidente, cai de nuca na quina de uma escada e tive leve traumatismo craniano, fato que vim, a saber, pouco tempo atrás, e olha que eu sempre fui uma criança muito calma.
Na segunda série consegui vaga na escola pública, o que foi um alívio em casa porque já não estava mais dando para pagar as mensalidades. Estudei todo o 1º grau lá, fiz amigos que tenho até hoje, entre alunos e professores, e comecei a participar de grupos de dança, jazz e danças gaúchas.
Sempre fui uma criança tranqüila, brincava sozinha ou com poucas amigas. Gostava de bonecas Barbie, panelinhas e escolinha. Dava aula para as minhas bonecas e para o meu irmãozinho, e foi assim que o ensinei a ler com apenas cinco anos, antes mesmo dele entrar na escola.
No 2º grau tive que trocar de escola porque a anterior não oferecia esse ensino. No começo foi difícil, pois a escola era muito maior e eu não conhecia quase ninguém. Foram três anos maravilhosos e lá também fiz muitos amigos.
Sempre fui uma ótima aluna, as pessoas costumam não acreditar quando falo que nunca tirei uma nota vermelha no boletim e também nunca fiz recuperação em toda minha vida escolar, é a mais pura verdade. Sempre gostei de estudar e também recebo muito incentivo para isso até hoje. A única coisa que me atrapalhava é que eu era uma menina muito tímida, custava pra fazer amigos, não me envolvia em nada e sempre me escondia de tudo e de todos. Passava vergonha nas aulas de Educação Física, sempre adorei esportes mas nunca aprendi a jogar nada, então os colegas me xingavam e me tiravam dos jogos quando eu errava alguma jogada. São traumas da minha vida escolar que eu acredito que me deram forças pra seguir meu sonho e provar pra mim mesmo que eu podia ir além do que achavam ser a minha capacidade, não é a toa que hoje faço o curso de Licenciatura em Educação Física.
Terminei meu ensino médio em Dezembro de 2000. Não tinha decidido ainda o que queria fazer da minha vida, então conversei com meus pais e decidi começar a trabalhar no ano seguinte e me preparar para fazer vestibular somente em 2002. Três anos antes de me formar, meu pai tinha trocado de emprego e a transação rendeu um fundo de garantia que possibilitou ao meu pai dar entrada e financiar um apartamento de um quarto pra nós, meus pais, eu e meu irmão nove anos mais novo. Moramos mais de quinze anos de aluguel, em dez apartamentos diferentes no mesmo bairro, e aquele momento de comprar um apartamento, mesmo sendo um muito menor do que os apartamentos que estávamos acostumados a morar, era um sonho. Agora ninguém mais iria bater na nossa porta para que entregássemos o apartamento.
De repente tudo mudou, no ano seguinte da minha formatura meu pai acabou perdendo o emprego. Esqueci a história de voltar a estudar e comecei a trabalhar de atendente de creche para poder ajudar em casa e me manter, assim não dando despesas. Os meses foram passando e o meu pai, com quarenta anos na época e considerado quase fora do mercado de trabalho, não conseguia voltar a trabalhar. Pouco menos de um ano, o desespero fez com que meu pai aceitasse um emprego com um salário baixo. Finalmente o dinheiro voltaria a entrar em casa, no entanto a quantia era muito pouca. Era o financiamento do apartamento, condomínio, luz, comida para quatro, realmente não dava. E assim foi por muito tempo, às vezes ele ganhava algum aumento de salário, isso ajudava, mas não resolvia o problema. Outras vezes, trocava de emprego, conforme ofereciam mais dinheiro.
Trabalhei durante um ano na creche, ganhei um curso de informática pela escola do meu irmão. Os horários lá não coincidiam para que eu fizesse o curso, então larguei a creche e comecei a trabalhar no comércio. Era difícil juntar dinheiro para qualquer coisa, porque sempre ajudava em casa, mesmo que meu pai não quisesse. Para ele, eu deveria cuidar de mim. Via todos os meus amigos entrando para faculdades privadas e acabei sendo a única a ficar para trás. Alguns me diziam que eu deveria voltar a estudar de qualquer jeito, perguntava de que modo poderia fazer uma faculdade, com que condições, até que um dia ouvi a seguinte resposta: “ué, tu trabalha, paga tua faculdade”. Fiquei triste, meu salário não era suficiente para um curso superior, todas as despesas para me manter na faculdade e ainda por cima ajudar meu pai.
Um dia em uma conversa em casa meu pai falou da vontade que ele tinha de me ver continuar os estudos. Ele sempre me falava que nunca iria me cobrar que eu trabalhasse, mas sempre me cobraria que eu estudasse. Aquilo me tocou, senti que eu precisava fazer alguma coisa da minha vida, mas o que fazer?
O colégio onde eu fiz meu segundo grau oferecia cursos técnicos de contabilidade e administração, como é colégio estadual, só precisava passar em uma prova de seleção de nível fundamental para garantir a vaga e estudar gratuitamente. Decidi então fazer administração. Peguei alguns livros de ensino fundamental do meu irmão, só pra relembrar algumas coisas, e consegui me classificar sem problemas. Meu curso começaria em março de 2004 e teria duração de um ano e meio, três semestres. Fiquei muito feliz, finalmente me via estudando de novo e agora teria uma profissão.
Ainda em 2003, conheci o João, um amigo aqui da minha rua que no final do ano viria a se tornar meu namorado. Naquele ano, o João tinha passado na UFRGS para Engenharia Mecânica. Eu achava aquilo tudo o “máximo”. Acreditava que não era para mim, que jamais chegaria onde ele estava, e admirava demais o esforço e dedicação dele. Como começamos a namorar, acabei conhecendo alguns amigos dele, e para a minha surpresa, cada amigo ou amiga que ele me apresentava fazia um curso na UFRGS. Sentia-me diferente, diminuída, não por eles, pois sempre fiz amizade com todos e sempre me trataram muito bem. Eu me sentia inferior por fazer um curso técnico em uma escola pública enquanto todos estudavam na UFRGS.
Na metade do ano de 2004 a escola onde eu fazia meu curso técnico de administração estava em greve de professores. Um dia estava conversando com o João e acabei reclamando da greve na escola. Ficar algumas semanas sem aula poderia comprometer a conclusão do curso, e ainda por cima eu estava tão feliz de estudar novamente, que a greve me deixava, além de tudo, triste. O João, então no curso de Engenharia, brincou comigo dizendo: “vai lá, estudar comigo”. Aquela frase me abriu os olhos para o que até então me parecia completamente inviável. No mesmo momento olhei pra ele e falei: “pior que tu me deu uma idéia, eu poderia tentar o vestibular no próximo ano”.
Levei a brincadeira adiante e realmente decidi tentar vestibular na UFRGS para Administração. Eu sabia que era difícil, que talvez eu fosse somente experimentar o gostinho de ser vestibulanda. O João estava insatisfeito com o curso e resolveu que também faria vestibular novamente. Deu tudo certo, combinamos que estudaríamos juntos e ele me ajudaria. Ele já tinha feito cursinho por monitoria e já conhecia bem a prova.
Tudo conspirava a meu favor. Estava eu lendo o jornal e descobri que uma associação realizaria um cursinho pré-vestibular popular em sua sede no centro de Porto Alegre, e que o único custo seria uma pequena taxa para despesas com material xerocado. Fomos até lá no mesmo dia, nos escrevemos e em agosto começaram as aulas. Foi difícil acompanhar. Tinha muita falta de professores voluntários para o projeto, às vezes começava com uma matéria depois o professor ia embora, ou alguns não tinham a didática de preparação para o vestibular da Federal. A intenção foi muito boa, e esse cursinho nos deu uma orientação de por onde começarmos a estudar e quais seriam as principais carências nas matérias.
No começo eu gostava da rotina, tinha perdido meu emprego (ganhava seguro desemprego) e resolvi que ficaria até o final do ano estudando. Estudávamos em casa de manhã, de tarde íamos pro cursinho e de noite eu ia para o curso técnico. Com o tempo as coisas foram ficando mais difíceis. Eu sentia falta de trabalhar, do meu dinheiro, das coisas em casa, e tive que fazer uma força tremenda pra seguir esse objetivo até o fim.
O semestre passou e chegou o dia da prova. O nervosismo tomava conta de mim. Combinei em casa que não iria corrigir enquanto não terminasse a maratona de cinco dias de prova. No último dia reuni todas as provas e fui corrigir. Era preciso acertar um total de 109 questões para que a redação fosse corrigida. Não acreditei quando terminei de contar, eu tinha acertado 108 questões. Não consegui segurar o choro, sentia que tinha chegado muito pertinho e fracassado, nem tinha parado pra pensar que mesmo com 109 questões certas e minha redação corrigida eu jamais teria média pra passar. Mesmo assim fiquei muito triste e convencida de que a UFRGS não era lugar pra mim, a Universidade Federal era praticamente outro planeta.
Toda essa experiência me encorajou a seguir nesse objetivo. Já tinha sofrido muito trabalhando no comércio, era desgastante, trabalhava todo final de semana, não tinha um clima muito bom de trabalho por causa das concorrências. Decidi que não desistiria de fazer faculdade e precisaria voltar a trabalhar pra pagar um cursinho bom, pois não sabia da existência de outros cursos populares, e para isso tinha que voltar a fazer a única coisa que eu sabia: trabalhar no comércio.
Pesquisei e descobri pertinho da minha casa um cursinho pré-vestibular que era um terço do preço dos “famosos”, trabalharia desde o primeiro semestre pra juntar dinheiro e faria o cursinho no segundo. Depois de muita conversa e insistência, eu consegui desconto e, ainda, pagando a vista eu ganharia todo o material sem custo. Deu tudo certo, foi muito cansativo. Tinha aula de manhã, corria em casa para almoçar e ia para o trabalho, chegava de volta em casa perto das 23hs. Não conseguia estudar em casa, fiz todo o curso sem me dedicar fora de lá, não faltava nenhuma aula, mas não era o suficiente. Chegou o vestibular e mais uma vez não tive aprovação. O choque foi menor, desta vez corrigiram minha redação, mas não tinha média para o curso de Administração.
Já tinha me formado no curso técnico. Não estava feliz, não conseguia trabalho na área e as duas reprovações no vestibular me colocaram em dúvida quanto a profissão que queria seguir. Neste ano meu namorado obteve a segunda aprovação no vestibular da UFRGS e conseguiu mudar de curso, passou pra Bacharelado em Educação Física. Achei super legal, nós sempre praticávamos esportes juntos e sabia que ele se daria bem na profissão. Falava da ESEF, das aulas, dos professores, das cadeiras esportivas, me empolguei. Sempre gostei de esportes, mesmo nunca tendo sido atleta de nada, gostava de assistir, acompanhar e, principalmente, discutir sobre futebol. Cogitei a idéia de fazer Educação Física também. Achava que as pessoas me criticariam de mudar tão radicalmente de curso, e ainda por cima o mesmo do namorado, falariam que era só por causa dele. Essa dúvida me incomodava, deveria seguir meu coração ou evitar fofocas? Conversava com muitas pessoas a respeito, algumas diziam que a Educação Física era a minha cara, já que sempre gostei de esportes, outros diziam que era melhor continuar onde eu já estava.
Mesmo sem decidir o curso, voltei no meu antigo cursinho e conversei com eles novamente, fiz a negociação do ano passado pagando a vista o curso do segundo semestre com os materiais todos de graça. Decidi que desta vez eu estudaria e me dedicaria, pois a rotina de vestibulanda já estava me cansando. Em casa, minha mãe se preocupava com o meu dia-a-dia, achava que eu estudava muito e que precisava descansar a cabeça. Eu tinha colocado a idéia de fazer faculdade entre os meus objetivos e sentia que estava perto, ao mesmo tempo em que sentia que a Universidade Federal não era lugar para mim. Eu continuava ouvindo das pessoas que, só entrava na UFRGS os ditos “filhinhos de papai”.
Descobri uma orientação vocacional que a faculdade de Psicologia da UFRGS estava realizando com vestibulandos, não pensei duas vezes e aproveitei o primeiro semestre sem aulas pra fazer essa orientação. Foi muito importante, durou cerca de dois meses e pude pensar com calma em todos os cursos que um dia passaram pela minha cabeça. Depois de muitos encontros, conversas e reflexões, decidi encarar minha vontade e prestar vestibular para Educação Física, escolhi Licenciatura, já que desde a infância sempre adorei a idéia de dar aulas.
Uma coisa me marcou muito no cursinho: na escadaria principal estava escrita a palavra UFRGS em cada degrau, e todo dia que eu subia aquelas escadas, lia UFRGS, degrau por degrau, imaginando que eu estava realmente caminhando em direção a Universidade Federal. Parece besteira, mas acho que deu certo!
No ano de 2007 o vestibular mudou um pouco: menos dias, menos questões, menos número de acertos, mas a prova estava um pouco mais complicada. Deu tudo certo, terminei a prova feliz. Não tinha idéia se eu tinha passado, corrigi minhas provas e achava que tinha ido bem, mas a redação é que me colocaria ou me excluiria da Universidade. Decidi tentar esquecer os dias que antecipavam o listão e fui pro Beira Rio tirar foto com a taça de campeão da Libertadores e do Mundial que o Inter tinha conquistado no ano anterior. Ah! Esqueci de contar, mesmo tendo nascido no ano que o Grêmio foi campeão mundial e tendo um pai gremista, eu sou colorada “doente”, herança da minha tia Clarice, colorada desde a gloriosa década de 70.
Bom, saiu o listão e eu estava trabalhando, minha chefa foi a primeira a ver e correu pra me chamar, não acreditei, meu nome estava lá, quis ler milhões de vezes pra ter certeza, chorei muito (sou supermanteiga derretida) queria gritar pro mundo inteiro o que tinha acontecido. Foi a alegria da minha família inteira, minha avó Lori, mãe da minha mãe, até passou mal, coitadinha. Eu era a primeira da família a entrar na Universidade, e ainda era a Federal, aquele planeta agora atingível. Passei em 15º lugar, para o primeiro semestre!
O início do curso foi difícil, muita leitura, assuntos que eu achava não saber discutir, sensação de não entender ou de ser incapaz de entender. Como tudo na minha vida, foi com muito planejamento e organização que cheguei onde estou. Hoje já estou no quinto semestre e cheia de planos. A Educação Física foi a melhor escolha que fiz. E eu e meu namorado ainda trocamos experiências, materiais de aula e planos de carreira. Meus pais não escondem de ninguém a felicidade de ter uma filha na Universidade Federal, e ai de quem fale mal do professor de Educação Física perto da minha mãe, ela vira fera!
Não quero que meu memorial sirva de exemplo e nem que mostre que alunos de classes populares têm condições de entrar na UFRGS. Eu acredito que a força está em cada um de nós. E esta força que eu descobri em mim me mostrou, logo após a minha aprovação, que eu posso tudo que eu desejar, desde que eu saiba lutar e correr atrás do meu objetivo. Hoje me sinto capaz não só de sonhar, mas de realizar meus sonhos... Ah! E são tantos. Escrever esse memorial foi muito gratificante e pude perceber que eu tenho sim uma história, e que preciso tomar cuidado para que ela não ultrapasse 10 folhas.

Um comentário:

JFernando, o Pai da Fê e do Marcelo disse...

Filha, os pais sao sempre testemunhas da caminhada dos filhos. E neste caso fomos aprovados junto contigo pois o sucesso dos filhos são o maior orgulho dos pais. Somos declaradamente coruja com nossos dois filhos, pois sempre colhemos alegrias e satisfação com nossas duas criações. Nunca esqueça da frase "AS DIFICULDADES SÓ EXISTEM POR PARA SEREM ULTRAPASSADAS". Nunca seremos vencidos por nenhuma delas se estivermos juntos.
Um beijo de um PAI e de uma Mãe orgulhosos.