Memorial de Vanessa Pavani

RITMOS DA VIDA

"Compreende-se como ritmo a capacidade universal de movimento que, juntamente com a capacidade orgânica e psicológica do ser humano, rege sua natureza objetiva e subjetiva, determinando seu estilo, comportamento e cultura" (GARCIA & HASS, 2002).

Ao nascer, o ser humano surge com um ritmo ligado às suas necessidades que lhe acompanhará até a sua morte. Muitas vezes a cultura ao qual este indivíduo está inserido dita o ritmo de sua vida, cabendo a cada um escolher seus desafios e mudá-los ou não.
Durante a caminhada de nossas vidas sempre nos aparecem dificuldades que através de nosso ritmo buscamos resolvê-las da melhor maneira possível. É atravessando esses obstáculos que amadurecemos pessoalmente, pois ao encarar desafios e conseguir vencê-los nos tornamos capazes de subir os degraus do conhecimento. E quando essas dificuldades não são impostas pelo destino e sim pela própria vontade do indivíduo? Talvez o ritmo que se deva seguir para superar esses novos obstáculos seja totalmente diferente do que já se tenha experimentado até o momento.

MUDANÇA DE RITMO

Quando, pela primeira vez, entrei numa escola, deparei-me com um universo totalmente diferente do que já havia vivenciado. As pessoas com quem eu passaria a conviver diariamente, durante todas as tardes, não faziam parte do meu círculo familiar. Com isso o ritmo da minha vida iria sofrer algumas mudanças. Compromisso com horário marcado, trabalhos para serem feitos em casa e a convivência com crianças da mesma idade fez com que meu mundo girasse numa nova velocidade. Mesmo não sabendo ver as horas no relógio descobri qual o momento de me arrumar para ir à escola. A programação do desenho animado me dava essa dica, pois quando terminava o programa era a hora de me transportar do lazer para o "trabalho".

http://www.youtube.com/watch?v=U3aSX_NpQxM
(Abertura do desenho: O Fantástico Mundo de Bob)

Os anos passaram e já me encontrava adaptada a essa nova rotina de compromissos e tarefas, até o momento que novamente tive que adotar um novo ritmo. Ingressando na 5ª série do ensino fundamental algo, que pode não ter tanta importância para muitos, afetou meu cotidiano: comecei a estudar no horário da manhã. Agora eu não conseguia mais acordar sozinha e passei a conviver com um incômodo objeto que utilizo até hoje, o despertador.

Durante todo o ensino fundamental estudei na mesma escola e isso muitas vezes me incomodou. Eu queria conhecer professores e colegas novos, escola diferente, com regras diferentes. Duas tentativas frustradas de ingressar no colégio militar de Porto Alegre me desanimaram nessa história de mudar de escola. Aos 10 e 11 anos fui reprovada em provas de seleção e isso me trouxe alguma experiência, que mais tarde serviu de apoio para outras provas de seleção.
Ao final da 8ª série ingressei, através de prova seleção bem sucedida, na Fundação Liberato, em Novo Hamburgo. Eu começaria a estudar numa escola pública, de qualidade e ainda faria o ensino médio juntamente com o técnico em eletrônica. O fato de morar em Sapucaia do Sul e me deslocar sozinha, todos os dias, para outra cidade me fez criar algumas responsabilidades. Passei acordar mais cedo do que nunca e saía de casa ainda com o céu escuro. Durante dois dias na semana eu tinha turno inverso e passava o dia todo na escola. Era cansativo e me tomava quase todas as energias.
Não consegui me adaptar ao novo ritmo escolar, repetindo pela primeira vez na vida o ano. Eu que sempre tinha sido uma aluna dedicada e esforçada, para obter bons resultados, falhei na minha obrigação. A decepção com a escola e com o curso que eu estava fazendo veio imediatamente. Era muita energia sendo colocada num início de carreira de incertezas, sem falar no dinheiro gasto com materiais para o curso.
Passada a grande decepção continuei na mesma escola e ganhei novos colegas. Faz cinco anos que isso aconteceu e acredito que com a perda de um ano escolar ganhei amigos que cultivo até hoje. Há males que vem para o bem.
Conseguindo ultrapassar o difícil 1º ano da Liberato ingressei no 2º. Parecia que toda aquela dificuldade que obtive quando ingressei na escola havia retornado mais uma vez. Não conseguia acompanhar o ritmo das disciplinas e nem dos professores. Uma pressão familiar estava sendo imposta a mim e eu estava a ponto de explodir. Lembro-me de um ataque de desespero que tive no último mês de aula. Eu tinha que montar um cronômetro digital, para a aula de eletrônica digital, quando, em casa, joguei meu trabalho na parede por que já tinha montado umas quatro vezes e não conseguia faze-lo funcionar. Chorei muitas horas, fazendo com que minha irmãzinha de sete anos tentasse me acalmar com um copo de água com açúcar. Essa cena já havia quase sido esquecida por mim, mas agora, com lágrimas nos olhos e um sorriso no rosto, me sinto estar presenciando aquele momento. Por fim, eu iria repetir mais uma vez o ano escolar, mas antes que isso acontecesse decidi buscar uma nova escola e um novo ritmo de vida.

AS ESCOLHAS

Sempre quando escolhemos um caminho, deixamos de percorrer por outros. O sonho de me formar e ter um curso técnico estavam sendo desmoronados. Minha mãe dizendo que havia me avisado pra não ir para aquela escola, meus avós lamentando sobre o meu desempenho escolar e eu me vendo na situação de procurar e SOZINHA uma nova escola. Sozinha por que me largaram de mão. Nunca me senti tão desamparada quanto naquele momento. Com a ajuda de uma amiga, consegui me matricular na mesma escola que ela estudava. A história dela era bem parecida com a minha, pois ela também tinha passado pela mesma decepção de sair daquela ótima escola que estávamos.
Voltei a estudar, em 2006, numa escola estadual de Sapucaia. Nunca pensei que estudaria naquela escola, pois o nível de aprendizagem era bem mais baixo da Liberato. Professores dessa nova escola me questionavam quanto a minha decisão de sair daquela ótima escola e ir estudar ali onde escolhi estudar. Os primeiros meses foram bem difíceis nessa nova escola. Não conhecia ninguém, a maioria do conteúdo visto em aula eu já havia aprendido na outra escola e os professores não me pareciam estar motivados com o trabalho deles. Não posso generalizar, pois um ou outro professor demonstrou plena satisfação em me ajudar quando decidi estudar por conta própria para o vestibular.
Essa nova escola possuía um sistema de disciplina diferente de outras escolas com o ensino médio. Cada dia da semana era uma disciplina diferente (igual à universidade), o ano era dividido em dois semestres e o próprio aluno fazia suas escolas. Assim, durante o ano, o aluno tinha que fazer o total de dez disciplinas.
Com base na minha escolha de me preparar para o vestibular decidi escolher matérias que caíssem nas provas. No primeiro semestre fiz biologia 2, história 2, português 5, literatura e para fechar os horários também fiz a disciplina de religião. No segundo semestre (2006/2) fiz geografia, física 2, química 2 e matemática 5, deixando as disciplinas de matemática 6, português 6, filosofia, psicologia e sociologia para o semestre de 2007/1 (depois do vestibular).
Resultado dessas minhas escolhas: PASSEI NO VETIBULAR. Eu nunca imaginei que conseguiria passar na 1º vez que faria o vestibular da UFRGS, sem ter feito nenhum cursinho e ainda por cima sem ter terminado o ensino médio. Fiquei muito feliz quando no dia 20 de janeiro de 2007, passando as férias na praia onde meus avós tem uma casinha, cheguei do mar, toda suja de areia e salgada da água e todos começaram a me abraçar e me dar os parabéns. Foi uma felicidade só, até que tinha me dado conta de uma coisa, eu ainda não tinha terminado o ensino médio! Foi um desespero, até que vi meu nome no listão do jornal e eu tinha sido classificada para o segundo semestre, assim poderia terminar até julho o semestre que faltava na minha escola e pegando o certificado de conclusão.

CONEXÕES DE RITMOS

O Conexões de Saberes está sendo um grande aliado na minha formação acadêmica e pessoal, pois a troca de experiências entre os participantes é muito rica. Seria muito bom se todos os estudantes de origem popular pudessem participar deste projeto
Acredito que ultrapassando esses obstáculos, para a minha chegada na universidade, consegui amadurecer rapidamente. Sei que mais obstáculos virão e cada dia me sinto mais forte para seguir os ritmos que a vida me apresenta.

Nenhum comentário: