O sol nasce na rua de casa
Metade
Que a força do medo que tenho
Que a força do medo que tenho
Não me impeça de ver o que anseio
Que a morte de tudo em que acredito
Não me tape os ouvidos e a boca
Porque metade de mim é o que eu grito
Mas a outra metade é silêncio.
Que a música que ouço ao longe
Seja linda ainda que tristeza
Que a mulher que eu amo seja pra sempre amada
Mesmo que distante
Porque metade de mim é partida
Mas a outra metade é saudade.
Que as palavras que eu falo
Não sejam ouvidas como prece e nem repetidas com fervor
Apenas respeitadas
Como a única coisa que resta a um homem inundado de sentimentos
Porque metade de mim é o que ouço
Mas a outra metade é o que calo.
Que essa minha vontade de ir embora
Se transforme na calma e na paz que eu mereço
Que essa tensão que me corrói por dentro
Seja um dia recompensada
Porque metade de mim é o que eu penso mas a outra metade é um vulcão.
Que o medo da solidão se afaste,
e que o convívio comigo mesmo
se torne ao menos suportável.
Que o medo da solidão se afaste,
e que o convívio comigo mesmo
se torne ao menos suportável.
Que o espelho reflita em meu rosto um doce sorriso
Que eu me lembro ter dado na infância
Por que metade de mim é a lembrança do que fui
A outra metade eu não sei.
Que não seja preciso mais do que uma simples alegria
Pra me fazer aquietar o espírito
E que o teu silêncio me fale cada vez mais
Porque metade de mim é abrigo
Mas a outra metade é cansaço.
Que a arte nos aponte uma resposta
Mesmo que ela não saiba
E que ninguém a tente complicar
Porque é preciso simplicidade pra fazê-la florescer
Porque metade de mim é platéia
E a outra metade é canção.
E que a minha loucura seja perdoada
Porque metade de mim é amor
E a outra metade também.
Oswaldo Montenegro
Oswaldo Montenegro
Nasci no dia 9 de outubro de 1970, em Cachoeira do Sul, pequena cidade do interior do Rio Grande do Sul, capital do arroz. Município com economia baseada na produção agrícola. Neste ano Francisco Buarque de Holanda foi morar no Rio de Janeiro, após seu exílio na Itália. Chico foi revolução, em tempos duros de repressão. Foi censurado por qualquer motivo, nos anos 70. Bastava aparecer na censura uma música de Chico que escondia a revolução entre as linhas de suas letras - para a censura agir. Tempos de cuidados redobrados, tempo de calar informações e idéias. Tempo de técnicas predominando sobre a criatividade e o conhecimento na área educação. Tempos de moldar comportamentos padrões.
Jardim de Infância 4 anos – 1975.
“Onde eu deixei minha curiosidade e minha vontade de estar ali?”
Pensamento e reflexão a que eu me propunha após alguns anos da minha entrada na escola, com tanto desejo de estudar e de aprender.
Eu desejei muito ir para a escola e fui matriculada no meio do ano no Jardim de Infância, com um ano de idade a menos que minhas colegas. O desejo vinha do fato de querer conviver com crianças da minha idade, pois eu convivia muito com adultos. Se em casa eu já aprendia e criava muito... Eu acreditava que na escola seria muito melhor. Porém, foi muito complicado estar na escola, pois eu não entendia o porquê de algumas brincadeiras, da exclusão ou seleção de colegas para fazer parte das mesmas, eu havia aprendido a jogar respeitando as regras do jogo até então. Da professora eu lembro muito pouco, nem de ter aprendido algo significativo ou alegre com ela. Os ensinamentos e vivências que eu tinha até então, me foram passados em grande parte pelo meu avô, uma pessoa com valores sólidos e definidos, que ao ensinar contava histórias, olhava nos olhos e falava baixinho.
Assim Alícia Fernandes cita (2001, pg. 28) O saber em jogo:
- Ah! Aprender é tão lindo quanto brincar – respondeu. - Sabe, papai não fez como na escola. Ele não disse: “ Hoje é o dia de aprender a andar de bicicleta”. Primeira lição: andar direito. Segunda lição: andar rápido. Terceira lição: dobrar. Não tinha um boletim onde anotar: muito bem, excelente, regular... Porque, se tivesse sido assim, algo nos meus pulmões, no meu estômago, no coração não me deixaria aprender.
Na escola era impossível para mim, entender as brincadeiras, a exclusão ou aceitação de colegas ao grupo e as regras que decidiam estas situações, porque eu não tinha estratégias para lidar com situações grupais. Passei a ser excluída, e realmente aquela convivência não estava sendo prazerosa como eu pensava que deveria ser. Livros? Nenhum foi lido para mim. Situações de curiosidade? Não lembro... Talvez tenham acontecido, numa sala de aula ainda permeada por conceitos implícitos no sistema ditatorial, que precedeu o golpe militar. Era 1975...
Nova escola em 1976, quando eu entrei no Jardim de Infância com a idade adequada. Escola Marista e particular. Uma das primeiras vivências ainda viva na minha memória é um chapéu de aniversariante que ganhamos nos primeiros dias de aula. E parecia que seria uma festa mesmo, pois minha mãe pagou minha coca-cola para a professora, opcional para as mães que pudessem ou quisessem. Festa total na hora do lanche, embora eu não conhecesse meus colegas (não me foram apresentados) eu tinha a expectativa do lanche maravilhoso... Entra coca na mão da professora, ela vai e volta mais algumas vezes enquanto eu penso “agora vai chegar a minha vez...” A minha vez não chegou e a coca também não. Na saída a mãe perguntou como estava o lanche com coca e eu respondi que estava bom apenas com um gesto de cabeça... Afinal, eu acreditava que adultos não erravam, se enganavam, talvez, em algumas situações.
E o desejo de aprender? O que foi feito com ele?
Aprendi a aprender e a ler e ser, sentada ao lado de alguém que com paciência e respeito me contava suas experiências de vida, histórias antigas da guerra, do povo alemão... Minhas noites eram recheadas de conteúdo, exemplo de bom senso e aceitação. Sempre havia uma nova descoberta ou brincadeira. Muitas histórias me foram lidas e muitas histórias mais me foram contadas.
Após tomar o meu banho diário, sentava no sofá da sala ao lado do meu avô, enquanto minha mãe e minha avó preparavam o jantar, sempre servido na mesa da varanda no mesmo horário onde a família se sentava unida. Para a época e para os padrões morais da cidade uma família não tão tradicional. Minha mãe se separou de meu pai pouco antes do meu nascimento, fui criada pela minha mãe, avô e avó. Sobre a família do meu pai muito pouco eu sabia por que era um assunto proibido e eu não sentia nenhuma abertura para tocar nele, então se criaram na minha cabeça muitas fantasias a este respeito. Até entrar para o jardim de infância eu não estranhava a nossa composição familiar. O convívio com outras crianças da minha própria idade me causou estranhamento. Numa noite perguntei para minha mãe onde estava meu pai, já que eu havia descoberto que não era o meu avô. Ela me respondeu que ele foi embora e que meu pai era meu avô, que me criou. A partir daquele momento então senti que eu era diferente das outras crianças, com alguma ausência que eu não sabia o porquê sentir, nem como explicar. Por um lado eu tinha duas mulheres comigo que eu amava, e por outro tinha um grande homem, mas que era meu avô, não era meu pai.
A amizade que eu tinha com meu avô não podia ser maior. Com ele aprendi a escutar e a ouvir, pois fui ouvinte atenta das histórias da sua infância, da sua mocidade, da sua maturidade. Nas noites de inverno, sentada a seu lado conheci a história da colonização do nosso estado pelo povo alemão, histórias da guerra contadas com a emoção de quem viveu e sentiu o sofrimento na alma. Viajei com eles da Alemanha para cá, vi chegarem ao Brasil e colonizarem suas terras, vi a guerra começar e meus bisavós terem medo de perder um de seus filhos para a guerra... Aquele trem em que meu tio-avô partiu para a Alemanha, mas que no trajeto recebeu a notícia do término da guerra tinha cores no meu pensamento. Imaginei a angústia de minha bisavó, pequena mulher do dedo mindinho quebrado e torto, mas tão forte, não poder se comunicar pelo fato de sua língua ser proibida neste país. Estudei naquela época e conheci a palmatória, os castigos acirrados, os alunos serem chamados de burros. Senti como era árido o espaço de aprendizagem. Escrevi num quadro negro os deveres de aluno, usei sandálias de madeira no inverno frio, entrei na Escola Rio Branco no momento do apedrejamento por ser uma escola de alemães e vi aquele único vidro que ficou intacto, senti o medo de um povo longe de sua pátria e já não sabendo a que lugar pertenciam... Através dos olhos e dos sentimentos do meu avô. Quase conheço as sensações deste tempo de dificuldade.
A cada noite fria surgia uma nova brincadeira ou história. Os papéis em branco viravam cestas, bonecos, casas, estrelas. As massas de modelar viravam aparelhos de jantar, as bonecas viravam princesas, noivas, prendas, tenistas com vestidos feitos de restos das costuras de minha avó... Com restos de lã e tecidos renovávamos o guarda roupa de inverno e verão das bonecas. As caixas de madeiras viravam berços confeccionados pelo meu avô e adornados pela minha avó. Todas as fantasias que eu projetava em minhas bonecas viravam realidades na capacidade criadora dos meus avós e no amor e proteção da qual eu era depositária. A expectativa de ver meus sonhos concretizados artesanalmente me fazia vibrar. Todos os meus brinquedos tinham um significado diferente, pois era a materialização da minha imaginação feita pelas mãos queridas... Aprendi a criar e recriar ali.
1976 - Fora da brincadeira, dentro da escola...
Chegou a hora de aprender a ler. Então recortávamos as letras estudadas e colávamos no caderno para a professora. Além disto, era preciso ler as palavras como tema de casa. Nunca deixei de fazer um tema, todas as palavras foram lidas e com prazer no colo do meu avô, depois do almoço e antes de ir para a escola. Lembro da calça marrom que ele usava, com algumas listras... Os adultos me pareciam confiáveis, me pareciam avós, me pareciam éticos e corretos.
E a escola, parecia um lugar aonde se ia apenas pra aprender a sentar por um longo tempo e juntar as letras.
Os saberes que eu havia adquirido enfim, não eram validados pela escola. Além disto, a inquietação do meu corpo infantil ainda em formação e sua incapacidade de controle para exercer a disciplina necessária para a escola, agregado ao fato de que eu havia aprendido até agora conteúdos de vida com amor e significação, precisar me inserir num contexto da escola dos anos 70, foi no mínimo um esforço difícil e desestimulante. A partir de agora eu deveria “sair na foto” com a mesma roupa, a mesma posição, escrevendo com a mão direita, apesar de ser canhota... Retrato padronizado, como deveriam ser nossos comportamentos e desejos.
Alicia Fernandes (2001, pg29):
“Entre o ensinante e o aprendente abre-se um campo de diferenças onde se situa o prazer de aprender.”
O meu desejo de aprender a escrever vinha atrelado ao fato de poder criar, comunicar, registrar fatos, pesquisar. Porém, o bê-á-bá a que éramos submetidos, não deixava espaço nenhum para o poder criativo. O que tinha significado para professores naquele momento era um aglomerado de vocábulos e suas combinações, e para nós, nenhum sentido claro, nenhuma ligação com as nossas experiências vividas. No jardim de infância tiramos uma foto escolar para recordação. Meu sorriso era amplo, o lápis na mão esquerda. Na primeira série tiramos nova foto para a recordação escolar e meu lápis estava na mão direita, por imposição da professora. Continuei sorrindo e sendo canhota, graças a Deus.
Aprendi a ler e escrever, a sentar, a copiar, a ter horários fixos, a passar tardes no tempo vazio. Perdi um pouco da curiosidade também, mas em casa havia criações, brincadeiras e sonhos.
Alicia Fernandes (2001 pg.30):
“... o ensinante é alguém que crê e quer que o aprendente aprenda. Os verbos querer e crer, se inter-relacionam com outro: criar.”
Jardim de Infância 4 anos – 1975.
“Onde eu deixei minha curiosidade e minha vontade de estar ali?”
Pensamento e reflexão a que eu me propunha após alguns anos da minha entrada na escola, com tanto desejo de estudar e de aprender.
Eu desejei muito ir para a escola e fui matriculada no meio do ano no Jardim de Infância, com um ano de idade a menos que minhas colegas. O desejo vinha do fato de querer conviver com crianças da minha idade, pois eu convivia muito com adultos. Se em casa eu já aprendia e criava muito... Eu acreditava que na escola seria muito melhor. Porém, foi muito complicado estar na escola, pois eu não entendia o porquê de algumas brincadeiras, da exclusão ou seleção de colegas para fazer parte das mesmas, eu havia aprendido a jogar respeitando as regras do jogo até então. Da professora eu lembro muito pouco, nem de ter aprendido algo significativo ou alegre com ela. Os ensinamentos e vivências que eu tinha até então, me foram passados em grande parte pelo meu avô, uma pessoa com valores sólidos e definidos, que ao ensinar contava histórias, olhava nos olhos e falava baixinho.
Assim Alícia Fernandes cita (2001, pg. 28) O saber em jogo:
- Ah! Aprender é tão lindo quanto brincar – respondeu. - Sabe, papai não fez como na escola. Ele não disse: “ Hoje é o dia de aprender a andar de bicicleta”. Primeira lição: andar direito. Segunda lição: andar rápido. Terceira lição: dobrar. Não tinha um boletim onde anotar: muito bem, excelente, regular... Porque, se tivesse sido assim, algo nos meus pulmões, no meu estômago, no coração não me deixaria aprender.
Na escola era impossível para mim, entender as brincadeiras, a exclusão ou aceitação de colegas ao grupo e as regras que decidiam estas situações, porque eu não tinha estratégias para lidar com situações grupais. Passei a ser excluída, e realmente aquela convivência não estava sendo prazerosa como eu pensava que deveria ser. Livros? Nenhum foi lido para mim. Situações de curiosidade? Não lembro... Talvez tenham acontecido, numa sala de aula ainda permeada por conceitos implícitos no sistema ditatorial, que precedeu o golpe militar. Era 1975...
Nova escola em 1976, quando eu entrei no Jardim de Infância com a idade adequada. Escola Marista e particular. Uma das primeiras vivências ainda viva na minha memória é um chapéu de aniversariante que ganhamos nos primeiros dias de aula. E parecia que seria uma festa mesmo, pois minha mãe pagou minha coca-cola para a professora, opcional para as mães que pudessem ou quisessem. Festa total na hora do lanche, embora eu não conhecesse meus colegas (não me foram apresentados) eu tinha a expectativa do lanche maravilhoso... Entra coca na mão da professora, ela vai e volta mais algumas vezes enquanto eu penso “agora vai chegar a minha vez...” A minha vez não chegou e a coca também não. Na saída a mãe perguntou como estava o lanche com coca e eu respondi que estava bom apenas com um gesto de cabeça... Afinal, eu acreditava que adultos não erravam, se enganavam, talvez, em algumas situações.
E o desejo de aprender? O que foi feito com ele?
Aprendi a aprender e a ler e ser, sentada ao lado de alguém que com paciência e respeito me contava suas experiências de vida, histórias antigas da guerra, do povo alemão... Minhas noites eram recheadas de conteúdo, exemplo de bom senso e aceitação. Sempre havia uma nova descoberta ou brincadeira. Muitas histórias me foram lidas e muitas histórias mais me foram contadas.
Após tomar o meu banho diário, sentava no sofá da sala ao lado do meu avô, enquanto minha mãe e minha avó preparavam o jantar, sempre servido na mesa da varanda no mesmo horário onde a família se sentava unida. Para a época e para os padrões morais da cidade uma família não tão tradicional. Minha mãe se separou de meu pai pouco antes do meu nascimento, fui criada pela minha mãe, avô e avó. Sobre a família do meu pai muito pouco eu sabia por que era um assunto proibido e eu não sentia nenhuma abertura para tocar nele, então se criaram na minha cabeça muitas fantasias a este respeito. Até entrar para o jardim de infância eu não estranhava a nossa composição familiar. O convívio com outras crianças da minha própria idade me causou estranhamento. Numa noite perguntei para minha mãe onde estava meu pai, já que eu havia descoberto que não era o meu avô. Ela me respondeu que ele foi embora e que meu pai era meu avô, que me criou. A partir daquele momento então senti que eu era diferente das outras crianças, com alguma ausência que eu não sabia o porquê sentir, nem como explicar. Por um lado eu tinha duas mulheres comigo que eu amava, e por outro tinha um grande homem, mas que era meu avô, não era meu pai.
A amizade que eu tinha com meu avô não podia ser maior. Com ele aprendi a escutar e a ouvir, pois fui ouvinte atenta das histórias da sua infância, da sua mocidade, da sua maturidade. Nas noites de inverno, sentada a seu lado conheci a história da colonização do nosso estado pelo povo alemão, histórias da guerra contadas com a emoção de quem viveu e sentiu o sofrimento na alma. Viajei com eles da Alemanha para cá, vi chegarem ao Brasil e colonizarem suas terras, vi a guerra começar e meus bisavós terem medo de perder um de seus filhos para a guerra... Aquele trem em que meu tio-avô partiu para a Alemanha, mas que no trajeto recebeu a notícia do término da guerra tinha cores no meu pensamento. Imaginei a angústia de minha bisavó, pequena mulher do dedo mindinho quebrado e torto, mas tão forte, não poder se comunicar pelo fato de sua língua ser proibida neste país. Estudei naquela época e conheci a palmatória, os castigos acirrados, os alunos serem chamados de burros. Senti como era árido o espaço de aprendizagem. Escrevi num quadro negro os deveres de aluno, usei sandálias de madeira no inverno frio, entrei na Escola Rio Branco no momento do apedrejamento por ser uma escola de alemães e vi aquele único vidro que ficou intacto, senti o medo de um povo longe de sua pátria e já não sabendo a que lugar pertenciam... Através dos olhos e dos sentimentos do meu avô. Quase conheço as sensações deste tempo de dificuldade.
A cada noite fria surgia uma nova brincadeira ou história. Os papéis em branco viravam cestas, bonecos, casas, estrelas. As massas de modelar viravam aparelhos de jantar, as bonecas viravam princesas, noivas, prendas, tenistas com vestidos feitos de restos das costuras de minha avó... Com restos de lã e tecidos renovávamos o guarda roupa de inverno e verão das bonecas. As caixas de madeiras viravam berços confeccionados pelo meu avô e adornados pela minha avó. Todas as fantasias que eu projetava em minhas bonecas viravam realidades na capacidade criadora dos meus avós e no amor e proteção da qual eu era depositária. A expectativa de ver meus sonhos concretizados artesanalmente me fazia vibrar. Todos os meus brinquedos tinham um significado diferente, pois era a materialização da minha imaginação feita pelas mãos queridas... Aprendi a criar e recriar ali.
1976 - Fora da brincadeira, dentro da escola...
Chegou a hora de aprender a ler. Então recortávamos as letras estudadas e colávamos no caderno para a professora. Além disto, era preciso ler as palavras como tema de casa. Nunca deixei de fazer um tema, todas as palavras foram lidas e com prazer no colo do meu avô, depois do almoço e antes de ir para a escola. Lembro da calça marrom que ele usava, com algumas listras... Os adultos me pareciam confiáveis, me pareciam avós, me pareciam éticos e corretos.
E a escola, parecia um lugar aonde se ia apenas pra aprender a sentar por um longo tempo e juntar as letras.
Os saberes que eu havia adquirido enfim, não eram validados pela escola. Além disto, a inquietação do meu corpo infantil ainda em formação e sua incapacidade de controle para exercer a disciplina necessária para a escola, agregado ao fato de que eu havia aprendido até agora conteúdos de vida com amor e significação, precisar me inserir num contexto da escola dos anos 70, foi no mínimo um esforço difícil e desestimulante. A partir de agora eu deveria “sair na foto” com a mesma roupa, a mesma posição, escrevendo com a mão direita, apesar de ser canhota... Retrato padronizado, como deveriam ser nossos comportamentos e desejos.
Alicia Fernandes (2001, pg29):
“Entre o ensinante e o aprendente abre-se um campo de diferenças onde se situa o prazer de aprender.”
O meu desejo de aprender a escrever vinha atrelado ao fato de poder criar, comunicar, registrar fatos, pesquisar. Porém, o bê-á-bá a que éramos submetidos, não deixava espaço nenhum para o poder criativo. O que tinha significado para professores naquele momento era um aglomerado de vocábulos e suas combinações, e para nós, nenhum sentido claro, nenhuma ligação com as nossas experiências vividas. No jardim de infância tiramos uma foto escolar para recordação. Meu sorriso era amplo, o lápis na mão esquerda. Na primeira série tiramos nova foto para a recordação escolar e meu lápis estava na mão direita, por imposição da professora. Continuei sorrindo e sendo canhota, graças a Deus.
Aprendi a ler e escrever, a sentar, a copiar, a ter horários fixos, a passar tardes no tempo vazio. Perdi um pouco da curiosidade também, mas em casa havia criações, brincadeiras e sonhos.
Alicia Fernandes (2001 pg.30):
“... o ensinante é alguém que crê e quer que o aprendente aprenda. Os verbos querer e crer, se inter-relacionam com outro: criar.”
Mais brincadeiras e sonhos.
Um dia meu avô chegou do trabalho com uma casa confeccionada de isopor nas mãos. Nesta época eu deveria estar com 8 para 9anos. Perfeita: telhado, chaminé, escadas, portas, janelas com batentes impecavelmente detalhados. Não acreditei!!! A casa me foi entregue nas mãos e eu ainda ouvi meu avô me dizer para tirar o telhado. Lá dentro havia a sala: mesa, com cadeiras, sofá e o quarto com cama, impecavelmente construídos. As janelas e portas abriam. Definitivamente era ali que eu queria ir morar. E lá fui morar não sei bem por quanto tempo com minhas bonecas. Era o meu espaço de sonhos e de histórias.
Poderia haver no mundo alguma criança que tivesse um brinquedo com maior valor do que o meu?
Eu cuidava muito para que a fragilidade do material não me impedisse de sonhar e para que eu não tivesse que sair dali. Era perto: qualquer chateação com minhas colegas na escola, alguma brincadeira maliciosa que me fizesse sofrer, as frustrações que iam chegando, era só fazer voar o pensamento até lá e brincar.
Passei um tempo bom, lidando com o fato de não ter pai compensado pelo amor dos avós.
Um dia peguei meu tesouro nas mãos e fui até a casa do meu tio brincar com uma menina que estava passando as férias na casa da vizinha dele. Cheguei com ares de superioridade, pois eu tinha uma casa de isopor que abria portas e janelas e era totalmente mobiliada. Mas a menina da capital também tinha sua casa. De madeira, dois andares, sacada, colorida... Como poderia? Aquela casa era realmente linda, maior, mais espaço, mais móveis, vermelha... A partir dali senti que eu não poderia mais morar na minha casa de isopor. Havia outros lugares melhores, coisas diferentes para se ver... Não se construíam sonhos somente dentro da minha casa e com avôs e avós... Havia coisas diferentes para ver. Onde estariam? Que mundo era este?
Passei a querer conhecer novas pessoas, situações, cidades (pois não viajávamos muito). Passei a ter curiosidade e achar pequeno o mundo que eu vivia. Passei a sentir falta de um pai, pois estava na hora de alguém me dar a mão para eu conhecer o mundo fora de casa. Não havia abertura nenhuma para falar nisto com minha mãe, e eu não sabia nem o porquê disto. O máximo da informação que obtive é que eu possuía uma tia em Porto Alegre.
Faltava alguém na minha vida. Meus avós estavam ficando mais velhos e eu mais adolescente, então aconteceu uma dificuldade de comunicação, um distanciamento nos nossos interesses, pois eu queria viver novidades. Aquela rotina não me bastava mais.
Na vida conhecendo pessoas realmente diferentes...
Foi muito bom quando minha mãe arrumou um namorado que de verdade entrasse na nossa casa, que conversasse comigo e que nos levasse para passear em novos lugares. Com dez anos e com as vivências que eu tinha com meu avô, além do fato desta convivência ser autorizada por minha mãe, parecia uma novidade boa. Por um tempo foi muito bom, passear, acampar, aprender a nadar...
Porém com o passar do tempo esta convivência se tornou conflituosa. Era mais uma pessoa na nossa casa e acabamos perdendo a liberdade. Meus avós ficaram chateados com minha mãe. Os conflitos começaram a se tornar maiores, eu percebia que meus avós sofriam. Eu me tornei adolescente e lidar com meus próprios conflitos dentro de outro conflito era angustiante. Comecei a ter amigos e querer ficar fora de casa. Era melhor em casas de pessoas mais felizes e harmônicas.
Por conseqüência, me afastei da minha casa, dos meus avós. Na escola, o passei pelos anos finais do ensino fundamental com dificuldades em matemática.
Primeiro grau terminado e estava na hora de eu trocar de escola, fazer o magistério e realizar o sonho da minha mãe, enfim, de ser o que ela não foi. Fui estudar na Escola Estadual João Neves da Fontoura, era 1985. Neste ano aconteceu a primeira greve do magistério que existe na minha lembrança, e eu fiquei três meses parada durante o ano sem entender nada. E estudei nas tardes de sábados e no verão sem entender o porquê também. Também não percebi que eu estava matando aula demais e perdendo conteúdo. Afinal, eu pensava que se a escola poderia descumprir a sua parte eu não precisava cumprir a minha à risca. Poderia fazer mais ou menos como os professores faziam. E eu perdi o rumo da conversa. Como resultado eu repeti o ano. Acho que minha mãe percebeu que eu estava perdida e ficou com medo dos seus sonhos não serem realizados, então fui fazer o magistério na Escola Imaculada Conceição, ali não havia muita possibilidade de transgressão.
Estava com 15 anos e numa fase difícil da minha adolescência, que se juntou com a solidão que eu sentia, pois eu minha mãe se tornou ausente naquela época. Se eu precisava ficar longe dos conflitos causados pelo namorado dela, é lógico que ela estava muito chateada comigo. Achei uma forma de viver as coisas que eu não podia e não tinha: eu lia. Lia muito, lia tudo, procurava amigos, histórias, magias e soluções nos livros. Eles eram curiosos por que dentro de cada um havia algo diferente. E eram seguros também, como a minha casa de isopor, eu entrava e saía quando queria. Nem pensava em adquirir cultura ou conhecimento, somente em tirar meu pensamento das angústias que eu tinha. Não percebia que para a idade que eu tinha, ler Olga Benário Prestes e as Brumas de Avalon e Papillon não era muito comum. Eu só queria histórias.
Descobri pouco depois o prazer de estudar no segundo ano do magistério e notei que com pouco esforço eu fazia o que as colegas faziam com muito empenho, e também que eu tinha habilidades para desenho pintura e que estudar como ensinar pessoas me interessava, embora eu não tivesse na prática muita noção do que seria isto.
No 2° ano do magistério conheci a professora de Literatura Magda Scota. Eu andava muito revoltada, com dificuldade de ficar em casa por não suportar mais a situação que se criou. Então após a realização de um teatro, proposto pela professora, onde eu não quis participar por não poder escolher o personagem que eu achava adequado as minhas vontades, Maga, aquela mulher com fama de dura, me perguntou por que eu nadava tão revoltada. Eu não sabia responder. Então ela me deu um livro para ler: O Fio da Navalha.
Quando eu devolvi, ela me perguntou o que eu aprendi com o livro e rapidamente eu comecei a fazer um resumo do mesmo. Fui interrompida pela professora quando ela falou que não perguntou o que eu li, mas o que eu aprendi. E eu ouvi: “depois da tempestade sempre vem a bonança”. Então eu aprendi que tiramos lições das histórias e que as dores e angústias passam, a lição mais útil e prática para a vida que eu recebi de uma professora, também rompi ali com a idéia de que as professoras eram autoritárias e arbitrárias.
Aprendi que era melhor conhecer do que desconhecer e no terceiro ano do magistério eu já estava com notas muito altas em todas as disciplinas. Realizei meu estágio tendo apenas aprimorado uma técnica, sem ainda entender direito o valor de educar um ser humano.
Entrei para a Faculdade de Ciências e Letras de Cachoeira do Sul, para cursar Pedagogia, sendo a única possibilidade que se configurava numa cidade pequena, sem possibilidades de escolha e de trabalho. Fiz o concurso para o município, passei e fui trabalhar na zona rural. Comecei a dar aula em uma escola onde eu precisava administrar a merenda, a biblioteca e a organização da mesma. Lecionava de 1° a 5° séries na mesma sala de aula, única da escola. Para chegar até a escola eu precisava andar 15 km de ônibus, atravessar o rio de balsa e andar mais 5 km até a escola. Muito difícil em época de verão, mas impossível a travessia em época de chuvas. Após um ano fui transferida para a Secretaria do Município duas quadras de distância da minha casa.
Eu estava grávida. Então casei e vim morar em Porto Alegre logo após o nascimento do meu primeiro filho: Hector. Senti quando Hector nasceu, re-significar minha capacidade de amor verdadeiro, aquela criança saiu da minha barriga deitou no meu ventre e tão pequeno levantou a cabeça e procurou meu olhar. Entendi o vínculo do amor, de um amor que chegava a doer e pelo qual, pela primeira vez na minha vida me vi capaz de dar minha própria vida. Mudei minha forma de entender o mundo e as pessoas, passei a ser significativamente melhor. Realmente eu não estava mais sozinha.
Abri mão do meu concurso em Cachoeira do Sul, e agora deveria batalhar um espaço em Porto Alegre.
Aí entrou na minha vida a vontade de estudar na UFRGS. Com a faculdade feita no interior, ficou difícil entrar no mundo do trabalho em Porto Alegre. Mas eu queria muito voltar a trabalhar, então consegui emprego numa escola de educação infantil. De todas as coisas que me desmotivaram naquele trabalho, uma marcou o caminho que eu seguiria. A coordenadora pedagógica da escola era aluna da pedagogia na UFRGS, e ela conhecia coisas que eu não conhecia. Despertou meu desejo de saber o que eu não havia entendido e compreender por que aqueles alunos sabiam mais do que eu. O negócio era estudar muito, ler muito, procurar entender o que acontecia em sala de aula. Eu não perdia nem uma oportunidade de fazer cursos ou ler sobre educação que foram me surgindo.
Fiz o concurso para o município de Cachoeirinha e fui nomeada Supervisora em 1996. Trabalhei pouco tempo lá, pois nasceu meu segundo filho, então a distância e o tempo de locomoção se tornaram obstáculos muito difíceis de vencer. Aceitei um contrato para o estado e fui dar aula na Escola Otávio de Souza ao lado da minha casa. Fui ser professora pela primeira vez com vontade de fazê-lo. Em cada ano eu dava aula para uma série, pois eu estava curiosa para conhecer vivendo tudo que eu poderia como docente. Ao aceitar uma 2° série no segundo ano que eu estava na escola, comecei a me questionar o que fazia com que aquelas crianças aprendessem, e a questionar o meu fazer pedagógico. Achei as soluções cursando Especialização em Psicopedagogia Clínica na Universidade Luterana do Brasil em Canoas. Este curso entrou na minha vida em 2001, pela vontade que eu tinha de conhecer melhor a cabeça das pessoas, e o que motivava os seres humanos a aprenderem ou não, a irem adiante apesar dos obstáculos ou parar de crescer.
No ano de 2004, fui removida para a Supervisão da Escola Rio Branco, onde eu permaneci por um ano e meio.
Em julho de 2005, fui removida novamente para a Escola Anne Frank, onde assumi uma classe de 4° série. Não me passava pela cabeça voltar para a Supervisão tão logo, mas a diretora da escola me convidou para assumir a supervisão da EJA. Aceitei o desafio e no final do ano passei a vice-direção desta modalidade de ensino. Este fato ocorreu simultaneamente a minha separação onde de todas as formas a vida me mostrava como ela poderia ir pela via oposta dos meus desejos e vontades.
Alexsandro dos Santos Machado, Contar para Viver.
“A verdade é que tudo se desencadeia e se desenvolve logicamente. Jesus o disse: não se colhem figos de abrolhos.”
E eu deveria me desenvolver, porque este era o meu desejo. Ver a vida como ela era para pessoas que possuíam dificuldades e falta de possibilidades. A mesma falta de possibilidades que eu tinha me seduzia, me chamava de volta.
Eu tive algumas dificuldades para voltar a estudar e no ano de 2008, surgiu a oportunidade de fazer a Especialização em Proeja na UFRGS.
Aprecio até hoje trabalhar com pessoas que possuem dificuldades inúmeras mas conseguem vencê-las; ou não. Vejo-me nelas. E penso que se eu fosse mais orientada e ajudada, e me permitisse ser mais orientada e ajudada eu poderia ser melhor para mim mesma e para as pessoas que vivem comigo.
Eu me tornei professora no momento em que dava aula na 2º série e me perguntei o que levava aqueles alunos a aprenderem ou não. Eu me tornei professora vivendo com os aprendizes e procurando entender a direção dos seus olhares e como fazer para ampliar este campo de visão.
Nesta mesma segunda 2° série, em que descobri prazer em ensinar, eu fui professora do Robson. Este aluno tinha idade avançada para a série e um histórico de evasão. Naquele ano ele ficou comigo pelo fato de que foi tratado com respeito. Ele era inteligente, bonito, tinha uma letra legível que eu lembro até hoje. Aprendeu a gostar da escola. Fazia rápido suas tarefas porque eu tinha alguns jogos muito simples no armário, disponíveis para os alunos que terminassem suas atividades. Ele passou para a terceira série, passou para a quarta série e já não gostava mais da escola. Evadiu.
Dia destes, resolvi passear a pé pelo Bairro Jardim Botânico e fui até o Shopping Bourbon na Avenida Ipiranga tomar sorvete. Na saída, desci pelas escadas que dão acesso a Rua Guilherme Alves, eu vi um menino encolhido que se virou e me pediu: - “tia dá um dinheiro aí!” Por meio segundo ele parou e me olhou..
“Professora Ana...”
Hoje ele ainda está pedindo dinheiro para comprar crack naquela esquina.
Ele talvez, não tivesse percebido que o sol nasce na rua da casa de todas as pessoas.
Eu gostaria que as escolas e os professores conseguissem entender melhor o coração de seus alunos, que ela fosse um lugar aonde se vai para aprender a desenvolver potencialidades e não se esquecer dos sonhos.
Hoje eu entendo a função e necessidade da Educação de Jovens e Adultos, pois aqueles que conseguem chegar até nós, tem maiores possibilidades de realização pessoal e profissional, numa sociedade que não produz espaços de igualdade para os seus cidadãos.
Eu gostaria que houvesse maior entendimento do valor que tem a educação para a formação de sujeitos realmente capazes de apropriarem-se de sua vida e seu espaço social.
“Os sonhos nos fazem caminhar...
Os sonhos, as utopias são necessárias porque nos transformam,
pelo simples fato de serem uma projeção de nós mesmos,
uma vontade de potência de ir além da obviedade.
Nunca nos tornamos efetivamente o que desejamos ser.
Sim, é verdade que os sonhos são ilusões e as utopias são inatingíveis.
mas os desejos tem um poder
imensurável de nos metamorfosear, de nos levar adiante.”
(Alesxandro dos Santos Machado)
Os sonhos, as utopias são necessárias porque nos transformam,
pelo simples fato de serem uma projeção de nós mesmos,
uma vontade de potência de ir além da obviedade.
Nunca nos tornamos efetivamente o que desejamos ser.
Sim, é verdade que os sonhos são ilusões e as utopias são inatingíveis.
mas os desejos tem um poder
imensurável de nos metamorfosear, de nos levar adiante.”
(Alesxandro dos Santos Machado)
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