Memorial de Jaderson de Oliveira Fagundes

Nasci em uma cidade do interior do Rio Grande do Sul, muito tranqüila, diga-se de passagem. Quando cheguei do hospital em casa, logo após o meu nascimento, a minha irmã que já tinha uma experiência de vida acumulada ao longo de um ano e cinco meses tratou de me passar uma primeira lição. Uma bofetada, isso mesmo. Eu não lembro deste fato, mas meus pais costumam comentar deste dia e falar do ciúme dela quando eu cheguei pra dividir o espaço com ela. Temos um irmão mais velho, mas até eu nascer a minha irmã é que era a criança pequena de casa. Meus pais sempre nos trataram com igualdade, sem privilégios para um ou para outro. Fomos criados de forma simples, mas apesar da simplicidade, sempre tivemos a sensação de estarmos bem amparados.

Até mais ou menos os meus dois anos de idade eu só sei as coisas que contam ao meu respeito, mas a partir daí começo a ter as minhas lembranças. A primeira é bem estranha, lembro de estar dormindo na sala de casa, acordar, levantar e ver que eu tinha três possibilidades de caminho dentro de casa (uma porta à direita, outra à esquerda e um corredor à frente). Lembro de me perguntar o que fazer - Para onde eu vou? O que devo fazer? Eu não sei direito porque eu lembro disso, mas sei que a sensação que tive aquela vez, eventualmente, ainda sinto. Acredito que aquele fato ocorrido na infância tenha sido a marca para a minha primeira noção de existência.

Lembro de ver na televisão noticias de crise econômica, pacotes, troca de planos, desemprego, violência, uma série de problemas que me pareciam tão distantes. Eu não tinha noção do quanto os meus pais trabalhavam para que tudo aquilo nos atrapalhasse o mínimo e, ainda assim, tudo era muito controlado. No inicio da década de noventa começou a se falar na possibilidade de uma mudança do interior para a capital em virtude de o meu irmão mais velho estar concluindo os estudos e da falta de oportunidades que a cidade oferecia tanto para quem queria estudar quanto para os que queriam trabalhar. Eis que em 1992 conseguimos nos mudar para uma cidade da grande porto alegre. Era no mês de fevereiro, época de férias escolares, lembro de ver muita gente na rua, pessoas mendigando, outros tantos trabalhando muito para garantir o sustento, várias realidades e histórias diferentes, parte de tudo aquilo que para mim parecia distante até pouco tempo antes começa a tomar forma bem próximo de mim. Lembro que a primeira música que ouvi no rádio começava com uma exclamação que dizia: - É campo minado meu brother! A música em si era simples, mas essa expressão me parecia refletir bem tudo que acontecia, a batalha diária de cada um. Eu tinha entre nove e dez anos de idade nesta época e entendo que neste momento o meu distanciamento da realidade começa a se quebrar. Tudo que passei a ver ali eu só ouvia falar lá no interior. Acho que foi uma “segunda bofetada”, desta vez não era apenas uma reação de ciúme como tinha sido na primeira que levei, mas sim um momento de ver que aquela noção de existência sugerida para os meus dois anos de idade estava amadurecendo, e neste processo, novas dúvidas referentes ao futuro me ocorriam. Será que naquele contexto se poderia ter uma trajetória diferente?

Em 1993 meu irmão passa no vestibular para o curso de farmácia na universidade federal. Já era o seu terceiro vestibular e a aprovação gerou uma grande alegria para a família toda, uma nova perspectiva para mim. Eu acreditava que também poderia estudar em uma instituição de ensino superior, sabia que seria na universidade federal e apostava que fosse cursar farmácia, mas antes disso tinha que concluir o ensino fundamental e médio. Sempre tive um rendimento bom no período escolar, mas na hora de por a prova os conhecimentos adquiridos na escola a realidade não foi das melhores. Existia um distanciamento muito grande entre o que era oferecido na escola em termos de conteúdo e o que era cobrado no vestibular. Fiz três vestibulares para farmácia (a opção por farmácia, talvez, tenha sido um pouco em função de eu ser muito fã do meu irmão e querer seguir os seus passos). No terceiro eu quase passei, fiquei muito frustrado por não conseguir e desisti da faculdade. Foi um momento de perda de foco onde passei a me dedicar muito mais ao trabalho do que aos estudos. Sempre fui muito responsável, mas na época não pude perceber a irresponsabilidade dessa minha decisão.

Em paralelo ao trabalho, eu participava de um time de Vôlei amador que representava o município em alguns campeonatos da capital, região metropolitana e interior do estado. Este grupo era formado por pessoas que traziam uma diversidade de conhecimentos (nas áreas de engenharia, administração, publicidade, biológica, artes plásticas, comercio, nutrição, direito, profissional da educação física e, principalmente, uma diversidade de saberes que se adquire fora do mundo acadêmico) que exerceram grandes influências na minha formação. Eu nunca tinha parado para refletir sobre o problema de perder coisas importantes ao longo da vida. Meus avôs já tinham falecido quando eu nasci e por isso eu sentia a ausência deles de uma forma bem mais amena e além deles não havia perdido mais ninguém de minha família, nem amigos, enfim, eu não tinha referência para conseguir atribuir valor de importância as coisas que me aconteciam. Acreditava que só a minha família e os meus amigos representavam o que eu tinha de valioso, mas esquecia de dar atenção para o meu futuro. Todas as vivências que tive participando deste grupo ajudaram a mudar um pouco isso. A relação entre ganhar, perder, desistir ou superar as dificuldades foram bem trabalhadas neste momento. Para cada derrota ficava uma lição e para cada vitória uma motivação a mais que se estendia pra fora do convívio naquele grupo. Foi um momento de reestruturação de idéias e valores, momento de perceber coisas óbvias, de entender que os pais não são eternos, os irmãos tendem a seguir pelos seus caminhos e os amigos acabam indo ao mesmo ritmo. Momento de perceber o quanto às pessoas dependem umas das outras e de ver que o somos muito responsáveis por tudo que fazemos ou deixamos de fazer em relação a todos ou, ainda, por nos mesmos.

O que eu acho interessante nesta fase é que em paralelo ao meu processo de amadurecimento de idéias o grupo todo amadurecia em si o conceito de integração social através do esporte. Éramos apenas um grupo que praticava um esporte por lazer, mas que ao longo do tempo começou a sentir uma necessidade de socializar os espaços conquistados, oferecendo oficinas, criando projetos para desenvolver a prática esportiva com crianças e idosos entre outras ações. Em nome desta causa foi fundada uma associação registrada e com todos os seus pré-requisitos institucionais.

Meus pais nunca deixaram de demonstrar o desejo de que eu fizesse vestibular novamente e usavam o exemplo do meu irmão que, já formado, começava a construir a sua vida. O trabalho que eu tinha garantia o meu mês, mas não garantiam o meu futuro e, assim, pensando diferente, com uma nova motivação pra conquistar objetivos, me organizei para superar as dificuldades que me tinham feito desistir.

Fiquei sabendo da existência de um cursinho pré-vestibular popular que funcionava no centro da capital e tratei logo de fazer a minha inscrição. O cursinho era a extensão de uma ONG que prestava serviços de distribuição de remédios e reintegração social de transplantados renais. A mensalidade do cursinho dava manutenção aos serviços da ONG. Toda a caminhada (crescimento pessoal) feita até então mais o apoio das aulas do cursinho me dava a certeza de que naquela vez as coisas seriam diferentes. As novas percepções de realidade, de enquadramento, me davam segurança pra questionar e ir além em termos de aprendizado. Foi onde o meu interesse por Física se tornou evidente e acabou com aquela idéia de cursar Farmácia que eu tinha nos primeiros vestibulares. Sentia-me com autonomia e conhecimento para decidir que caminho seguir, assim, me inscrevi no vestibular para o curso de Física Licenciatura e consegui aprovação no concurso daquele ano.

A alegria de conseguir passar pelo filtro que é o vestibular logo se confrontava com as dificuldades do curso. Acredito que o início seja um pouco complicado para todos, mas, também, que as coisas comecem a entrar nos eixos sem muita demora e, com isso, as dificuldades diminuam. Não tinha dúvida de que a formação que recebia ali faria de mim um bom profissional, por outro lado, apenas orientar e despertar o interesse de outros pelos assuntos aos quais estou me dedicando na faculdade se traduziria somente em uma realização profissional. Talvez, neste momento, eu estivesse querendo mais do que isso. Já tinha algum conhecimento sobre ações de movimentos sociais, ONGs, até porque participava de uma associação esportiva que praticava ações neste campo. Entendo que algumas das oportunidades que tive nem todos terão (estar universidade, por exemplo) e que a mudança desta perspectiva (a da falta de oportunidades) dependa de ações que vão além do profissionalismo. Uma pessoa que teve papel importante nesta fase da minha caminhada, que conheci lá na faculdade, foi a minha namorada. Além de todos os bons momentos que passamos, com ela tive a oportunidades de presenciar práticas que até então só conhecia na teoria, por exemplo, um tele-centro que oferece oficinas, cursos gratuitos e acesso livre a internet com uma visão que vai além da inclusão digital. Também conheci o Programa Conexões de Saberes (do qual ela fez parte em mais de uma edição) onde vi a possibilidade de começar a criar os mecanismos necessários para uma participação efetiva nas questões de demanda social e agregar valores diferenciados a minha formação acadêmica.

Do método de construção de uma história baseado em memórias surgem sentimentos de apropriação e questionamento das lembranças. Devido às particularidades do memorial rapidamente começa a se formar um movimento de auto-reconhecimento e, com isso, de apropriação da história construída via experiências individuais ou de convívio social. A continuação deste processo nos leva ao questionamento das lembranças objetivando entender qual a influência de nossas escolhas durante a trajetória de formação pessoal. Tendo atingido este ponto e não esquecendo que o processo é contínuo, posso me dizer Jaderson, nascido em Cachoeira do Sul, aluno de graduação em Física pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, filho do Seu Antônio e da Dona Maria, irmão do Jéferson e da Janifer, namorado da Carla, muito agradecido pelas oportunidades que venho tendo ao longo da vida (família, amigos, experiência, orientação,...) e entendedor de que a indiferença relativa às questões sociais tidas como problemáticas somente alimentam o problema.

A história coletiva é também constituída pela história de cada um. Enquanto personagens dessa história, sigo me construindo e, cada vez mais, me questionando o quanto o meu papel social influencia no rumo que seguira a coletividade.

Jaderson de Oliveira Fagundes
Conexões de Saberes/2009
Território Escola Aberta

Um comentário:

João Paulo Zimmermann disse...

Li o teu memorial e me lembrei de uma cena de um filme que vi certa vez.

http://www.youtube.com/watch?v=pdFbfP_iYl0