Memorial de Juliane da Costa Furno

Foi no dia 08 de julho de 1989, em uma noite chuvosa e fria, que ouvi-se, pela primeira vez, um choro que ainda iria por demasiado adentrar os ouvidos daquela mãe. Nascia coberta de sangue e com movimentos bruscos, naquela noite em que a ascendência cósmica estava no signo de Virgem e a Lua em Leão, uma menina sensível e apaixonada. Juliane da Costa Furno “estrelou”, como outrora dizia sua mãe, no mundo.
Desde pequena cultivou a curiosidade pelas “coisas” e pelo mundo. No seu aniversário de um ano, no primeiro da década de 90, Juliane, ao visualizar uma garrafa de vidro, deu início ao que, mais tarde, constituiria um dos maiores traumas de Normândia da Costa Furno, sua mãe. Um acidente terrível dá fim a festa e Juliane é levada aos prantos para o Pronto Socorro. Vinte pontos no rosto, uma cicatriz deslumbrante e uma lição não apreendida: Nunca brincar com o perigo.
Aos seis anos, Juliane foi matriculada na Escola Estadual de Ensino Fundamental Visconde do Rio Grande, por onde passaria 8 importantes anos de sua trajetória. Com muito medo do brinquedo “Gira Gira”, único situado no pátio do colégio – naquele tempo já se mostravam os primeiros cortes de verba na educação básica - Juliane passava seus recreios isolada brincando de boneca.
Desde pequena Juliane sempre defendeu muito seu irmão mais velho, Lucas, que comumente apanhava dos amigos da escola. Não se sabe de onde brotou tanto sentimento de amor, alguns falam que tais características são bem próprias de uma canceriana, mas Juliane nunca acreditou ferrenhamente em signos e astrologia. Enfim, sempre amou muito o seu irmão e a ele depositou demasiados cuidados. Dentro de casa configurava-se o mesmo cenário. Normândia sempre trabalhou muito, Elinton, o pai, mais ainda. Nervosa com as dificuldades do trabalho no Banrisul e, sistematicamente cansada da dupla jornada de trabalho a que historicamente as mulheres têm sido submetidas, ela chegava cansada e batia nos filhos, aliás, na filha, uma vez que Juliane sempre apanhou pelo irmão, no intuito de defendê-lo. Lucas, porém, em raros momentos retribuiu tais manifestações de carinho. Ao contrário, sempre que podia batia na sua irmã.
Na escola e na Igreja sempre gostou de ler. Talvez aqui se apresentem os primeiros sinais da sua fácil desenvoltura em público. Preferia sempre a narradora à personagem principal nas peças de teatro colegiais. Na oitava série, sua realização pessoal concentrava-se em ser escolhida a oradora da turma na formatura. No entanto, tudo seria perfeito se não existe – ocupando a mesma sala de aula - a Jéssica, menina doce e muito querida pela turma. Sabendo da certeira escolha de Jéssica como oradora da formatura, Normândia já mostrara os primeiros sinais de intercessão por sua filha. Vai à escola e convence a diretora, nas escuras, a propor dois nomes. Juliane, no entanto, se frustrou ao saber da ingerência da sua mãe sob as especificidades da sua turma, o que não durou muito, posto que sua felicidade se completara.
Muitas foram as lágrimas no final de um ciclo que se encerrava. Aliás, lágrimas sempre foram o sobrenome dessa menina. Terminado o Ensino Fundamental uma nova janela se abria. Aquelas férias de 2004 foram marcadas pela expectativa de adentrar em uma nova fase, cheia de responsabilidades, conflitos, dores e amores, enfim, a adolescência no seu auge.
Não foi por acaso que a Juliane foi ser chamada, pela SEC, para estudar no colégio Julio de Castilhos, vulgo “Julinho”. Para sua mãe, no entanto, a surpresa foi tamanha, uma vez que a filha não a contara que o Julinho havia sido sua primeira opção da lista da Secretaria da Educação, mentindo que havia sido o Parobé, escola mais renomada e menos estigmatizada.
Mal ela sabia que no Julinho viveria os melhores anos da sua vida, e de fato assim se sucedeu. Uma escola para Vida. “Morreu inocente quem não passou pelo Julinho” essa inscrição existe em uma parede lateral da escola, entretanto, faz-se mais presente na mente de cada “Juliano ou Juliana”. Lá ela experimentou e experienciou as suas “primeiras vezes”. Primeiro trago de vinho barato da vila planetário, primeiro namorado, primeiro grande amor, primeiro envolvimento político, primeira grande briga, primeira vez que sentiu muita saudade de um lugar concreto, primeiras verdadeiras amizades, primeira vez que matou aula, que saiu de tarde e só voltou no dia seguinte no primeiro ônibus. Enfim, grandes vivencias que acompanham intensamente a sua vida.
Entretanto, entre tais importantes momentos vividos, um deles sobrevive com demasiada força e convicção. O envolvimento político era dado. Em uma escola que carrega no seu âmago a tradição do combativo movimento estudantil gaúcho não poderia passar indiferente a ela. Não bastou uma semana de aulas para que seu espaço favorito fosse a sala do Grêmio Estudantil. Juliane, que jamais conseguira ser indiferente as desigualdades e injustiças sociais, tomou, para si, naquele instante, o compromisso de um engajamento contínuo rumo a superação desse sistema político e econômico de exclusão e exploração.
A partir de então, com as discussões políticas e o ativismo estudantil, Juliane decide traçar o rumo de cientista social - talvez pelo amor a licenciatura, pela vontade de lecionar sociologia, pelo gosto pelas descobertas teóricas - não sei, nem ela sabe, só sentia. A opção pelas ciências sociais, apesar de todo embasamento teórico e racional, havia uma misto de sentimentos inexplicáveis, típico de uma pessoa muito sentimental, que a fazia crer que poderia ser muito útil a sociedade.
Em 2009, último ano na escola, Juliane decide dedicar esse ano aos estudos preparatórios para o vestibular. Muitos sacrifícios e horas diárias de estudo balizaram esse peculiar período da vida. Não foi em vão. A aprovação veio em 20 de janeiro de 2007. Ela era a nova bixo da UFRGS para surpresa total da família que em poucos momentos acreditou que aquela menina festeira e envolvida das “agitações” como denomina seu pai, conseguiria a aprovação.
Um novo ciclo se fecha. Agora as responsabilidades aumentam, a adolescência se vai, e uma porta se abre. A chegada na Universidade não veio sozinha, junto a ela vieram sonhos, ilusões, expectativas. Agora estaria imersa em um curso com posicionamento político, com grandes professores, com colegas super engajados. Dois dias de aula e o primeiro desapontamento. A universidade se constituía como um mundo a parte, distante da realidade. Parecia uma ilha. Juliane que procurara na universidade, e mais especificamente - nas ciências sociais - subsídios e embasamentos para a transformação da sociedade, encontrou o discurso da “neutralidade” acadêmica e descobriu que a lei da Antropologia era o “distanciamento” e a “não intervenção”. Conheceu um ambiente universitário de professores arrogantes, de disputadas de egos, de estudantes acomodados. Viu que a universidade só expressava uma cor, um discurso, uma cultura e um ponto de vista. Notou que nas cadeiras de história ainda não se falavam de negros, afora no Brasil colônia - como escravos - passando-os de escravos a ausentes. Notou que a história ainda era contada do ponto de vista dos vencedores, do homem branco, de cultura européia. Porém, tais desilusões foram essenciais para que ela não se acomodasse. Nos primeiros meses de aula conheceu a luta pelas Ações Afirmativas e logo se identificou com ela. Com muito amor e convicção lançou-se na ferrenha disputa pela conquista das Cotas na Universidade.
Após esse importantíssimo avanço, o debate passou a se territorializar. Agora era necessário fazer transformações nas Ciências Sociais. Nesse sentido, quis ser “cupido” e fazer casamentos. No entanto, esse casamento que ela se empenhou em arranjar para os demais colegas era o casamento com a “pedagogia do compromisso”. Passou a denunciar a “neutralidade” acadêmica como causadora de fortes resultados. Para ser abrangente, pintou um muro. Não sabia que a pergunta “para que(m) serve teu conhecimento” fosse lhe trazer tanta dor de cabeça. A sugestiva questão não agradou a todos, e Juliane foi surpreendida em uma tarde com o anúncio de um processo administrativo, por “vandalismo, pichação e depredação do patrimônio público” Foi muito acusada por um setor da Universidade e bem defendida por outro. Quase não suportou essa pressão. Sensível, sempre chorava ao comentar o assunto. Em uma quinta-feira de sol a frase no muro foi apagada, calada por uma tinta laranja. “Apagaram tudo/ pintaram tudo de cinza/ a palavra no muro/ ficou coberta de tinta/só ficou no muro/tristeza e tinta fresca” (Marisa Monte).
Enfim, a Universidade tem sido, para Ju, um espaço de imensas disputas, de fortes aprendizados. Ela lhe deu novos amigos, novas convicções, novas perspectivas, a primeira dor de cotovelos, novos pensares e (re)pensares sobre o mundo, a sociedade, a ciência e a licenciatura.
Ela descobriu a paixão pela Extensão, pela produção de conhecimento também para fora dos muros da Universidade. Descobriu, e enfatizou a resposta para que(m) serve o teu conhecimento. E esta resposta selou um compromisso, uma opção política. Deu respostas a indagação “De que lado você samba” e resolveu sambar do lado do povo, sempre.
No programa Conexões de Saberes ela conheceu seu chão, sentiu-se, verdadeiramente, “em casa” dentro da UFRGS. Vislumbrou pessoas da sua origem, da sua cultura, do seu modo de ser e perceber o mundo. Ela sentiu-se verdadeiramente útil. Sentiu que sua pesquisa e extensão correspondiam a um público real. Compartilhou suas angústias e conheceu seus verdadeiros pares. Sempre buscara o diálogo entre o conhecimento universitário e o conhecimento popular. Almejava a extensão universitária sem a invasão cultural, como acusou Paulo Freire, que pairava sobre a mente dos “acadêmicos”
Em 2008, deu seus primeiros passos na direção das descobertas de seu lugar nas ciências sociais, curso ao qual sempre se manteve apaixonada. Descobriu um grande apreço pelos estudos de Sociologia Rural, aliados com a temática de gênero que sempre caminhou com sua militância política.

3 comentários:

tlrq disse...

Uma história marivilhosa de se conhecer; espero que os muros da vida não mudem sua personalidade tão marcante; cativante e de desejo de mudança...

Washington Assis disse...

História interessantíssima! Soube que essa garotinha, hoje, é doutora em economia e tem um excelente canal no YouTube. Ju Furno. Confere lá!

Anônimo disse...

Tive o prazer de assistir ao Edição do Meio Dia , na Globo News ,e acompanhar a entrevista da Juliane , hoje, 18/02/2024. Notei o conhecimento e a sua clareza. O Brasil precisa de pessoas como Juliane Furno.