Memorial de Rosângela de Carvalho Souza

Rosângela de Carvalho Souza

Porto Alegre
2008



Minha vida profissional começa ainda na infância.

Iniciei a minha vida escolar ainda no pré. Como boas vindas no primeiro dia de aula, recebi uma cadeirada no dedão do pé. Acabei o dia no posto de saúde sem a unha.

No ano seguinte entrei na primeira série, em um colégio de freiras. Não fiquei duas semanas e acabei transferida para outra instituição por não me adaptar ao regime rígido da escola das irmãs. Já no meio do ano, meu pai foi transferido para outra cidade e lá fomos nós de mala e cuia para Charqueadas. No início uma adaptação difícil, morávamos no meio do carvão, em um conjunto de casas da empresa Copelmi, onde meu pai trabalhava. Uma outra cidade, uma outra escola, outros professores, uma outra vida.

Quando tinha cinco anos desci de bicicleta uma escada da casa, acabei fraturando o braço direito e fui levada ao pronto socorro em Porto Alegre. Entrei sozinha para o atendimento e acabei vendo várias pessoas doentes, inclusive um homem com uma faca no abdômem, muita dor e muito sofrimento. Neste momento decidi que queria muito ajudar as pessoas e que a melhor forma para isso seria estudar para ser médica. Essa era a profissão certa.

Estudei todo o meu Ensino Fundamental em escolas públicas. Os anos se passavam e eu obstinada em ser médica. Nos oito anos em que freqüentei a Escola Estadual Nicácio Machado, em Charqueadas, passei pela presidência do Grêmio Estudantil da Escola e pela liderança da turma.

Além do desejo de ser médica, havia em mim notável facilidade quanto a atividades esportivas, por isso também nunca deixava de lado a idéia de ser atleta, pois desde os nove anos já participava de torneios em clubes e na escola.

Somos seres participantes da várias culturas, estilo de vida e de sociabilidades diferentes, mudanças de comportamento acontecem a todo momento, somos quase como mutantes.
Segundo Weber a investigação do significado de um fenômeno social de uma determinada cultura, deve ter em conta um quadro ideal das relações e acontecimentos, sendo assim construídas a partir da teoria abstrata que se constituem no “tipo ideal” de educador a que se quer chegar.

Quando terminei o Ensino Fundamental, minhas idéias borbulhavam, pensava mil coisas ao mesmo tempo, queria seguir como atleta, mas também queria ainda ser médica. Acabei indo para o Curso Normal, em São Jerônimo, e lá desenvolvia todas as minhas habilidades, capacidades físicas e motoras durante as aulas de Educação Física. Praticamente só pensava em jogar, pois o resto de nada me importava.


... Mudaram as estações e nada mudou
Mas eu sei que alguma coisa aconteceu
Está tudo assim tão diferente
Se lembra quando a gente chegou um dia acreditar
Que tudo era pra sempre
Sem saber
Que o pra sempre
Sempre acaba...


Minha vida mudou completamente, eu já não sabia mais o que queria e nem quem eu era. Passei por uma fase de descobertas. Daí surgiu a oportunidade de ser atleta profissional, pois eu iria fazer um teste na Sogipa. Estava tudo certo, mas minha mãe decidiu que eu não iria mais, pois poderia reprovar na escola e que não era isso que ela queria para o meu futuro. Não pude decidir meu futuro, apenas ouvia ordens e as cumpria.


... Eu não consigo mais me concentrar
Vou tentar alguma coisa para melhorar
È importante todos me dizem
Mas nada me acontece como eu queria
Estou perdido, sei que estou
Cego para assuntos banais
Problemas do cotidiano
Eu já não sei como resolver...

Segundo Fernando Becker (1999) a natureza dessas mudanças e desses processos conflituosos é estudada profundamente pela Psicanálise. Uma das referências imprescindíveis sobre a adolescência é dada pela psicanalista argentina Arminda Aberastury (1998). Ela afirma que a adolescência constitui-se em uma “etapa decisiva de um processo de desprendimento”(p15). Essa época da vida caracteriza-se, segundo ela, por ser “um período de contradições, confuso, ambivalente, doloroso, caracterizado por fricções com o meio familiar”(p16).

Sendo assim fica mais fácil, e de forma cada vez mais clara, entender os limites dos processos conflituosos que acompanham os adolescentes.

Acabei cursando todo o Magistério e formei-me professora após o estágio obrigatório. Mas que carreira era aquela a qual eu nunca quis seguir. Sempre detestei ser professora; queria mesmo era ser atleta ou ser médica. Logo após a formatura acabei fazendo um concurso para o Município e passei muito bem, ao ponto de escolher onde dar aula. Então escolhi trabalhar com Educação Física de 5ª à 8ª séries da Escola Estadual Cruz de Malta, através de um convênio com a Prefeitura. Já que era atleta, achei que era a atitude mais coerente, pois trabalhar com crianças pequenas seria muito complicado, pois apesar de estar habilitada para trabalhar com séries iniciais, não tinha o perfil mais apropriado.

Fiz um pouco de tudo nesse início de carreira na Educação, que foram fundamentais para a minha decisão futura. Continuava com a idéia de ser médica, nada me tirava da cabeça, pois precisava fazer algo para ajudar as pessoas, até o momento em que esbarrei no bicho papão chamado “provão da UFRGS”. Foram três tentativas entre 1986 e 1988, mais as tentativas na Puc nesses mesmos anos, outros dois anos de cursinho e quase passei, mas como o “quase” não garante o nome no listão, fiquei à deriva neste mar chamado futuro. Até que uma professora me sugeriu: “ Por que tu não faz vestibular para Educação Física? Tu adora esportes! Tenta no IPA, tu vais te encontrar neste curso.”

De acordo com Alarcão (2002) o professor deve ser capaz de levantar dúvidas sobre o seu trabalho. Sendo assim, questionei-me se seria tão importante assim continuar sonhando com a Medicina ou mudar para a Educação. Foi então que quebrei meu primeiro paradigma, pois acabei passando no vestibular do IPA e cursando Educação Física. Me apaixonei pelo que fazia; creio que realmente foi a escolha certa e mais importante da minha vida, porque iria nortear toda minha carreira profissional.

Muitas vezes equivocadamente ministrei aulas absurdas, apenas reproduzindo conhecimentos, impondo aquilo que aprendia na Universidade e intensificando que a realidade estava nos conteúdos.

Paulo Freire (1996) disse “que ao pensar sobre o dever que tenho, como professor, de respeitar a dignidade do educando, sua autonomia, sua identidade em processo, devo pensar também, em como ter uma prática educativa em que aquele respeito, que sei dever ter ao educando, se realize em lugar de ser negado”. Partindo daí, entendi que cometemos, como educadores reprodutores das Academias, muitas atrocidades com nossos alunos. Na verdade, o papel do educador passa pela necessidade de reflexão e de mobilização para que haja uma construção do conhecimento e dessa forma conseguir identificar parte dos erros e repará-los em tempo, sem causar um prejuízo maior.

Nós, enquanto educadores, devemos ter a intenção de desenvolver competências em nossos alunos, promover situações de aprendizagem diversificadas, criar atividades diferenciadas, fazendo com que mobilizem os recursos mentais e colocando-os no lugar da ação, e não da simples observação, fazendo com que passem a ser protagonistas dos processos de ensino-aprendizagem. Se as situações de aprendizagem não variam, as ações mentais realizadas para análise e resolução dos desafios apresentados tendem a ser sempre as mesmas, limitando a autonomia intelectual dos estudantes.

Ao ser capaz de dar soluções diferenciadas para problemas distintos, cada vez mais o aluno terá condições de continuar aprendendo de forma autônoma e, por conseguinte, de estabelecer relações, confrontar opiniões, compreender processos e construir argumentação, ampliando sua visão crítica do mundo.

Este é o significado de ser educador, é o que me emociona diante da tarefa de construção do conhecimento. Ser capaz de desafiar os nossos alunos para que possam ser autônomos e críticos, não os limitando ao puro e simples conteudismo dos currículos escolares. Esta aprendizagem se concretiza quando “faz sentido” e quando a construção do saber tem significado para os jovens e, principalmente que tem relação com o que eles vivem e aprendem fora da escola.

Entendo hoje que a decisão de escolher a educação foi correta, o amor que tenho pela minha profissão é imenso. Este é o ponto principal para podermos nos tornar completos na profissão que escolhemos, mas precisamos ser sempre pesquisadores. Entender pesquisa não como uma definição, mas por suas características; uma investigação sistemática, crítica e auto-crítica com o objetivo de contribuir para o avanço do conhecimento..

Hoje sou uma educadora com 20 anos de magistério, muitos acertos, muitos erros, mas sempre em busca de sonhos, desejos e um espaço mais digno da educação na sociedade. Sou graduada em Educação Física e Pós-Graduada em Treinamento Esportivo em alto nível, mas em nenhum momento penso em parar de aprender e de pesquisar.

Pedro Demo(2002) afirma que no processo de pesquisa está o genuíno contato pedagógico. Para o autor, é condição essencial, em uma educação pela pesquisa, que o profissional da Educação seja pesquisador em seu cotidiano. Não se trata, segundo ele, de criar em pesquisador profissional para a educação, mas de utilizar a pesquisa como instrumento principal do processo educacional. Não se buscaria assim, um “profissional da pesquisa”, mas um “profissional da educação pela pesquisa”.

Contudo, como podemos ver, não é pequena a missão a que se destina este educador. Afinal, muitas vezes nos encontramos sozinhos diante de nossos alunos em situações que implicam decisões urgentes.

Essa é a hora da mudança, por isso se escreve este memorial, não apenas para uma avaliação de módulo, mas também para o conhecimento pessoal eficaz e para possibilitar a busca de muitas respostas para as nossas angústias. Precisamos aprender a aprender e essas transformações são muitas e implicam em desafios que exigem dos profissionais da educação desenvolvimento pessoal, ético e relacional.
É preciso que o educador desenvolva competências de comunicação, tenha capacidade de organização sistemática das suas ferramentas pedagógicas e eficiência na gestão do trabalho escolar. Mas essa transição deve ter por base uma formação crítica e abrangente, domínio sobre a própria prática por meio do registro e da reflexão e conhecimento da realidade histórica e sociocultural dos nossos alunos.

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