Memorial de Leonardo Luiz Pereira

MEMORIAL FORMATIVO
Leonardo Luiz Pereira
Porto Alegre, maio de 2008.

A Formação do Professor

Começo a vasculhar a memória em busca dos meus momentos como aluno e percebo o quanto isso é difícil.
O que eu consigo lembrar da minha chegada à escola em 1979, lá em Erechim (natural de Porto Alegre, 1975), com quatro anos, são das bicicletas. Cada criança podia levar a sua bicicleta e deixá-la, durante o ano todo, na escola, dentro da sala, porque havia um determinado momento da aula que nós podíamos andar de bicicleta (coitada da professora!). Isso me marcou bastante porque eu gostava muito de um triciclo grande, que pertencia a um colega meu, mas eu nunca pude ter a sensação de pilotá-lo.
Outra boa lembrança de escola foi em Santa Cruz, dos cinco aos sete anos, pois lembro que no recreio as professoras costumavam nos dar uma bola para jogarmos, mas só de vez em quando. Lembro-me também de que havia um ginásio enorme mas só entravamos lá quando havia alguma apresentação. Nós, os “pequenos”, não podíamos usá-lo.
Outra coisa que me marcou muito nessa época foi que eu fiz o pré-escolar com cinco anos e consequentemente tive que fazê-lo novamente com seis anos, ou seja, repeti o pré-escolar. Quando cheguei na primeira série, os meus colegas já estavam no “prédio” dos grandes há mais tempo do que eu, pois estavam na segunda série. Bem mais tarde me dei conta e assimilei que, naquela época, não era permitido fazer a primeira série com seis anos.
Acabei chegando à primeira série, com uma boa base de conhecimentos, é claro. Em Santa Cruz a maioria das pessoas é de origem alemã e a minha professora alfabetizadora tinha descendência alemã. Ela alfabetizava falando com o sotaque alemão, escrevia cachorro e falava o seguinte: “repitam comigo cachoro”. Vi que não ia ter jeito.
Logo no término do 1º bimestre retornamos a Porto Alegre e mais uma vez troquei de escola. Lembro-me muito bem do meu primeiro dia de aula na nova escola. Quando a professora perguntou quem poderia ajudar a achar um lugar legal pra mim, uns três ou quatro se levantaram rapidamente para me dar o lugar. Ficamos amigos e concluímos o ensino fundamental juntos.
Da quinta à oitava série lembro-me muito bem dos torneios escolares, que eram realizados duas vezes ao ano. Foram momentos de integração e crescimento, cada time tinha a sua autonomia e precisava aprender a lidar com isso. Fazíamos as substituições sem precisar de um mediador, pois existia um respeito com todos do time.
A Educação Física nessa fase começou a me ajudar, pois sempre fui uma pessoa tímida, mas quando eu estava fazendo alguma atividade física, principalmente os jogos, essa timidez sumia e não importava o número de pessoas que estavam assistindo.
Do ensino médio lembro-me de muitas coisas, agora em outra escola, mas a que marcou mesmo foi a reprovação. Fiz a matrícula em uma escola perto de casa e só depois de efetivada é que fui descobrir que eles chamavam o ensino médio deles de “Técnico em Química”.
Mas era só o nome mesmo, porque na verdade não passava de um ensino médio normal, porém o professor de química levava a sério o termo “Técnico”. E mesmo com a carga horária igual à de outras escolas, a exigência dele era muito superior e isso resultou na repetência não só minha mas de outros colegas. Isso aconteceu no primeiro ano do ensino médio. Quando cheguei ao segundo ano, a exigência era maior ainda. Foi aí que eu e mais cinco colegas que tínhamos reprovado descobrimos a “dependência” (recuperação do ano escolar, fora do ano letivo) em uma outra escola.
Não perdemos muito tempo e nos matriculamos na nova escola, acabamos descobrindo o quanto a “química” era fácil e conseguimos nos formar ao final do ano, de 1993.
Foi no ensino médio que comecei a gostar cada vez mais da disciplina de Educação Física, da maneira como ela era ministrada e fui em busca de informações. Quando chegou a época do vestibular, não havia outra escolha, tinha que ser Educação Física. Não pensava em ser professor de escola, queria era trabalhar em clubes, com o futebol e preparação física.
Ao final de 1997 me formei na faculdade de Educação Física do IPA (Instituto Porto Alegre), e no início de 1998 comecei a trabalhar com o futsal. Durante os anos que trabalhei no Inter e com a minha escolinha de futsal, nunca consegui dizer que estava indo “trabalhar”, porque para mim aquilo era algo que me dava muita alegria em fazer.
Começo a perceber o que a professora Tânia Marques falou em uma de suas aulas, “que nós não lembramos do processo de aprendizagem como um todo, o que nós lembramos são flashes desses momentos”, fica visível à medida que vamos tentando lembrar as coisas com mais detalhes e não conseguimos visualizar como aprendemos aquilo.
O futsal me proporcionou trabalhar com crianças e adolescentes de todas as classes sociais, ora separados ora juntos, com vivências corporais diversas, com valores diferentes e isso foi um grande aprendizado. Eu estava conseguindo aplicar os recursos didáticos da academia como o “método global” ao “invés do tecnicista”, a amorosidade e a humildade que Paulo Freire falava e isso era ao natural.
Uma frase, que foi dita em uma aula do professor Alexandre Virginio em maio, “educa-se dentro e fora da sala de aula, dentro e fora da escola” (Brandão) me fez recordar algumas coisas do tempo do futsal, quando nós viajávamos para jogar em outras cidades, conseguia passar algumas coisas para eles, como por exemplo, serem independentes e autônomos para organizarem um quarto de hotel com quatro ou cinco pessoas, quanto a orientação alimentar durante as refeições, com relação às atitudes durante os passeios pelas cidades.
Também aprendi bastante, pude perceber os modos diferentes de valorização de cada momento dependendo da classe social, vi menino comendo com tanta vontade e me dizendo que nunca tinha comido tanta coisa boa junto, porque em casa não tinha. E vi menino comendo com nojo, a mesma comida, me dizendo que estava ruim porque o bife e a batata frita não eram do jeito que ele gostava. Estávamos fora da nossa sala de aula e da nossa escola aprendendo uns com os outros.
Em 2000, fiz uma especialização em Administração Esportiva na PUC, o que me ajudou muito com a questão burocrática da minha escolinha e me ajuda até hoje a entender um pouco da administração das escolas. Serviu também para observar a hora de parar com o futsal e seguir na carreira do magistério.
Sem perceber, durante este período tudo estava conspirando, de certa forma, para minha entrada na educação escolar. Em 2002, ainda com a escolinha de futsal, comecei a trabalhar na rede municipal de Esteio com o ensino fundamental regular, CEJA – Construindo a Educação de Jovens e Adultos e com ASEMA – Apoio Sócio Educativo em Meio Aberto (crianças e adolescentes de seis a dezoito anos).
O dia 18 de março de 2002, uma segunda-feira, ficou marcado pra mim como o meu primeiro dia de professor escolar e lembro-me muito bem dele. Saí de Porto Alegre às 11h e 50 min, peguei um ônibus, trem e outro ônibus para chegar na escola Clodovino Soares à tarde, me apresentei e foi passada toda a rotina da escola. Ao final da tarde me desloquei até a escola Luiza Silvestre de Fraga (CEJA). Fui recebido pela diretora Therezinha e pela supervisora Estela, que me passou toda a sistemática da escola brevemente. Logo a seguir me comunicou que a turma que eu entraria naquela noite, era uma T4 (Totalidade 4). Levei um susto, porque não imaginava que entraria em sala de aula naquela noite, pensava que ficaria conversando sobre a escola e o projeto, como havia acontecido durante o dia.
Quando “bateu” para começar a aula, fui apresentado à turma pela supervisora e observei que havia muitos adultos e alguns jovens. Respirei fundo e comecei a aula, como uma convicção, que até hoje acho que se não fosse aquele bom começo as coisas poderiam ter tomado outro rumo. Fiz sondagens do que gostavam de fazer, tipos de atividades que realizavam, problemas de saúde e muitas outras coisas.
Mas quando perguntei como era a quadra onde eles faziam Educação Física, todos começaram a se olhar e os mais novos a rirem, responderam que era boa só que não tinha luz, mas isso era só um “detalhe” para uma aula noturna! E assim, foram feitas as aulas práticas, no escuro! A quadra era fora da escola no outro lado da rua, os alunos vibravam quando a lua estava cheia, porque clareava e aí eles podiam jogar um vôlei e até um futsal. O vôlei ainda era meio complicado porque no outro lado da rua, quase em frente à quadra havia um poste com uma lâmpada, que atrapalhava quando os alunos tinham que olhar pra cima para verem a bola, porque ofuscava a visão e não se enxergava nada.
Três anos depois o problema foi solucionado, a prefeitura construiu um ginásio no local e aí passamos a ter uma qualidade aceitável. Mas na outra escola da noite, a escola Érico Veríssimo ainda temos aulas no escuro!
O ASEMA Casa da Criança foi o último local que eu me apresentei já na quarta-feira, era um lugar diferente, os alunos iam para lá no turno inverso da escola. Funcionava através de oficinas onde as crianças escolhiam duas por dia. A minha oficina era de esportes e sempre havia muita procura. Foi uma experiência muito boa pela dinâmica da Casa e pelas histórias de vida de cada um. Lá conheci a professora Maria Cristina, uma profissional muito competente e uma amiga que sempre tem algo de bom pra dizer, e juntos (eu mais observava do que ajudava) fazíamos algumas paradas na rotina dos alunos, dos funcionários e dos professores para momentos de reflexões. O pessoal gostava dessa pausa. No final de 2005 a Casa da Criança passou a fazer parte da secretaria de saúde e todos os professores tiveram que sair. Nos separamos todos, e agora em 2008 reencontrei a professora Maria Cristina, na escola Flôres da Cunha e já estamos com projetos em andamento.
Mas o CEJA era para mim o diferente, o novo, nunca havia “trabalhado” com o público adulto e assim sendo as histórias de vida foram surgindo de cada fato que acontecia.
Uma dessas histórias aconteceu logo em meu primeiro ano, durante o torneio municipal de futsal que ocorre à noite.
Convoquei todo o time, dez jogadores, e tinha um que era “terrível” em sala de aula, bagunçava e falava alto, mas já tinha vinte e um anos: era o Mário. Eu, então, conversei com a direção da escola a fim de poder levá-lo pra ver se melhorava o seu comportamento. No dia do jogo, fomos para o ginásio municipal e logo notei que o Mário não largava um caderno de jeito nenhum. E os professores reclamavam que quando ele ia à aula nem caderno ele levava, achei estranho aquilo. Esperei acabar os jogos, ficamos em segundo lugar, na volta fui obrigado a perguntar sobre o caderno, e ele disse: “professor, é que eu estou na condicional e se os homem me pegar fora da escola sem material, cai a casa eu vou preso”, aí eu comecei a entender algumas coisas.
No outro ano tive que continuar com o projeto “Mário”, só tinha um problema, ele era meio perna de pau, e aí eu já tinha uma confiança maior dele e acabei deixando-o no banco. Durante as partidas o deixava jogar alguns minutos pra não comprometer muito. Mas ele tava sempre perguntando “professor que horas eu vou entrar?”. Na final nós estávamos perdendo de 2 a 0 e ele me pediu tanto pra entrar que eu deixei, ele fez três gols e fomos campeões nunca mais ninguém segurou o Mário. Para ele foi bom esse envolvimento com o esporte, avançou da T4, (já havia repetido 2 anos) e se formou no outro ano na T6.
Foi na Educação de Jovens e Adultos que conheci o colega e amigo Paulo Sérgio da Silva, que me ajudou bastante a entender todo o processo da EJA. Até 2004 só nos encontrávamos na escola Érico Veríssimo, de 2005 em diante o professor Paulo passou a trabalhar também na escola Luiza Fraga.
Juntos fizemos vários projetos, de 2003 a 2005 fomos convidados pela secretaria de educação para trabalharmos na referência, cada disciplina tinha um professor como referência, o resultado desse trabalho foi a publicação dos “Primeiros Cadernos Pedagógicos do CEJA”, que foi coordenado por nós e pelos demais professores que faziam parte do grupo, cada um na sua área, juntamente com os professores de cada disciplina.
Durante esse trabalho pude crescer muito como professor, aprendi bastante, as reuniões proporcionavam momentos ricos de trocas e de estudos porque queríamos levar o melhor para os colegas de área nos grandes encontros que aconteciam às sextas.
O professor Paulo e eu também trabalhamos temáticas relacionadas ao mundo do trabalho, a histórias de vida, ao racismo e outros assuntos, sempre procurando utilizar recursos materiais, como fotos digitais, vídeos e produções de vídeos.
Os trabalhos relacionados a essas três temáticas iniciais renderam premiações, e a do racismo, do preconceito envolvendo a questão étnica gerou um artigo que foi publicado no “6º Escola Faz – Diversidade Étnica – dialogando com a história e a cultura negra” pela prefeitura de Porto Alegre em 2007. O livro reúne práticas pedagógicas.
Em 2007 na escola Maria Marques, onde trabalho à tarde com alunos de pré-escolar a quarta série, a pedido da diretora Isoldi, fiquei responsável, juntamente com a professora Roberta, outra grande amiga, pelo projeto africanidades que envolveu todos os alunos da escola durante o ano todo.
No mês de outubro é o aniversário da biblioteca da escola, e como estavam todos trabalhando africanidades, as bibliotecárias da escola, professora Rosane Pascoal e a professora Valdirene inestimáveis amigas, trabalharam com o livro “Diversidade Étnica”. E os autores presentes fomos nós, o professor Paulo e eu. Foi uma manhã e uma tarde muito boa e uma experiência incrível, indescritível.
Agora em 2008, não estou mais à noite devido à especialização da UFRGS. Pretendo voltar a trabalhar com EJA, também tenho projetos para continuar estudando, quero fazer mestrado como próximo objetivo de crescimento profissional. Porque sempre recebemos, e continuamos recebendo muito incentivo dos nossos pais para estudar e nunca parar, sou o mais velho de três irmãos.
Também conto com o incentivo da minha esposa, pois quando eu fiz a especialização na PUC, nosso filho Bruno, tinha alguns meses, e ela soube entender que era preciso estudar e sempre compreendeu o esforço que era ir todos os dias para Esteio e voltar às onze horas da noite.
O Bruno que não conseguia entender muito porque que “o pai não ficava de noite em casa”, e cobrava de vez em quando a minha presença porque muitas vezes nos víamos apenas nos finais de semana. Algumas vezes ele conseguia me esperar acordado, para nós jogarmos futebol, vôlei, lutarmos judô, capoeira, isso perto das onze horas da noite e no apartamento! Bem, agora ele já entende melhor isso!
Lendo os memoriais dos colegas e agora ao final da escrita do meu, começo a querer contar coisas que pipocam na memória como se quisessem sair. Está acontecendo exatamente como o professor Rafael Arenhaldt colocava, que nós vamos escrever vários outros memoriais, na verdade renovar este primeiro a cada escrita e daqui a algum tempo iremos observar o progresso. Quando começamos a escrever de nós mesmos é que percebemos quantas histórias temos para contar! Que temos história para contar.

Um comentário:

Anônimo disse...

leonardo luiz pereira e meu nome jao