Memorial de Jorge Fortuna Rial

M e m o r i a l f o r m a t i v o

Jorge Fortuna Rial
Maio/2008














Não sou eu quem descrevo. Eu sou a tela
E oculta mão colora alguém em mim.
Pus a alma no nexo de perdê-la
E o meu princípio floresceu em Fim.
(Passos da Cruz, XI: Fernando Pessoa)


PRIMEIRO TEMPO
Eu.
Dizer que vim ao mundo pelas mãos do pai não é uma metáfora para a crença em Deus. Literalmente o doutor Heitor realizou o parto do meu nascimento. Em 1960, enquanto se inventava a pílula e iniciava-se a técnica da cesariana no Brasil, ele, adepto de práticas alternativas, como parto de cócoras e na água, realizou - com problemas em Annita, a mãe e sua mulher, e em mim, o filho - a operação do parto natural.
Nasci enrolado no cordão do umbigo, virado para o lado errado e sem ar.
Na infância brincava de medir a resistência em baixo da água na piscina.
Essa sensação de ansiedade por ar provavelmente seja o que me define como pessoa. Sou ansioso por natureza, então. Por querer ver o mundo onde não estou e por tentar saber muitas coisas, atropelando o prazer, na carência de viver mais do que a vida.
Minhas travessuras de criança mais nova, quinto bebê da família, manias da puberdade, rebeldias da adolescência, erros de adulto, foram relevados pela justificativa do parto complicado. Com o passar do tempo, outros partos - os emocionais - seguiram-se, transformando os erros em experiências de vida.
Aos 16 anos deixei o Colégio Militar de Porto Alegre para trabalhar, e, aos 19, saí de casa para viver com a namorada. Aos 24, separado da namorada e cursando a faculdade de arquitetura, me assumi homossexual. Perdi amigos para a AIDS, e não fiz jamais a perversa lista com seus nomes, me nego. São muitos: médicos, atores, arquitetos, publicitários, a maioria com menos de trinta anos de idade. Quando participo de eventos, abomino a estatística mórbida que mostra colchas de nomes e sapatos sem pés para calçá-los. Em 1986 larguei a faculdade faltando três meses para a formatura. Viajei pelo Brasil. Saí do país em 1988. Voltei em 1989. Conversei muito, experimentei drogas, busquei alternativas de vida em comunidades, até ingressar na UFRGS, em Artes Visuais, em 1995. Encontrei abrigo na teoria da arte para sublimar meus recalques. E percebo que, até para o vazio existencial, existe sentido.
“A arte é uma consagração e um abrigo, por onde o real, de um modo sempre novo, dispensa ao homem o seu brilho até então escondido, para que, numa tal claridade, ele possa ver de modo mais puro e ouvir, mais distintamente, o que fala à sua essência.” – Heidegger
Assim, o tempo vivido na faculdade de Artes foi uma oportunidade para organizar minhas confusões.
Em julho de 2000 recebi meu canudo de formatura das mãos da diretora do Instituto de Artes. Dentro dele uma mensagem da reitora e o vazio à espera de um diploma. Também o vazio profissional me definiria naquela época. Hoje, depois de oito anos de trabalho, retomando as memórias da trajetória de professor, percebo que é o olhar do outro que preenche o significado do que sou. No decorrer do tempo, crises, surpresas, vitórias, desencontros e tudo o que a vida oferece, têm sido o estofo da minha formação continuada. O país onde habito e a alma que me habita seguem em desalinho, descompassados com a ordem mundial, alijados como Aleijadinho, tortos e talvez confusos, angustiados certamente a procurar os mares que os aportem em si.
Formado, perdi meu namorado, saí atrás de emprego que logo arrumei. Trabalho ainda hoje no meu primeiro emprego de recém-formado e outros.
O trabalho de professor, ao contrário do que muitos pensam, é desgastante. O total de alunos atendidos na semana é de 770 (não é contabilizado pela lista de chamada, e sim o real efetivo).
Sou um fenômeno denominado “docente taxi”, ou seja, “um professor que se vê obrigado a trabalhar em várias instituições e cruzar a cidade para trabalhar”.
Quando penso na minha definição profissional, me lembro da persistência de professores e colegas que demonstravam profundo respeito pelo saber e que percebem na arte uma fonte de entendimento do mundo para dar sentido à existência humana no que lhe é mais profundo, a sensibilidade. Quero ser como eles.
A educação é uma ferramenta que torna o sujeito protagonista de sua própria história. O psicanalista Contardo Calligaris, em entrevista concedida recentemente na televisão, comparando a existência humana com a literatura, afirmou que em qualquer pessoa está presente a qualidade poética que possibilita fazer da própria vida um romance. Paulo Freire proclama que o aluno seja o dono de sua própria educação. Não é possível aceitar que, em pleno século XXI, alunos, professores e cidadãos reproduzam modelos de educação como se fôssemos todos potes vazios a se encher. Temos que ser participantes em nossa aprendizagem.
O ser humano é incompleto em sabedoria porque para que o seu saber possa existir, ele necessita do outro ser humano que o complete. Por isso a importância do diálogo na educação, que não transmite simplesmente o saber, mas que o materializa em mais saber.
A educação pela arte é ferramenta de transformação. Na escola havemos de transformar nossas relações. Fazer de colegas nossos, amigos nossos; dos nossos cadernos vazios, obras-primas de nosso esforço; dos alunos fazê-los nossos mestres, e fortalecer laços de tolerância, aceitação, respeito, afeto e amizade.
A especialização, o mestrado e doutorado, é o caminho por onde todo profissional da educação deveria trilhar e ambicionar intelectualmente alcançar.
É verdade que sou mais professor do que antes, mas também é verdade que ser professor talvez seja a passagem para ser alguma outra coisa.
O que será?



Não sou nada. Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.”
(Tabacaria: Álvaro de Campos – Fernando Pessoa)

SEGUNDO TEMPO

Tento reconstruir na minha imaginação
Quem eu era e como era quando por aqui passava
Há vinte anos...
Não me lembro, não me posso lembrar.

O outro que aqui passava então,
Se existisse hoje, talvez se lembrasse...
Há tanta personagem de romance que conheço
Melhor por dentro
De que esse eu-mesmo que há vinte anos
Passava aqui!
(Realidade: Álvaro de Campos – Fernando Pessoa)



Eu, eu mesmo e os outros eus.
Lá estávamos nós, uns em frente aos outros. Aparentemente éramos iguais. Todos nós, professores. Todos nós formados em licenciatura, turma de julho de 2000, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, para as artes plásticas. Nós todos iniciados na educação de jovens e adultos, em 2001; professores com idêntica trajetória. Todos alunos, da pós-graduação da Faculdade de Educação – FACED, da UFRGS, no Curso de Especialização em Educação Profissional Técnica Integrada ao Ensino Básico na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos - PROEJA.
Cada um de nós, no entanto, com uma visão peculiar sobre a experiência de ser professor. Atentos aos mínimos detalhes de nós mesmos; em cada gesto, em cada reação procurávamos por pistas que nos desvendassem. Em nossas mentes lembranças percorriam o tempo passado e nos faziam reféns de uma história particular, ao mesmo tempo comum a todos.
Um de nós trazia em si a memória do aluno que aprendeu a reconhecer nos professores a extensão do que foram seus pais: seres que decidem as próprias vidas e por essa atitude são exemplo para os outros. Íntegros e honestos, crentes da importância do estudo para a formação do indivíduo, são professores que, com disciplina e conteúdo, planejam, ministram aulas e avaliam com rigor, exigentes para consigo mesmos e seus alunos. Sua aula é asséptica e, quando avaliada quantitativamente, apesar da monotonia da ausência de contradição, todos a situam como medianamente aproveitável.
Outro se lembrando de si, um operário do saber. Trabalhador da educação, o professor é um ser do coletivo e suas ações respondem às demandas do grupo a que pertence. Cumpre horário de entrada e de saída na escola; assina o caderno ponto diariamente, faz chamada, respeita prazos: entrega de notas, preenchimento de diário de classe, obedece à grade de horários, participa de reuniões pedagógicas, incluindo-se em projetos escolares e eventos, faz atividades extras classe, comparece a passeios. O professor desfila na semana da pátria com a comunidade, abre portas, liga e desliga luzes e ventiladores, carrega televisão, rádios e toca-discos, zela e doutrina colegas e alunos pelo cuidado com a coisa pública e com o próximo e pelo respeito ao grupo. Sofre, porém, de invisibilidade, já que é difícil reconhecer nele atitudes individualistas ou originais visto que suas ações são tomadas a partir da síntese que realiza das vontades alheias.
O terceiro professor tem muita paciência. Ele escuta calado, muitas vezes, aos desacatos constantes à sua pessoa. Ofensas de alunos com idéias inconsistentes se espalham em boatos covardes, fofocas e intrigas que nada têm a ver com o que se aprende ou ensina na escola. Ele teme ser agredido, pois se vê alvo fácil, em destaque no grupo. Por que não foge? Porque sabe que sua vulnerabilidade é resultado de sua postura acessível para o diálogo com todos. Mas também conta com o apoio de outros alunos e colegas. Pessoas que o percebem em suas mazelas e, ao enxergarem o desrespeito, o apóiam. Expressam solidariedade e, por serem a maioria na escola, isso faz valer a pena, apesar das humilhações. O professor, então, pesa e pondera as contradições que o desafiam, acreditando na capacidade de o meio formar os indivíduos. Tem fé nas mudanças, talvez imagine que a liberdade para aprender seja realçada por essas ações opressoras isoladas, que só encontrarão amanhã o vazio do esquecimento.


Vivem em nós inúmeros;
Se penso ou sinto, ignoro
Quem é que pensa ou sente.
Sou somente o lugar onde se sente ou pensa.

Tenho mais almas que uma.
Há mais eus do que eu mesmo.
Existo todavia
Indiferente a todos.
Faço-os calar: eu falo.
(Ricardo Reis - Fernando Pessoa)

Há, um, outro tipo: o confuso. Alimenta-se de erros e está engordando.
Planeja, é verdade, porém ao final de cada aula sempre percebe que algo não saiu como deveria. Se o conteúdo era adequado, errou na metodologia. Se pede participação para a turma, esquece de prestar atenção no que a turma tem a dizer. Faz provas e não dá retorno de correções. Determina as regras e é o primeiro a ser cobrado por descumpri-las, sem conseguir justificar suas ações, pois suas apostas sustentam projetos fadados ao fracasso. Trabalha constantemente na administração de perdas. Para este, a cada dia se evidencia mais e mais a sina de professor medíocre. Mesmo assim insiste. Crê em um dia ganhar a sorte grande. Por isso se mune, todos os dias de novas fichas de aposta e as joga. Pequenas vitórias esporádicas assopram baixinho em seu ouvido que um dia o seu dia vai chegar.
Tem o arrogante. Ele parte do princípio de que sabe mais do que qualquer um sobre sua matéria. A turma deve prestar muita atenção e evitar manifestar-se, para captar todo o conhecimento. Deposita seu furor de inteligência nas mentes e não entende como os alunos não conseguem ter a mesma paixão pelos estudos. Às vezes pensa, mesmo sem manifestar: não adianta lutar contra o que é assim mesmo, eles não têm condições, são fracos para o estudo. Ninguém se atreve a enfrentá-lo. Pelas suas costas, costuma-se criar boatos e críticas sobre ele. Quando a direção da escola toma a decisão de colocá-lo à disposição, ele a princípio não entende o fato de não ser imprescindível para a educação, depois se conforta, na esperança de que a próxima escola haverá de valorizar o seu idealismo em transformar ignorantes em pessoas úteis e capazes na vida.
O último é o animado, desafiador, sagaz, criativo. Os colegas o admiram, os alunos o respeitam. Suas idéias trazem à luz renovadas possibilidades, outros pontos de vista para a educação Que interessantes! De um limão ele faz uma limonada, e seu copo está sempre meio cheio e jamais meio vazio. Suas conversas são inteligentes e nele pode-se ver no olhar um brilho que denuncia uma contagiante motivação para conhecer o mundo, conviver e partilhar saberes. O humor é a sua arma mais poderosa e a generosidade dele é atraente. Colaboradores e amigos se nutrem do seu espírito guerreiro. Para ele a educação é pura transformação. É incansável, jamais se lamenta do passado nem deixa nada para amanhã; faz do momento presente um presente para si e para todos ao seu redor. Segue determinado de que nunca passará pelo mesmo lugar duas vezes, por isso pratica todo o bem ao próximo, aqui e agora, a todo instante.
Fim de jogo. Alguns espelhos se quebraram Descobriu-se o que por detrás da aparente semelhança os faz diferentes em nuances, conforme os desejos desenham seus contornos. Talvez num próximo encontro se descubra outro, que sempre esteve por aqui, sem ser notado, que poderá contar um pouco de si e de todos.



Jorge Fortuna Rial




Há metafísica bastante em não pensar em nada.
O que eu penso do mundo?
Sei lá o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.
(Alberto Caeiro – Fernando Pessoa)





Sinto o abraço do tempo apertar

E redesenhar minhas escolhas

Logo eu que queria mudar tudo

Me vejo cumprindo ciclos, gostar mais de hoje

E gostar disso Me vejo com seus olhos, tempo

Espero pelas novas folhas

Imagino jeitos novos para as mesmas coisas

Logo eu que queria ficar

Pra ver encorparem os caules

Lá vou eu, eu queria ficar

Pra me ver mais tarde,

Sabendo o que sabem os velhos

Pra ver o tempo e seu lento ácido dissolver o que é concreto

E vejo o tempo em seu claroescuro

Vejo o tempo em seu movimento

Me marcar a pele fundo, me impelindo, me fazendo

Logo eu que fazia girar o mundo,

Logo eu, quem diria, esperar pelos frutos

Conheço o tempo em seus disfarces, em seus círculos de horas

Se arrastando feito meses se o meu amor demora

E vejo bem tudo recomeçar todas as vezes

E vejo o tempo apodrecer e brotar

E seguir sendo sempre ele

Me o tempo todo começar de novo

E ser e ter tudo pela frente

A capa é recriação fotográfica minha, da serigrafia sobre o texto de Marcel Proust, “Em busca do tempo perdido”, da artista Flávia Aguiar.
Os trechos de poesias de Fernando Pessoa extraídas do livro da LPM, Porto Alegre, 2001
A citação de Heidegger veio do livro “Elementos de Estética”, de Ursula Rosa da Silva e Mari Lúcie da Silva Loreto.
O conceito “docente táxi” é da página 24 do livro “Aprender desde el arte”, de Constanza Ortis e Natalia Catalano Dupuy, da Argentina.
O programa de entrevista foi “Marília Gabriela” do GNT, de maio 2008
A frase “O que será?” que encerra o primeiro texto encerra também a música “Eclipse Oculto” de Caetano Veloso.
A primeira imagem chama-se “Reprodução proibida”, de René Magritte, 1937, já foi utilizada na capa do livro de José Saramago, “Ensaio sobre a cegueira”, que, aliás, está virando filme.
A imagem que abre o segundo texto é uma montagem fotográfica de Marcel Duchamp e Roché. Marcel Duchamp o criador do “Ready Made”, ou seja, o objeto torna-se obra de arte a partir da interferência conceitual que o artista lhe impõe.
“Persistência da memória” – Dali, obra que situa o tempo em uma dimensão alternativa, alterada a lógica cartesiana.
“Vênus com gaveta” – de Salvador Dali, famoso artista catalão reconhecido por Freud como tradutor das imagens do inconsciente, conceito criado pelo inventor da psicanálise.
“A memória” – René Magritte, 1948. A vida silenciosa que a vida ainda nega.
A letra da música “Abril” de Adriana Calcanhoto.
“Drawing hands” – Escher, surrealista de carteirinha, a estrutura do desenho na gravura remete a fita de Moebius que representa continuidade, situa horizontes que se delineiam e se movimentam em um percurso sem fim.
Orientação do professor Rafael Arenhaldt.
Correções ortográficas e gramaticais do texto da jornalista Maria Teresa Severo e da professora e escritora Maria Teresa do Valle.

Um comentário:

Olguita disse...

Eu gosto demais do que e como tu escreve. Sempre me emociono quando leio algo escrito por ti. Olga