Memorial de Elizabet Souza Petersen

MEMORIAL FORMATIVO
ENCAIXANDO AS PEÇAS DE UM QUEBRA-CABEÇAS


Elizabet Souza Petersen


A primeira reflexão que surgiu quando a presente atividade foi proposta foi a indagação de que sentido tem o meu trabalho, para quem se destina esse caminho de educadora que busco seguir a vida toda. Dessa forma, não posso deixar de dedicar a motivação para mais esta caminhada aos educandos da Educação de Jovens e Adultos de Sapucaia do Sul, que me permitiram ter esperança na construção de um futuro melhor por meio da educação, acreditando que a missão do educador faz diferença e por fazer, também, com que eu percebesse que para aprender não há idade.


Em um largo rio de difícil travessia, havia um barqueiro que atravessava as pessoas de um lado para o outro. Em uma das viagens, iam um advogado e uma professora. Como quem gosta de falar muito, o advogado perguntou ao barqueiro:
Companheiro, você entende de leis?
Não, respondeu o barqueiro.
E o advogado compadecido: é pena, você perdeu a metade de sua vida!
A professora muito social na conversa; seu barqueiro você sabe ler e escrever?
Também não! Respondeu o remador.
Que pena! Condói-se a mestra. Você perdeu a metade de sua vida!
Nisso chega uma onda bastante forte e vira o barco. O canoeiro preocupado, pergunta: Vocês sabem nadar? Não responderam rapidamente.
Então é uma pena! Conclui o barqueiro- vocês perderam a vida toda!
Não há saber mais ou menos: Há saberes diferentes!
(Paulo Freire)
Quebra-cabeças sempre foi algo que me fascinou. Lembro que desde que era garotinha e ficava olhando meus irmãos mais velhos, montar um daqueles quebra-cabeças complicados com muitas peças, me perguntava que pecinhas mágicas seriam aquelas capazes de dar forma e cor à coisas muito variadas, a elementos vivos.

Um dia, não resisti e perguntei a um de meus irmãos, porque ele gostava tanto de quebra-cabeças e ele me disse algo que ficou martelando na minha cabeça: “quebra-cabeças são como a nossa vida, vamos testando os encaixes e fazendo-os de modo a dar forma ao que nós somos e ao que nós fazemos. “Conto isso, nesse momento, para justificar a forma com que se apresenta o meu memorial.

Quando me foi proposto que fizesse um memorial formativo e me foi apresentada essa possibilidade de reflexão de minha trajetória de vida profissional até o momento, primeiramente pensei em ter como recurso um formato de Calendário Escolar, pois este é muito presente em meu dia-a-dia profissional na Secretaria de Educação do município de Sapucaia do Sul, sendo o Calendário um dos meus instrumentos de trabalho. No entanto, refletindo um pouco mais, me dei conta de que um calendário escolar é algo bastante necessário para o processo gestacional da educação, ao mesmo tempo que uma exigência para que tenhamos uma uniformidade nos processos de educação pública. Só que, também, um calendário é algo muito fixo e impositivo, as demandas de regras e prazos com os quais lutamos diariamente. Afinal, hoje em dia parece que todo mundo anda sempre com um relógio em uma das mãos e um calendário em outra.

Se o que me inspira é um propósito de educação, bastante alicerçado nas idéias do mestre Paulo Freire, o calendário é importante, sim, mas é somente mais uma das peças do imenso quebra-cabeça que é ser educador no Brasil.

Temos vivenciado continuamente muitas mudanças, principalmente a partir das décadas de 80 e 90. Estas mudanças se apresentam não somente de maneira localizada, mas em nível mundial. Refletem-se em todas as áreas: econômica, social, política e cultural. As instituições escolares, por sua vez, não ficam à parte destas mudanças e vêm sendo pressionadas a repensar seu papel diante destas transformações que ocorrem na sociedade.

A razão, a ciência e a técnica foram muito desenvolvidas e continuam em larga escala de desenvolvimento. No entanto, Costa (2005) revela que basta olhar o noticiário atual para perceber o quanto a ciência, a razão e a técnica afastaram os indivíduos de ideais mais humanos, como:

- Na relação consigo, o homem parece cada vez mais marcado pela ansiedade, por frustrações e pelo medo, entregando-se aos anestésicos da cultura de massas.

- Na relação com os outros, o individualismo, a competição, a exploração e o uso instrumental do ser humano marcam as relações interpessoais, enquanto que, no plano das relações coletivas, dentro das nações e entre as nações, o cinismo e a força bruta parecem ganhar cada vez mais espaço.

- Na relação com a natureza, a quebra sistemática dos ecossistemas vai desequilibrando as bases dos dinamismos que sustentam a vida, gerando conseqüências como a diminuição da biodiversidade, os buracos na camada de ozônio, comprometendo o direito à vida das gerações futuras.

Constata-se, nas afirmações de Costa (2005) que a sociedade está em crise. E, em grande parte, o próprio homem encaixou as peças desse quebra-cabeças sem cor e sentimentos. Só que eu acho que não podemos nos conformar, por isso que eu decidi ser educadora e continuar buscando sempre aprender um pouco mais e me aperfeiçoar.

Paulo Freire sempre creditou que o meio é muito importante na formações do indivíduo. Concordo plenamente com ele e, por isso que levanto todas essas questões. Sei que a minha educação foi e é baseada no meio no qual estou inserida e das influências que recebo deste. Assim como sei que esse meio complexo pode ser mudado por meio da educação.

Essa é parte de minha história. Nasci no ano de 1961 no município de Sapucaia do Sul, do qual nunca me desvinculei. Por ser a caçula da família, minhas irmãs sempre disseram que eu tive muitas regalias. Digo que não, mas no fundo acredito que elas podem ter um pouco de razão, mas estas regalias que elas falam me fizeram bem, pois me despertaram desde cedo um espírito crítico e contestador. Nunca me conformei com o que me era apresentado, sempre acreditei nas entrelinhas.

E, dessa forma fui crescendo. Ingressei aos sete anos na escola e sempre gostei bastante de estudar. Mas minha família sempre enfrentou dificuldades financeiras e ainda menina tivemos a perda de minha mãe quando eu tinha sete anos. Desde então, perdi todas as regalias e vi minha família se desestruturar com a ausência contínua de meu pai e o fato de ter que encarar a vida de outra forma. Quando eu tinha treze anos tive que abandonar os estudos para ajudar minha irmã no seu armazém, assim como faziam e fazem até hoje milhares de crianças e jovens oriundos de famílias carentes no Brasil.

Pesquisas de educação sempre apontam índices alarmantes de evasão escolar. Daí sempre surgem os mais diversos debates sobre a importância de estudar, porém a realidade diária nos mostra que nem sempre é assim, que muitas vezes temos que sacrificar o estudo em troca do pão de todo dia.

Com catorze anos, consegui um emprego em um supermercado da cidade e tive pela primeira vez minha carteira profissional assinada. Após dois anos, deste emprego fui direto para outro, onde ganhava a mesma coisa, mas com cumprimento de horário em que teria a oportunidade de voltar a estudar.

Esse sempre foi meu desejo. Sempre me inspirei muito na mãe de uma amiga, Dona Aurealícia, que era professora, e esta é outra peça do meu quebra-cabeça com encaixe perfeito: a cena de Dona Aurealícia entrando e saindo de casa com seus cadernos nos braços.
Retomei os estudos e segui adicionando mais peças na minha trajetória. No ano de 1980, tive um divisor de águas, com dois grandes acontecimentos na minha vida: meu casamento e o meu ingresso no curso de magistério em uma escola particular no município de Esteio, após completar o Supletivo. Como eu fiz supletivo em duas etapas, tinha muitas dificuldades de acompanhar a turma, mas isso não seria o motivo que me faria desistir de meu sonho de ser professora. Entretanto, outros dois fatos me fizeram parar novamente meus estudos. Meu marido foi transferido para a cidade de Taquara para gerenciar uma filial da empresa em que trabalhava e a chegada de nossa primeira filha. Outra vez enfrentava um novo desafio, arrumar alguém que cuidasse da Débora para que eu pudesse retomar meus estudos, em uma cidade que eu não conhecia ninguém, ambiente novo e sozinha. Mas não desisti, matriculei-me na escola Santa Terezinha, e lá eu fiz meus dois anos de magistério que faltava.

Minha história, assim como a de muitos outros brasileiros, se encaixa perfeitamente em uma campanha publicitária veiculada por bastante tempo, que buscava uma valorização do povo brasileiro. Baseada em histórias de superação tinha o slogan: “sou brasileiro e não desisto nunca”. Creio que essa é uma grande verdade para nós que enfrentamos no dia-a-dia um país com tanta desigualdade. É inegável a força que temos e a esperança que se renova sempre. Paulo Freire, Rubem Alves e tantos outros são exemplos disso, de que mesmo com tantas dificuldades que se constata, nunca podemos desistir.

É esse sentimento também que faz meu olho brilhar quando vejo em cada um dos jovens e adultos que passam por nossas escolas em projetos EJA. A vontade de superar as dificuldades, de acreditar e ter esperança que podemos fazer um final diferente.

Depois que terminei o Curso de Magistério, voltamos a morar em Sapucaia do Sul e fui fazer o estágio, sendo efetivada pela Prefeitura de Sapucaia do Sul para trabalhar na área da educação, logo em seguida. Trabalhei por quatro anos em salas de aula, quando decidi pedir demissão para ter mais autonomia sobre meu tempo, pois nesta época nós já tínhamos o nosso segundo filho e ajudar a cuidar da empresa de prestação de serviços e fornecimento de materiais em ajardinamentos do meu marido. E, por catorze anos, fiquei totalmente desligada da educação, mas nunca deixei de sentir-me uma educador.

Em 1999 prestei vestibular. Ingressei na universidade com 39 anos, porque tinha prestado um concurso público na área da educação para nível1 (magistério), e aguardava ser chamada. Nessa época eu tinha uma Floricultura que já tinha catorze anos de existência, tempo no qual meu certificado de educadora ficou “adormecido”.

Retomei minha trajetória na área e diretamente em sala de aula. Esse período durou pouco, mas foi muito intenso. Acredito que as peças se encaixam na hora certa, pois toda a experiência que trazia comigo me fazia ser educadora por amor, por comprometimento e por acreditar naquilo, muito mais do que buscar uma renda.

Como destaca Fonseca (2002, p. 36), o ser humano não chega na escola “zerado” e dali começa a escrever sua personalidade e história. Ele já chega na escola com muitas referências e influências do meio em que vive e de sua família. Esta, por sua vez, está intimamente ligada à sociedade a qual pertence. Dessa mesma forma está o professor que chega na escola com toda a sua bagagem de vida, seus sentimentos, traumas, frustrações e conquistas.

Reconhecendo isso que fui criando minha identidade enquanto educadora, pois segundo destava Nóvoa (1996, p. 62),
A identidade não é um dado adquirido, não é uma propriedade, não é um produto. A identidade é um lugar de lutas e de conflitos, é um espaço em construção de maneiras de ser e de estar na profissão. Por isso, é mais adequado falar em processo identitário, realçando a mesma dinâmica que caracteriza a maneira como cada um se sente e se diz professor.

Sempre me senti professora na realidade em que vivemos, com todo o turbilhão por que passamos diariamente. Sempre achei muito errado a forma como a educação se apresentava e isso ficou ainda mais forte nos meus cursos de formação, pesquisas e na prática diária.

Vivemos sob a égide de uma “educação bancária”, diagnosticada por Paulo Freire, onde os alunos são sujeitos passivos os quais despejam-se “conhecimentos” previamente definidos e, muitas vezes, desvinculados de sua realidade e de suas vidas, que acabam perdendo seu significado no meio do caminho.

Muitos autores que me acompanharam ao longo dessa jornada como Rubem Alves e Gadotti, além do contato com professores e colegas de educação deram cor a esta realidade que enfrentamos, onde o ensino é desvinculado da realidade dos educandos e acaba por robotizá-los e não lhes dar oportunidades de crescimento. Funciona mais ou menos como uma nave para o futuro com embarque em locais já marcados e que levam para posições de continuação do sistema.

Sempre busquei combater isso e, por meu jeito de estar sempre em movimento, fui convidada para ser vice-diretora da mesma escola em que lecionava. Nesse momento, percebi como é difícil administrar uma escola, verificar as práticas desenvolvidas pelos colegas, dos quais os educandos faziam de tudo para não assistir as aulas, porque muitas delas não tinham nada que pudesse ser interessante para eles. Muitas vezes fui abordada por alguns alunos que me perguntavam quando eu iria voltar a dar aulas. Uma vez uma aluna me disse algo que me emocionou muito e me fez ver que estava no caminho certo: “adoro suas aulas até o cheiro é diferente!”

Quando eu recebi o convite, em janeiro de 2005, para ser Coordenadora geral de Educação, sem ainda ter terminado a minha graduação, faltando dois semestres, fiquei muito orgulhosa pela confiança em meu trabalho e sabia que a missão era grande e muito valiosa. Foi um reconhecimento em minha trajetória perceber que meu olhar de educadora já não podia ser para uma sala de aula com trinta alunos, ou para uma determinada escola com quinhentos alunos, mas sim, para vinte e seis escolas e quinze mil educandos.

Muitas peças se encaixaram então e, dessa forma, eu continuei mesmo apo a conclusão do curso de graduação. Ao escolher uma área para focar meu curso de Especialização acabei fazendo um balanço gera de minha vida e de minha trajetória profissional até o presente; acabei percebendo que estudei em períodos de vida fora dos padrões normais, sempre soube o que era ter que assumir responsabilidades desde cedo e conheço bem a realidade enfrentada por todos os indivíduos que recorrem aos projetos de Educação de Jovens e Adultos. Assim, acredito que vale a pena investir em algo na área da educação que domino bem e que acredito.

Minha história com a Educação de jovens e adultos, vem desde antes de cursar a faculdade, pois eu também conclui meus estudos depois do período indicado. Acredito que a função do educador é muito complexa e, como define Gutiérrez (2000, p. 22),

não é ficar com os braços cruzados, vestindo o casaco do comodismo, mas sim, o educador tem a função de buscar motivar seus alunos à apontar novas formas de reverter esses tempos de crise, ajudando pôr em prática a chamada cidadania planetária, em prol de todos e não de uma minoria.

Conforme destaca Gadotti (apud Gutiérrez, 2000, p. 23), “a cidadania planetária deverá ter como foco de superação da desigualdade, a eliminação das sangrentas diferenças econômicas e a integração a diversidade cultural da humanidade”.

Volto novamente a uma tecla bastante “batida” por autores, políticos, pesquisadores e até mesmo cidadãos em geral de que “toda sociedade começa e se fundamenta com a educação”, ou ainda, “a educação é o futuro da nação”. Assim, os educadores precisam absorver em sua prática estes termos para sair do estágio de hibernação e apatia, buscando fazer a diferença em sua prática, sair do discurso à teoria.

Busquei lançar projetos que aproximavam o Hip Hop das escolas e, procurei incentivar o espírito crítico, a autonomia e valores humanos nos nossos educandos, indo além dos currículos formais e já empoeirados de um sistema que não deu certo.

Segundo Boleiz Júnior (2000,p-), é necessário que se forme uma “utopia possível”, ou seja, “uma consciência nova que deve supor o respeito pelo semelhante, independentemente de quem ele seja e de onde ele esteja”.

Muito tem se falado de que as pessoas têm que aprender a conhecer, aprender a viver juntas, aprender a ser e aprender a fazer. Entretanto, para que isso aconteça, é necessário que as pessoas aprendam a sentir, mas sentir o belo e o bom. A cultura dominante tem como emoção fundadora o medo, acarretando em muitas conseqüências negativas para as pessoas. O verdadeiro, o bom para o conjunto têm que fazer parte das pessoas para que possa haver a preocupação com o outro e não somente consigo mesmo (BOFF, 1996).

O laço afetivo que une os profissionais da educação aos educandos faz a profissão ser diferente das demais, pois quanto mais se ensina, mais se aprende.

Ainda tenho um longo caminho a percorrer, pois espero que meu quebra-cabeça esteja distante do encaixe final. Mas ele continua me atraindo muito, pois a possibilidade de acrescentar na minha profissão faz com que ele vá tomando cor e forma a cada novo passo, a cada nova descoberta.

Essa montagem do quebra-cabeça também evidencia a necessidade de realizarmos profundas reflexões sobre a EJA e o que se deve buscar na mesma, através de elementos para uma aprendizagem atrativa e coerente para que o aluno acredite que o que ele aprende na escola tem utilidade para sua vida e para transformação da sua vida e não somente para a reprodução do sistema excludente. Eis aí uma tarefa nada fácil, mas como diz a cultura popular, “os feitos grandiosos nunca são fáceis”. Se já conseguimos bastante, não custa nada continuar tentando sempre e cada vez mais!

REFERÊNCIAS UTILIZADAS

BOFF, L. Saber cuidar: ética do humano. São Paulo: Schwartz Ltda., 1996.
BOLEIZ JÚNIOR, F. Carta da Terra para crianças. Campinas: Papirus, 2000.
COSTA, A. C. D. G. Por uma educação interdimensional. São Paulo: Hedgien Griffo, 2005.
FONSECA, M. L. Construindo caminhos com a educação. Petrópolis (RJ): Vozes, 2002.
GUTIERREZ, F. Ecopedagogia e cidadania planetária. Petrópolis (RJ): Vozes, 2000.
NÓVOA, A. As ciências da educação e os progressos de mudanças. IN: PIMENTA, F. G. Pedagogia, ciências da educação. Petrópolis (RJ): Vozes, 1996.

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