Memorial de Luzia Terezinha Baptista Oliveira

Memorial Formativo
maio/2008

NOSSAS RAÍZES DETERMINAM NOSSOS FRUTOS

Luzia Terezinha Baptista Oliveira (49); Pós-Graduada em Psicopedagogia; Graduada em Letras e Literatura; Natural de Barros Cassal – RS; Casada com Jorge Vilair dos Santos Oliveira (54); Professora de 1º e 2º graus da Escola de Aplicação – EA, da Universidade Federal de Roraima – UFRR e Mãe de 03 filhas: Soraia (24), Melissa (19) e Yamile (12).


1. RAÍZES

Aos cinco anos, aproximadamente, me perguntei pela primeira vez se havia um outro jeito de viver que não aquele que eu vivia. Não que fosse ruim, e, diga-se de passagem, que era muito divertido, mas eu queria conhecer outro. Tinha curiosidade. Aos sete, descobri! Queria trabalhar com gente. Talvez como recepcionista do posto de saúde... Algo bem importante para mim, aos sete anos... E assim, ao longo dos anos, meu imaginário infantil foi sendo substituído pelo imaginário da mulher adolescente, jovem, adulta e profissional de hoje. Esse desejo de conhecer outros “mundos”, acredito, tem como raiz o “mundo”, da minha infância.
Sou a primogênita de uma família de oito irmãos. Nasci na zona rural de uma pequena cidade do interior do Rio grande do Sul, Barros Cassal, filha de um jovem casal, pequenos agricultores, cheios de amor, de esperança e muito trabalho. Ele, na escola formal, freqüentou apenas um mês de aula. Considerado muito “arteiro e sabido” foi retirado da escola conhecendo apenas o alfabeto e lendo algumas palavras. Órfão de pai e abandonado pela mãe trabalhava de empregado nas fazendas desde os 11 anos. Ela, na escola formal, freqüentou seis meses e saiu por ser uma das mais velhas entre dez irmãos, portanto tinha que ajudar a mãe nas “lidas domésticas”. Mas, por algum motivo, os dois acreditavam que o “estudo”, como costumavam dizer, era muito importante para a emancipação do homem. Assim, tinham convicção de que seus filhos tinham que estudar.
Morávamos a seis km da escola mais próxima. E quando eu completei quatro anos meus pais começaram a pensar seriamente na “escola para as crianças”. Sem recursos e sem possibilidade de sair da propriedade, fazia-se necessário pensar estratégias para solução do problema. Meu pai comprava lápis e borracha e minha mãe passava com o ferro a brasa o papel de embrulho, que vinha nas compras, para ficar bem lisinho e confeccionar cadernos para mim e um garoto filho de um vizinho, com quatorze anos. Depois de liso o papel, ela dobrava a folha, uma vez, duas vezes e cortava; por último costurava ao meio e traçava as linhas com uma ripinha. Estava feito o caderno.
À noite, depois da “janta”, enquanto a mãe lavava a louça a pai ensinava a escrita e a pronúncia das letras do “ABC”. Letras grandes, bem desenhadas, e ele com muita habilidade, ia nos ensinando a juntá-las. Posteriormente, íamos exercitando a leitura nos rótulos e receitas de medicamentos, rótulos de mantimentos, catecismos e numa revista, única em circulação por ali, cristã, intitulada “A voz de Assis”. Aos cinco anos eu já sabia “ler e escrever”. Foi nesta ocasião, que os pais da comunidade onde morávamos, Vila Nova, resolveram reivindicar junto à Prefeitura Municipal uma escola mais próxima de suas casas, para os seus filhos.
A Secretaria de Educação do município promoveu a articulação do processo de implantação da escola num esforço coletivo, onde os pais listaram os alunos e construíram, no sistema de mutirão, com madeira doada pela comunidade, com suas próprias mãos, uma casinha que se tornou a nossa primeira escola, “Escola Municipal Garibalde Silva”. Nessa parceria, a Prefeitura providenciaria a professora e os pais juntamente com as crianças providenciavam a merenda escolar, limpeza e conservação da escola, situada a três km de distância da minha casa. Comecei a educação formal com seis anos. Íamos a pé ou a cavalo e permaneci ali até os onze anos. Não tendo condições de sair para estudar fiquei afastada dos estudos até os catorze anos.
Além da preocupação com o “estudo”, marca dos dois, meus pais, era muito forte em minha mãe a fé. Aquela fé que “move montanhas”. Tínhamos o hábito de rezar todas as noites; irmos à missa uma vez por mês na capela mais próxima, a seis km, e, sempre que possível na igreja matriz e uma vez por ano à festa da Padroeira. Aos cinco anos fiz a primeira comunhão. Fui membro do grupo de jovens da matriz e catequista.
Penso que o mundo que eu queria conhecer, desde a primeira manifestação aos cinco anos, já sinalizava para as duas dimensões de mundo: o mundo geográfico; o mundo das experiências (pessoal e social), da interação com o meio, da construção de novos espaços de luta e de conhecimento.
Este ideário com marcas da fé e da conquista do espaço através do esforço coletivo, proporcionou-me um interesse por determinadas causas, como a causa dos os pobres, dos excluídos, e, por que não, a vida religiosa. Nesse contexto, estudei cinco anos na congregação religiosa das Irmãs Franciscanas de Nossa senhora Aparecida, em Porto Alegre. Lá, além de exercer atividade pedagógica nas escolas da congregação, conheci um mundo de ricas experiências interacionais, de conhecimento cognitivo, de trabalho social e de autoconhecimento. Por opção, acabei saindo da congregação.
Esse processo de saída do campo para a cidade, dentro da vida religiosa, e de saída da vida religiosa para a vida leiga, não é nada tranqüilo. Como articular a nova vida? Trabalhar? Estudar? É possível fazer as duas coisas? E como providenciar o sustento? Nessa ocasião estava com 20 anos e apenas o Ensino Fundamental, pois na congregação, houve um tempo em que os estudos eram específicos da formação pessoal e religiosa. No entanto, considero esse momento como um elemento bem importante na consolidação das minhas raízes.

2. BEM-VINDA A MATURIDADE!

A primeira coisa que fiz ao sair foi matricular-me em uma escola de Ensino Médio (magistério), na minha cidade natal, diurno. Trabalhei em casa de família para poder estudar. Fiz o primeiro ano, porém, preferi migrar para Cruz Alta, cidade maior, mais oportunidade de trabalho; matriculei-me imediatamente no segundo ano do magistério, diurno - Escola Estadual de Ensino Médio Annes Dias. Consegui trabalho à noite para garantir o sustento. Então, poderia dormir pela manhã e estudar à tarde. Porém, havia um empecilho: tinha que fazer educação física pela manhã.
Fui solicitar a dispensa da educação física, segundo a lei vigente, um direito meu. A diretora falou que eu teria que escolher: trabalhar ou estudar, porque o regimento da escola não abria precedente, naquele caso. Restava escolher um curso à noite e trabalhar durante o dia. Assim para não ficar afastada dos estudos, mais uma vez, matriculei-me no único curso que tinha vaga: Contabilidade.
Continuei engajada de alguma maneira em grupos de jovens. Consegui trabalho no Hospital Santa Lúcia (UTI, Hemodiálise), onde morava e fazia um curso de atendente de enfermagem, o que seria hoje um curso de capacitação em serviço. Morei em Cruz Alta cinco anos, onde casei, nasceu minha primeira filha e concluí o curso de contabilidade sem nunca exercer a profissão, pois não possuía afinidade com o curso.
Nesse período, por condição financeira, meu marido e eu combinamos que faríamos a graduação um de cada vez. Ele concluiu primeiro, foi convidado por parentes que moravam no norte do país, mais precisamente em Boa Vista, para trabalhar no Ex-território Federal de Roraima. Topamos. Lá chegando fui informada que havia um curso de magistério à noite. Assim consegui concluir o magistério. Tive a minha segunda filha e em 1990 ingressei na Universidade Federal de Roraima, no curso de História. Logo em seguida fiz reopção para o curso de Letras com habilitação em Literatura por uma questão de afinidade com o curso.
No mesmo período, prestei concurso para professores de 1º e 2º graus, sendo chamada em junho do mesmo ano. Fui lotada na Escola Euclides da Cunha, que, mantinha um convênio com a Diocese de Roraima. O governo viabilizava o corpo docente, e a Diocese fornecia o prédio e formava a equipe diretiva, em outras palavras, determinava a prática pedagógica.

3. FORMAÇÃO E PRAXIS DOCENTE

O ano de 1990 considero um divisor de águas no âmbito profissional. Essa foi minha primeira experiência realmente inteira, intensa e na qual eu me senti ressignificando tudo o que eu já havia feito até então. Comecei trabalhando com turmas de 1ª série do ensino fundamental. Coube a mim, por três anos seguidos, a turma que “ninguém queria”. No primeiro ano, por eu ser “novata”, não tinha escolha; no segundo e terceiro, optei por assumir a turma, que era conhecida como “remanejada[1]”.
A formação dessa turma decorria de uma prática da escola, ligada à igreja, que entendia ser de bom tom oferecer um percentual de vagas para a comunidade, uma vez que a mesma, apesar de ser pública, era destinada a atender os filhos da elite roraimense. Os pais, da comunidade (dos excluídos), ficavam na fila uma semana, em frente à escola, porque quando começavam as matrículas para a primeira série, os primeiros vinte eram contemplados. As outras duas turmas eram formadas pelos alunos que estudavam nos melhores colégios de educação pré-escolar: Anjo da Guarda e Instituto Batista.
Essa turma apresentava algumas variáveis, que não permitia a mobilidade entre as outras, tais como: os pais da “elite” não admitiam que seus filhos estudassem na turma remanejada, pois ali iriam conviver com filhos de prostituas do Beiral (zona de prostituição perto da escola), da copeira da escola, dos pretos, índios “cheios de vícios”, em fim dos pobres em geral. Por outro lado, as professoras das outras turmas não os queriam, pois havia um empenho em manter turmas homogêneas, com letras lindas, iguais a da professora que orgulhosamente recebia homenagens por seu excelente trabalho. Havia, também, alguns alunos que moravam em bairros afastados e tornando-se infreqüentes.
Ao receber a primeira turma foi que percebi a distância entre a teoria e a prática. Havia um programa a cumprir, comum às três turmas. Porém essa era diferente. Além disto, eu não tinha experiência, não sabia efetivamente como lidar com a situação. Fiquei 15 dias tentando tudo o que as colegas, que nunca quiseram pegar a turma, sugeriam. Sofri muito. Mas não desisti. Vendo o meu desespero, a vice-diretora, uma pessoa sensível, dispôs-se a ajudar. Deixamos de lado a lista de conteúdos, entregue pela supervisão, e passamos a criar nossa própria forma de lidar com eles. Desconsideramos as limitações, individuais e sociais dos alunos, bem como, as cobranças da supervisão, que insistia num esforço para levá-los “ao mesmo patamar dos outros”.
E, numa sala minúscula: trabalhando com rótulos trazidos de casa; acreditando e valorizando o potencial de cada um; realizando pequenas experiências que possibilitaram a participação da turma na feira de ciências da escola e, com muita leitura para embasar nossa ação, conseguimos excelentes resultados. A partir desse estímulo, penso que lancei uma reedição do que meus pais haviam feito comigo. Briguei, literalmente, pelos direitos da turma que era vista como um peso para a instituição, chegando ao ponto de ouvir da diretora: “você está desperdiçando o seu potencial com essa turma”.
Este foi, sem sombra de dúvida, o primeiro, e, grande desafio da minha docência. Para tal, empreendi um esforço, artesanal, num projeto de vida, coletivo – nosso, meu e deles, sem que o mesmo tivesse sido traçado, apenas com a meta definida: a alfabetização dos alunos até o final do ano. A dinâmica era: preparar aula, aplicar, avaliar. Deu certo? Não deu? Repensa. Vivendo um dia após o outro. Num processo bem freireano, de ação/reflexão/ação, ininterruptamente. E, deu certo. O mais satisfatório foi perceber, aproximadamente no mês de setembro, que todos, indistintamente, estavam lendo, escrevendo e superando limites.
Neste período, li muito Emilia Ferreiro, que me trazia o suporte teórico das idéias do construtivismo, que apesar do turbilhão pelo qual passava, servia como conforto de ter alguém pensando diferente. Assistia a um programa chamado Professor Alfabetizador, na TVE do Rio, que tratava das questões referentes à alfabetização no universo da sala de aula, o qual contribuiu muito para os bons resultados alcançados.
Durante esses três anos, muitas mudanças sociais e políticas ocorreram no, recém criado, estado de Roraima e a orientação para os funcionários do ex-território era de que fossem redistribuídos para Instituições Federais. Coincidentemente, na ocasião havia sido convidada para fazer parte da equipe de criação e implantação da Escola de Aplicação-EA, da, também recém criada, Universidade Federal de Roraima-UFRR, então encaminhei o processo com o pedido de redistribuição. Enquanto esperava a liberação do MEC para tal, fui convidada e aceitei fazer uma experiência na Escola de Educação Especial do Estado. Trabalhei com crianças autistas de fevereiro até abril de 1993, quando fui definitivamente para UFRR.
Na UFRR, participei do sofrido processo de criação e implantação da EA, hoje Colégio de Aplicação, exerci a docência em todas as séries do Ensino Fundamental e Médio, com todos os percalços dessa profissão e dessa realidade; concluí a graduação; cursei uma Pós em Psicopedagogia; participei do conselho universitário, comissões deliberativas e da comissão de criação do centro de educação - CEDUC. Apesar dos contratempos nunca abandonei o processo de formação acadêmica. E, nasceu a minha terceira filha.
Essa aparente normalidade foi interrompida para um novo desafio. Em 2003, a diretora da EA, foi procurada para indicar duas professoras para serem avaliadoras de um projeto de Alfabetização de Jovens e Adultos do PRONERA[2] coordenado pelo SENAR[3] em parceria com o INCRA[4], que estava sendo executado nos assentamentos do INCRA em Roraima. Minha colega, Geovani Bonfim[5], e eu fomos indicadas. Aceitamos com a condição de conhecer o Programa e o Projeto antes de iniciarmos as atividades. Concordaram, concordamos, analisamos o Projeto e concluímos que não haveria mistério para duas professoras com a experiência que julgávamos ter em alfabetização.
Organizamos nosso material para anotações; instrumentos de avaliação, muito bem elaborados, com letras grandes, pois nos informaram que os alunos apresentavam problemas de visão. Saímos para a primeira visita. Guiadas pelo motorista que conhecia os locais das salas de aula, entramos mata adentro.
A primeira e a segunda turma funcionavam em escolas das vilas, onde havia luz elétrica e os alunos realizaram as atividades propostas com relativa normalidade, com exceção das dificuldades para o deslocamento e dos problemas próprios de quem vive nos assentamentos. Mas, o Projeto era formado por doze turmas. Então, fomos para a terceira. Saímos de Boa Vista, em torno de 16h, viajamos, viajamos, e, chegamos ao PA[6] Samaúma, em torno de 18h30min. E, bem ao longe avistamos uma casa de madeira com um “liquinho[7]” aceso ao centro, dando pra vislumbrar os vultos de algumas cabeças. E, em direção à casa outros vultos se aproximando com pequenas lanternas na mão feito vaga-lumes.
Meio tontas pela viagem e pela escuridão que nos impedia de pisar com segurança no chão, fomos nos aproximando e adentrando. – Boa Noite! - Boa Noite! O monitor[8] nos apresentou aos alunos: - Essas são professoras da Universidade que estão aqui para conhecer a turma e verificar se tudo está funcionando de acordo. Ficamos boquiabertas diante do que víamos: uma turma com vinte alunos, naquele dia, dezesseis, amontoados numa sala da casa de um aluno, com a iluminação proveniente apenas de um liquinho, ligado ao centro da sala. As cadeiras, de braço, doadas, simetricamente organizadas de forma que cada um recebesse um raio de luz para enxergar o caderno. Numa das primeiras cadeiras, uma jovem mãe com dois filhos: um no colo e outro com aproximadamente dois anos agarrado em suas pernas. Ao lado direito da sala, uma família inteira: pai, mãe, dois filhos que já sabiam ler e ajudavam os pais nas lições. Não sei como cabia tanta gente. Enquanto interagíamos com eles, nos falaram de suas motivações: o casal disse que tinha que aprender a ler para não se perder mais quando fosse à feira levar os produtos; o rapaz, para escrever carta a seu pai que deixou no nordeste e não via há anos.
Na parede da frente uma lousa[9] para as anotações. O monitor, um rapaz baixinho, franzino com cara de adolescente, mas com muita habilidade. Falava baixo, mas alto o suficiente para ser ouvido por todos. Perguntava com freqüência: - Estão prontos? Podemos continuar? E todos trabalhavam com vontade. Percebi que o vocabulário do monitor, o tom de voz e o ritmo das atividades eram específicos daquele grupo e situação. No entanto, a dinâmica da nossa atividade consistia em aplicar o exercício de escrita e de matemática – dos conteúdos da proposta do projeto - e fazer anotações de toda a natureza sobre a turma. Então, percebi que não conseguiria aplicar, ali, os exercícios previamente preparados. Rapidamente, bolamos um plano “b”: um ditado de palavras e pequenas frases aplicadas pelo próprio monitor, que posteriormente aplicou as questões de matemática, respeitando o tempo e as limitações individuais e ambientais dos mesmos.
A partir daí, iniciou-se mais um outro grande desafio na minha docência e no meu processo de formação continuada. Não que os outros anos de trabalho docente, não tenham sido de desafios, de reflexão, de lutas individuais e coletivas, de estagnação, de avanços, de construção, desconstrução e reconstrução; movimentos, esses, inerentes aos processos de luta da educação pública brasileira e especificamente na busca pela identidade da EA e da Própria UFRR. Porém, este é um desafio novo, porque é num “território” desconhecido. Entenda-se território “... como um espaço de vida, ou como um tipo de espaço geográfico onde se realizam todas as dimensões da existência humana.” (MANÇANO, 2006). Os assentamentos de Roraima, da forma como são estruturados; os trabalhadores e condições de trabalho e vida; a proposta do PRONERA, pensada na trilogia: INCRA, Movimentos Sociais e Universidades. São outras relações que se estabelecem.
Voltando ao novo desafio, penso que naquele momento, nossa convicção de que estávamos preparadas para a função e de que éramos alfabetizadoras experientes foi posta em cheque. Tivemos que rever, repensar, desconstruir, literalmente, todo o nosso suposto cabedal metodológico. Acredito que começa a segunda reedição da Alfabetização Euclidiana (do meu pai). Novamente, fiquei sem referencial. As minhas concepções e metodologias não se aplicavam ali. Nesse entendimento, contribui para a reflexão o que diz (MORIN,2002) “...o novo brota sem parar. Não podemos jamais prever como se apresentará, mas deve-se esperar a sua chegada, ou seja, o inesperado. E quando o inesperado se manifesta, é preciso ser capaz de rever nossas teorias e idéias, em vez de deixar o fato novo entrar à força na teoria incapaz de recebê-lo”. Ficamos muito preocupadas com os desdobramentos da nossa avaliação, tínhamos que avaliar um processo que não conhecíamos e não participamos da elaboração da proposta.
Nesse período, me foi dada a oportunidade de participar da II Conferência Nacional de Educação do Campo “Por uma Política Pública de Educação do Campo”, em Luziânia – GO, Agosto de 2004, onde tive o primeiro contato efetivamente, com esse ideário político e educacional. A partir daí, participamos de muitos outros espaços de reflexão e estudo relacionados à Educação do Campo e à EJA, em Roraima e em Brasília. Tais como: Encontro Regional de Educação do campo em Manaus; Encontro Estadual, Fórum de EJA e GT de Educação do Campo em Roraima; Encontro Nacional de EJA e I Encontro de Pesquisa e Educação do Campo em Brasília, 2006 e outros que possibilitaram um referencial de discussão e leituras que vêm favorecendo um amadurecimento profissional e uma ressignificação da minha formação continuada.
Em nenhum momento afastei-me das atividades da EA, continuei me engajando nos projetos da Pró-Reitoria de Extensão – PROEX. E, em 2004, fiz parte da equipe pedagógica de um projeto de EJA, do PRONERA (1ª e 2ª séries) coordenado por professores da EA, onde trabalhei, também, como professora capacitadora nos Encontros de Formação dos monitores. Em 2005, encabeçamos a coordenação, professora Geovani e eu, de um segundo projeto da EA, pela PROEX, EJA nos Assentamentos de Roraima (1ª a 4ª séries), com trinta turmas, seiscentos alunos e dois anos de duração. Afastei-me em fevereiro de 2007, para acompanhar o cônjuge em capacitação aqui em Porto Alegre. Por esse motivo, estou lotada provisoriamente na UNED do CEFET/RR em Sapucaia do Sul, onde trabalho com Redação Técnica nos cursos técnicos e Língua Portuguesa nas turmas do PROEJA.
Essa trajetória de vida, com “coincidências” interessantes, sempre me conduziu, de alguma forma, para a educação popular. Não posso dizer que tenha sido uma militante de movimentos sociais, mas simpatizante e com ideais afins, talvez isso seja o que acaba me conduzindo para uma educação mais engajada. Nos últimos anos tenho feito leituras, ainda não tão aprofundadas o quanto desejo, de Paulo Freire, Miguel Arroyo e os textos dos professores autores e organizadores das publicações do Programa Nacional de Educação do Campo e os autores indicados pelo nosso curso de Especialização em PROEJA, bem como textos relacionados à nova atividade na UNED.
Ao longo de toda a vida, tenho buscado compreender o meu papel, como indivíduo e como ser social, que interage, querendo ou não, com o mundo que o cerca. E, entendo que o nosso processo de formação se estabelece pela tríade: raízes (família, cultura, crenças, modelos de representação social em nossos pais e na comunidade); formação acadêmica (formal e leituras de apoio) e práxis. Penso que as raízes conduzem, mesmo que por caminhos tortuosos, à escolha (por vezes involuntária) profissional e o processo de formação, do qual decorre a prática (reflexiva ou não). Penso que não fiquei impune em nada do que vivenciei no âmbito pessoal e profissional, ou seja, cada momento foi fundamental para a formação da mulher/profissional que sou hoje.

4. INSCRIÇÃO NA VIDA E NA PROFISSÃO DOCENTE

Costumo dizer que a principal condição na qual me inscrevo, de uns anos para cá, profissionalmente, é a de “pesquisadora social” permanente, sem registro e pouco financiamento. Utilizo os métodos da pesquisa ação, desde o primeiro dia de aula sem, no entanto, ter tido consciência disso. O contexto educacional como um todo é sempre o objeto de estudo. Todos os anos estabeleço os objetivos, considero as hipóteses, checo os dados, faço registros, recorro a leituras de apoio e começo um novo experimento. À medida que o tempo vai passando vão surgindo as variáveis, que não estavam previstas, e temos necessariamente, que rever o método, os instrumentos utilizados, nossos enfoques e por vezes começar tudo de novo. Às vezes conseguimos estabelecer indicadores que sustentam as nossas hipóteses e permitem avanços e algumas intervenções na nossa ação individual e coletiva.
Estou me organizando com o intuito de, como próximo passo, continuar a minha formação com o mestrado e doutorado.

Referências:

MORIN, Edgar. Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro. São Paulo : Cortez; Brasília, DF : UNESCO, 2002.

ARROYO, M. G.; CALDAT, R. S.; MOLINA, M. C.: Por uma Educação do Campo. Petrópolis, RJ : Vozes, 2004.

FREIRE, Paulo. A Importância do Ato de Ler: em três artigos que se completam. São Paulo : Cortez, 2001.

FERREIRO, Emilia. Reflexões sobre a Alfabetização. São Paulo : Cortez, 2000.

MOLINA, Mônica Castagna (Organizadora). MANÇANO,B.F, p.27-39. Educação do Campo e Pesquisa: questões para reflexão. Brasília: MDA.2006.

Notas:
[1] Após duas semanas de aula os alunos que mais se destacavam dentre os oriundos da comunidade eram remanejados para as outras duas turmas e os que apresentavam maior grau de dificuldades dentre os oriundos dos colégios eram remanejados para a primeira turma, formando assim a turma remanejada, que ninguém queria.
[2] Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária
[3] Serviço Nacional de Aprendizagem Rural
[4] Instituto Nacional de Colonização na Reforma Agrária
[5] Geógrafa e professora da EA-UFRR
[6] Projeto de Assentamento
[7] Lampião a gás.
[8] Nomenclatura usada para denominar a pessoa do assentamento que é escolhida pela comunidade para receber a capacitação e exercer a função de professor na turma.
[9] Quadro de giz.

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