Memorial de Márcio Cristiano da Silva


A primeira lembrança que eu tenho de escola, é de quando eu estudava na pré-escola. Não tínhamos relógio em casa, só o pai tinha. Quando meu pai saia trabalhar, ia a pé, para economizar, saia muito cedo. Dizia que eu tinha que ter um emprego melhor, que tinha que estudar. Que bobagem emprego melhor, como se lavar e consertar carros não fosse importante. Quando eu escutava o barulho do portão do vizinho era hora de ir para a escola. Também nunca esqueci de um dia em que a professora me deu um beijo e fiquei marcado de batom, era meu aniversário. Morávamos numa casa que não tinha banheiro, tomávamos banho em um cano e havia uma patente no pátio, Estudei sempre em escola pública. Que absurdo era escola de 1º grau incompleto. Mas a cada ano tinha que matricular em outra, depois voltava, pois a escola estava implanto as turmas até virar 1º grau completo. Na 7ª série mudei de escola, definitivamente, já que a turma nova não abriu. O 2º grau foi técnico em agropecuária. Como eu era urbano, não foi fácil, aprendi um monte, não o suficiente para querer trabalhar nisso. Mas eu gostava de estar na escola, o dia todo, era aula manhã e tarde. Me formei e fiquei um ano sem fazer quase nada.
Já tinha dois irmãos professores e suas esposas também. Fiz concurso para secretário de escola, o que mudou minha vida: professor, marido, pai, diretor. Comecei a trabalhar numa escola, e por gostar de política, fui cursar história. Comecei a gostar mais de escola e ver que o meu futuro era inevitável: “virar” professor. Na escola, por ser representante sindical tinha muito espaço em reuniões, até coordenava. Era muito bom estudar, por prazer, e no trabalho perceber os erros dos professores. Depois quando enfrentei a sala de aula, percebi que não era tão fácil. Que bom que não é fácil, sempre iniciar o ano com dor de barriga, estando na frente de muitos jovens, todos diferentes, com expectativas, encontros, desencontros, harmonia, desarmonias.
O heavy metal, sempre fez parte de minha vida. Passei em três concursos públicos estudando e escutando Sepultura nos fones de ouvido. Conhecia muita gente estranha e legal, circulava entre a juventude do PT e fui convidado a freqüentar a JE da IECLB, que mistura: a maldade do metal, rebeldia e fuga da timidez, o revolucinarismo panfletário da juventude socialista, e o cristianismo, que nasceu com a missa católica semanal, que a mãe me levava em troca de um picolé, mas que eu tinha o privilégio de ser aluno, na missa das crianças de uma futura secretária municipal de educação. Graças a mãe fiquei só no rock, sem drogas, apesar de sempre vê-las. Mas a brincadeira satanista do metal era divertida, e ela ficava fula.
Formado em história, certa vez no movimento Marcha pelo Brasil, passei um mês com o MST, discutindo política de porta em porta, vendo que cada um compreende a história de um jeito, e que o mais simples, transforma a história em vida, não em conteúdo livresco. Quando o Olívio foi eleito governador fui convidado para trabalhar na CRE, não como CC, mas como soldado raso, passei a ganhar menos, gastando com transporte. Instalava e dava treinamento do Procergs/INE, programa das secretarias de escolas, foi assim que conheci minha esposa, quando fui para a sala de aula eu ensinei a ela o que fazia na CRE, e de quebra me apaixonei.
Da minha primeiras experiências como professor, lembro a necessidade de identificar-me com meus alunos, de mostrar minha(s) identidade(s), de não crescer. Mas a experiência mostra que é muito bom amadurecer, se identificar, sem ser igual a quem se identfica, até porque nem todos alunos são, cristãos, socialistas ou bangers. Comecei com ensino fundamental, a noite com adultos, era muito bom, discutia muito política, poucos alunos, mas eu era pouco exigido, voltei para a escola que eu tinha sido secretário e já tinha um certo respeito, por isso não era muito cobrado. Quando minha esposa terminou a faculdade, passei a quere ficar em casa a noite e fui para uma escola de ensino fundamental a tarde. A primeira vez que entrei numa quinta série levei um susto, como eles eram pequenos, e como me analisavam. Aquela figura estranha, de camiseta preta, de cabelo comprido, tiara e brinco, que falava de luta por direitos, e fé. A escola fica numa região pobre de Ijuí, na lateral da escola tinha uma rua sem calçamento que era poeira só, e em dia de chuva quase intransitável. Certa vez numa véspera de eleição, falei em aula que o prefeito iria ser reeleito, e o calçamento não sairia. Depois de uns meses o pessoal fechou a rua e a prefeitura calçou. Um boa lembrança desta escola foi aprender a trabalhar com crianças, brincar, viajar com eles até as Ruínas de São Miguel e ouvir nas reuniões pedagógicas a professora de educação física, que falava do corpo, do movimento e a de artes que dizia que o aluno se cansa, quando a gente sempre faz a mesma coisa.
Na escola de ensino médio, fiquei cinco anos, sinto falta até das paredes. Haviam murais muito lindos, feitos pelos alunos. Uma escola com boa estrutura, laboratórios, sala de apresentação de trabalhos, grêmio estudantil bem organizado. Era uma competição, entre as disciplinas de quem conseguia média melhor de acertos em prova de vestibular. Uma escola que trabalhava tinha tudo, ou quase, a outra quase nada. Numa ensinar as crianças que eram pobres, mas que deviam ter coragem de saírem do bairro e cursar o ensino médio, na outra tornar os competitivos, mais humanos. Que absurdo num país que se diz democrático, numa sala de aula os colegas discriminarem -se pelo bairro onde moram, ou pela roupa que vestem. Como a Lucia, minha esposa formou-se em nutrição, mudamos para Caxias, para ela procurar emprego. Ela também trabalha em escola, na secretaria. Queria ser diretor de escola, tinha sido secretário, trabalhado na CRE, professor em escolas com realidades diferentes, representante sindical nas duas escolas, dirigente sindical, presidente de conselho escolar. Mas devia esperar, mudar de cidade por amor. Mas a escola que cheguei, precisava de idéias diferentes, de gente que se expõe, para que os outros, também troquem o que são e o que sabem. Concorri e venci. Estou aos poucos, junto com quem está ao redor transformando a escola que temos, na escola que queremos ser, no meu caso contribuindo com o que aprendi e vi em cada escola que passei, quando vou a Ijuí, levo as influências de quem com hoje convivo.
Não falei do Francisco, meu filho. Se todo professor pensar que está educando o filho dos outros, da mesma forma que quer que outros professores eduquem seu filho, teríamos pais e professores mais responsáveis. Sempre digo aos meus alunos, que eles tem que compreender seus pais, e serem melhore que eles com seus filhos, porque tem melhor condições, mais acesso ao conhecimento. Não é fácil ser pai, professor, marido, diretor, mas também não é difícil, o segredo é ser sempre a mesma pessoa.

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