Memorial de Taís Cristina de Souza


Escrever sobre minha história é como relembrar de cada momento que marcou minha vida e de como cada um desses momentos contribuíram para minha formação como professora.
Inicio falando um pouco de meus pais... Meu pai, José Carlos Luis de Souza, nasceu em meados de 1949, em São Francisco de Paula. Por ser o filho mais novo dentre 6 irmãos, teve algumas regalias, mas mesmo assim, sua infância não foi muito fácil, pois os recursos financeiros eram escassos e a comida era exatamente o que se plantava, ou melhor, o que dava no plantio. Meu pai conta que quando pequeno, meus avós chamavam primeiro os filhos para comer e depois eles sentavam a mesa para se alimentar. Diante das dificuldades, as irmãs de meu pai resolveram sair do campo e ir para a cidade (Caxias do Sul), pois assim, teriam chance de trabalhar e ajudar a família. Minha avó resolveu assim vir junto com elas para a cidade e meu avô permaneceu no campo, pois afirmava que não conseguiria viver longe do seu rancho.
Conforme Telles (pág.252), entre 1950 e 1960, cerca de 8 milhões de pessoas migram do campo para a cidade, como forma de escapar da miséria e da falta de perspectiva de vida, período conhecido como êxodo rural.
A vida de ambos não foi fácil...minha avó arrumava costuras para fazer em casa e todas as minhas tias trabalhavam. Meu pai entrou na escola no ano de 1955. Iniciou estudando na E.E.E.M. Imigrante e lá, aprendeu as noções básicas da educação infantil. Conta que também se lembra da merenda e do leite com achocolatado que a “tia da cozinha” preparava para eles.
A partir da sétima série, meu pai começou a mostrar interesse em participar do grêmio estudantil da escola.
Conta também que em 1964 seu pai veio para a cidade, junto com outros moradores, para montarem barreira contra o governo de Jango, pois suas terras estavam sendo desapropriadas, ou seja, o governo estava se apropriando de parte do rancho do meu avô, sem chance alguma de reavê-las. Nesse período, oficiais vão até o rancho do meu avô e colocam fogo em tudo ... Infelizmente, meu avô perde o pouco que tinha.
Minha mãe, Irailda Lourdes Piamolini, nasceu em 1950, em Ipê, localidade formada exclusivamente por imigrantes italianos. Como minha avó tinha muitos problemas de saúde, minha mãe e seus quatro irmãos tiveram que trabalhar desde cedo para ajudar no sustento da casa. Minha mãe, com cinco anos, cuidava de duas crianças de uma vizinha e ainda tinha que limpar toda casa. Conta que, diferentemente da família do meu pai, seus pais comiam primeiro e o que sobrava, era dado para eles dividir. Muitas vezes dormia com fome...
Com cinco anos, meu avô trás a sua família inteira para Caxias do Sul, pois aqui era mais fácil arrumar emprego e também recursos para a saúde de minha avó.
Minha mãe inicia a estudar na E.Aristides Germani. Passa muitas dificuldades, pois só sabia falar italiano, e era motivo de muitas piadas de seus colegas, principalmente pelas pronúncias erradas. Devido as suas dificuldades, passa a estudar sozinha, depois que todos já estavam dormindo, pois sua professora lhe dava livros para ajudar na nova língua mãe. Conta que o único apoio que recebia vinha da escola, de sua professora, que a incentivava a estudar, com livros e com alguns minutos depois da aula.
Minha mãe consegue vencer inúmeros obstáculos e dificuldades e, mesmo com fome e frio, tendo que cuidar de crianças, continua a estudar. Seu alimento principal era fornecido pela escola. Como todos sabiam da dificuldade que minha mãe passava, a diretora sempre levava minha mãe para a cozinha e servia a ela um achocolatado bem quente para aquecê-la nos dias de inverno. Foi à diretora da escola que muitas vezes esquentou água e colocou em uma bacia para “descongelar” o pé da minha mãe, pois ela só tinha um par de alpargatas, sem meia. O papel da escola para minha mãe foi fundamental, pois seu pai dizia que mulher não tinha eu estudar, que mulher foi feita para cuidar dos filhos e da casa. Terminou o ensino básico de noite, pois tinha que trabalhar o dia inteiro para dar a “pensão” para o meu avô. Com muito esforço, terminou o ensino médio e não pôde fazer uma faculdade por falta de recurso. Sempre disse que se tivesse uma filha mulher, faria de tudo para ela poder estudar e cursar uma faculdade.
Em um lindo dia do ano de 1569, meus pais se conhecem e passam a namorar. Ambos passam a participar ativamente das mudanças ocorridas no nosso país. Participam juntos de passeatas, marchas organizadas pelos estudantes e protestos em defesa dos direitos humanos. Meu pai, junto com alguns amigos, organiza um grupo clandestino que debate assuntos censurados e banidos de todos locais de “livre expressão”.
Contam que muitas vezes, enquanto estavam tendo aula, um oficial ficava no fundo da sala de aula, analisando os comentários de professores e alunos. Se alguma coisa fugisse do controle ou era diferente do que estava no livro, o professor ou o aluno era retirado da sala de aula e dificilmente retornava.
Contam que a repressão era terrível e que as músicas que emolduravam cada marcha traduziam o sentimento de uma juventude ansiosa por mudança, ansiosa em ter o direito de opinar, ou melhor, ainda, de questionar qualquer fato que precisasse ser esclarecido.
Essa época, segundo Couto (pag. 127), refere-se à época em que a Junta Militar escolhe o novo presidente do país: o General Emílio Medici. Seu governo, vale relembrar, é considerado o mais duro e repressivo, sendo o seu período conhecido como “anos de chumbo”. A repressão à luta armada cresce e uma severa política de censura é colocada em execução. Jornais, revistas, filmes, músicas e outras formas de expressão são censuradas. Muitos professores, artistas, músicos são investigados, presos, torturados ou até mesmo exilados do país.
Meu pai conta que a música “Pra não dizer que não falei das flores”, de Geraldo Vandré se tornava o hino da sua geração. Enquanto me contava, percebi uma emoção quando parte de um refrão saia de seus lábios:

“Vem vamos embora que esperar não é saber, quem sabe faz a hora, não espera acontecer...”

Meus pais sempre foram muito esclarecidos. Não apenas em função dos bancos escolares, mas pela vivência, pela maneira que expressam seus sentimentos e ideais e pela maravilhosa forma de amar e respeitar toda e qualquer criatura viva.
Depois de dois anos e meio de namoro, resolvem casar.

MINHA INFÂNCIA

Nasci no dia 13 de junho de 1977, depois de cinco anos que meus pais estavam casados, em um lar totalmente político, em que algumas noites eram dadas para traçar os novos rumos e novas marchas.
Também era um período de muitas dificuldades financeiras, onde a ajuda dos meus avôs foi fundamental, pois meu pai estava tão envolvido em questionamentos, que às vezes, esquecia que tinha uma família.
Para ajudar, em agosto de 1977, manifestantes exigiam o retorno imediato ao “Estado de Direito”, ou seja, ao Estado democrático regido por uma Constituição livremente aprovada pelos representantes da nação, conforme Telles (pág. 287).
Segundo minha mãe, após eu completar 6 meses, meu pai passou a se dedicar mais a nós duas, deixando a situação do país mais de lado.
Fui crescendo entre o meio do mato e o meio da cidade. Digo meio do mato porque meus avôs ainda moravam no campo e eu aproveitava cada fim de semana para pular riacho, subir em árvores ou fazer “polenta” com barro.
Na cidade, brincava e brincava! Minha brincadeira favorita era “Escolinha”, onde claro, eu era a professora e meus ursinhos e bonecas, os alunos.
Também acompanhava com meus pais o início da Campanha Diretas Já, que teve início em 1983 e tomou proporções gigantescas em 1984. Também acompanhei na televisão a vitória de Tancredo Neves e chorei com o anúncio de sua morte!
É... , também chegava a hora de ir para a escola!
Meu prezinho foi na Escola São João Batista, escola essa católica, onde minha professora era freira. Não tive uma boa passagem por ela, pois chorava o tempo todo. Quando chegava à escola chorava mais ainda, o que obrigava a minha mãe a me trazer para casa. Dizia para ela que não queria mais ir rezar e que eu queria ficar em casa brincando com ela.
Minha mãe chegava a chorar, pois trabalhava em casa, colando caixas que meu pai trazia da gráfica, para ajudar a pagar a escola que era particular.
Como eu não me adaptei na escola, na primeira série fui estudar na Escola Sílvio Dal Zoto. Lá, não tive problema algum! Adorava ir para a escola e até hoje me lembro de cada professora e até de algumas aulas... Também me lembro dos elogios que as professoras me davam e da única reclamação que tinham ao meu respeito: conversa!
Como a escola só tinha até a segunda série, fui estudar na escola Presidente Vargas, onde finalizei meu ensino fundamental. Sempre fui considerada uma aluna muito aplicada e minhas atividades sempre destacadas.
Foi no Presidente Vargas que descobri o amor pela Matemática, através do professor Francesco Calabró, que dava aulas através de receitas culinárias. Foi em uma de suas aulas que decidi que faria faculdade de Matemática e assim, teria que cursar Magistério.
Fui então estudar na escola Cristóvão de Mendoza, única escola pública que oferecia Magistério. No Cristóvão, percebi que minha veia política era tão latente como a de meus pais.
Passei a participar do grêmio estudantil da escola, auxiliei na organização de passeatas contra o governo Alceu Colares e o calendário rotativo da Neuza Canabarro. Participei dos atos públicos pedindo o impeachment do presidente Collor e até apareci na televisão dando depoimentos pela Central dos Estudantes. Fiz parte da geração de caras-pintadas!
Foi um bom tempo... a vontade por mudanças também era grande! O desejo de mostrar a todos a minha inquietação frente ao que estava acontecendo era imensa! E, como se a história se repetisse, a música de Geraldo Vandré também passa a fazer parte da minha história.
Concluo o Magistério em 1994 e no mesmo ano, presto vestibular pela Universidade de Caxias do Sul e realizo o concurso para professora da rede estadual. Passo no curso de Licenciatura Plena em Matemática e em 1995, sou chamada a lecionar pelo estado, na Escola Maguary. Como estava cursando Matemática, fui designada a dar aula de 5ª a 8ª séries.
Meu primeiro ano com alunos foi uma experiência única! Aprendi muito com eles...aprendi aquela didática que a gente só adquire em sala de aula, com o contato direto entre aluno e professor. Cada turma possuía diferentes realidades e como professora, sabia que o meu papel era fundamental nesse processo de aprendizagem. Muitas noites foram dedicadas a aperfeiçoamento, a leitura, a procura de novas formas de explicar alguns conteúdos que para mim eram muito simples, mas que eu sabia que seriam fundamentais para os meus alunos. Sempre tive convicção que meu conhecimento não era único e que cada dia em sala, propiciava uma nova busca.

“Minha franquia ante os outros e o mundo mesmo é a maneira radical como me experimento enquanto ser cultural, histórico, inacabado e consciente do inacabamento. [...]Onde há vida há inacabamento.” (Freire,pág.59)

Nesse período me decepcionei com a universidade... esperava obter maior embasamento para trabalhar com alunos de ensino fundamental e médio. No entanto, meu curso era basicamente uma engenharia.
Passei então a fazer ainda mais cursos, a participar de todas as palestras que não batiam com os meus horários na faculdade. Meus fins de semana eram dedicados ao estudo...a biblioteca da UCS sabe quantos domingos foram necessários para entender melhor aquelas aulas de cálculo e análise! O bom, é que tenho certeza que todos esses dias (incluindo madrugadas) valeram à pena! Contribuíram para meu aprendizado e como diz minha mãe, o estudo é o bem mais precioso que uma família deixa a seu filho, pois ninguém pode tirá-lo.
Claro que nem de rosas foram meus dias no Magistério... Organizamos, em 1999, um passeio para um sítio próximo da cidade e infelizmente, um dos nossos alunos morreu afogado. A sensação de perda foi complicada e a cobrança extrema. Esse foi o ano mais difícil para todos os professores da escola Maguary. Muitos dias foram dedicados a oração em grupo para juntos, conseguirmos superar essa tragédia.
Os anos se passaram... em 2001 conclui meu curso de graduação e meu diploma foi todo dedicado a minha família, pois só nós sabíamos como foi difícil chegar até ali. Foi uma sensação próxima a de dever cumprido!
Os anos seguintes foram repletos de turmas. Com o final da faculdade, passei a me dedicar mais para a elaboração de aulas. Lembro que minha maior alegria era encontrar alguma forma de puxar alguns alunos para minha aula, de fazer com que eles despertassem o gosto pela matemática, assim como meu professor fez comigo. O melhor de tudo é que nunca precisei levar um aluno para a direção da escola, pois toda e qualquer situação era resolvida na própria sala. Havia sempre uma relação de respeito mútuo entre nós. Confesso que eu sempre fui muito feliz em sala de aula!
Em 2003, a pedido dos colegas da escola, me candidatei à direção da escola. Mais uma vez eu queria mudanças...
O primeiro ano foi difícil, pois a burocracia tomava conta de todo o tempo que eu estava na escola. Percebi que muitas mudanças não dependiam só de mim ou da minha vontade, mas que o grupo todo de professores tinha que estar em plena sintonia. Percebi aqui que muitos dos meus colegas haviam se acomodado a tempo, que não encontravam mais prazer em dar aula.
Também aprendi que a culpa é sempre da direção!
Mas também tem um lado positivo, pois a direção me permitiu ter uma visão diferente da escola, da sua estrutura e do seu funcionamento, assim como de todos os segmentos que dela fazem parte.
Em 2006, ainda a pedido dos colegas, me candidatei ao segundo mandato e novamente fui eleita. Esse período, final de 2006, foi bem complicado, pois tive que conviver com o problema pós- eleição, pois a chapa que perdeu se tornou oposição radical. Sofri boicotes, como em um dia faltarem 4 professores de currículo, denúncias anônimas, enfim, tudo que pudesse desgastar emocionalmente uma pessoa. Sofri muito... Cheguei até em pensar em desistir, mas mais uma vez, minha família foi minha fortaleza. Passei a procurar palestrantes para conversarem sobre ética, sobre respeito entre colegas, organizei dinâmicas para melhorar o relacionamento entre todos os membros da escola e propus inúmeras mesas redondas, onde todos pudessem conversar e expor o que estavam sentindo. Vale aqui relembrar uma citação:

“A questão está em como transformar as dificuldades em possibilidades. Por isso, na luta para mudar, não podemos ser nem só pacientes, nem só impacientes, mas pacientemente impacientes. A paciência ilimitada, que jamais se inquieta, termina por imobilizar a prática transformadora. O mesmo ocorre com a impaciência voluntarista, que exige o resultado imediato da ação enquanto planeja.”(Freire,pag.07)

Para me auxiliar, surgiu à oportunidade de fazer o curso de pós- graduação e, através dele, obtive contato com outros diretores. Percebi que a situação não era muito diferente nas outras escolas e em cada um dos nossos encontros, encontrava professores dispostos a nos ajudar, a nos dar idéias e dicas de como eu podia reverter à situação.
Meu trabalho demorou um ano para mostrar resultado, pois no final de 2007 a situação se acalmou e comecei a organizar atividades que até então nunca haviam sido feitas. Realizamos escola de pais, construímos os indicadores de qualidade com toda a comunidade escolar, realizamos a avaliação da escola, enfim, tornamos a escola um verdadeiro espaço democrático.
Passei a organizar reuniões de formação com todos os professores e, em equipe, estudamos o projeto pedagógico da escola e o regimento escolar e, assim, compreendi que um projeto político pedagógico só é de qualidade quando oportuniza a participação de todos. Também entendi que o PPP retrata as aspirações, ideais e anseios da comunidade escolar, os sonhos de todos em relação à escola, mas que, principalmente, permite que a comunidade escolar faça as suas escolhas em relação ao que deseja para a melhor educação de todos. É um processo de mudança e de antecipação do futuro, que estabelece princípios, diretrizes e propostas de ação para melhor organizar as atividades desenvolvidas pela escola como um todo.
Devo essa “força” ao curso de pós-graduação, que além de provocador e instigante, me trouxe um conhecimento muito mais aprofundado da parte burocrática, da legislação e da importância da gestão democrática junto com os órgãos colegiados.
Entendo que essa educação inovadora, longe da educação ingênua, reflete exatamente na sociedade que queremos no futuro, uma sociedade composta por cidadãos conscientes de seus direitos e deveres.
Finalizo meu memorial com a seguinte citação:

“O ser humano é, naturalmente, um ser de intervenção no mundo à razão de que faz a História. Nela, por isso mesmo, deve deixar suas marcas de sujeito e não pegadas de objeto.”
Paulo Freire (1997, p.119)

Referências Bibliográficas

COUTO, Eliane. História Passado e Presente. 2. ed. , São Paulo: Editora Atual, 1994

TELLES, Vera. Descobrindo a História.1.ed., São Paulo: Editora Ática, 2002

ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO RS. Cadernos de Comissão de Educação, Cultura, Desporto, Ciência e Tecnologia. Ano 1., Vol.1.Dezembro de 2007.

3 comentários:

Débora disse...

Tenho apenas duas coisas a lhe dizer: Parabéns pela história de vida e pela excelente professora de Matemática que foste para mim quando comecei a cursar a quinta série, em 2001 e nos anos seguintes.Lembrei quando você mencionou o dia que foi eleita diretora da escola,lembro que todos nós ficamos muito contentes, pois isso significava um crescimento para ti, mas também ficamos muito tristes,pois perdemos a nossa professora querida. Um super beijo,saúde e sucesso,da ex-aluna,Débora.

Débora disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anônimo disse...

Guerreira...parabéns!Sua história é linda!