“As decisões humanas dependem das lembranças do passado
e das expectativas para o futuro” (Ilya Prigogine)
e das expectativas para o futuro” (Ilya Prigogine)
Escrever um Memorial, revisitar momentos de minha trajetória que se destacam pelo significado que adquiriram, sob o olhar do presente. São muitas lembranças e se apresentam como marcas que reverberam e continuam a se manifestar, pois conformam o “material” da minha existência. Algumas serão selecionadas, as mais fortemente ligadas ao motivo que as suscitaram, qual seja, o desejo de ingressar no doutorado em Educação nesta Universidade, na Linha de Pesquisa Políticas Públicas em Educação e Exclusão Social e a decisão de participar do processo de seleção.
Trajetória não é entendida como sucessão cronológica, mas um fazer-se marcado por tempos e espaços nem sempre sucessivos e tangentes, mas que se permeiam, se fundem. Nesses tempos e espaços fui afetada por múltiplos elementos: pessoas, acontecimentos, leituras, trabalhos, vivências e convivências, que foram conferindo sentido a uma trajetória acadêmica e profissional, a qual não desvinculo da trajetória pessoal.
Escrever um memorial é escrever um passado, uma história, que diz do presente, pois é este que direciona o olhar, que define escolhas, que confere maior ou menor visibilidade a fatos e momentos, pois é um olhar atualizado. É como a história, solidária do tempo, do tempo ameaçado pela domesticação do calendário que cronometra e periodiza a vida, mas também “o velho tempo da memória, que atravessa a história e a alimenta.”(Le Goff, 1996, p.13).
Ao refazer meu passado, ao reapresentar fatos, não os organizo numa lógica linear, mas destaco espaços, nem sempre em tempos contíguos. Refaço ambientes que, como as cidades de Italo Calvino, são recriadas pela memória, não só por “orgulho pela imensa amplitude dos territórios que conquistamos”, mas porque “este império, que nos parecia a soma de todas as maravilhas, é um esfacelo sem fim e sem forma”. (1990, p.09)
De cada ambiente, que hoje percebo-os como produtores de uma forma de pensar e agir em Educação e História, recolho elementos das vivências que produziram as marcas identitárias de professora, estudante, mulher, militante, cidadã ..., vivências que produziram as marcas inscritas em minha vida. Ou, como diz Prigogine (1991, p. 31): “Em resumo, é esta a vida, é o tempo que se inscreve na matéria”.
“Mudaram as estações, nada mudou...”
Primeiro, falo de uma escola em que fui aluna e posteriormente professora: escola desenhada sem a rigorosa seleção por idades, seriação e disciplina. A escola que representava outro tempo-espaço, a escola-casa, a professora - minha mãe - a sala de madeira, contígua à casa de morar. A escola primária rural, multiseriada, na qual me iniciei como estudante e mais tarde, após a conclusão do Magistério, como professora. Um ambiente escolar que não pode ser comparado à homogeneidade da escola urbana que predomina na atualidade, produzida/produtora pela/da modernidade, que fragmenta e compartimentaliza o tempo, o espaço, os conhecimentos e as pessoas.
Daquela época, além de lembrar o quanto era doce, instigante e subversivo copiar do quadro as lições da 4ª e 5ª séries – os mais adiantados -, da lembrança da vida coletiva e comunitária que perpassava a escola, como festas, passeios, experiências, a horta, os mutirões de limpeza e arrumação da escola, as muitas brincadeiras, guardo também o sonho, o desejo de freqüentar o colégio da cidade, com uma sala para cada série, muitas professoras, muitos cadernos... Mas são as marcas do ambiente escola-casa que me inspiram hoje para questionar a segregação produzida na escola “da cidade”, contraposta ao suposto “atraso” da escolinha rural.
Sempre gostei de ler e não vejo nisso influência direta das aprendizagens escolares, mas de outras vivências, decorrentes da escola-casa, como de acompanhar minha mãe em reuniões, nos seus estudos para os exames de madureza. Aliás, nas apostilas do curso de madureza li histórias que me fascinaram. Dos livros didáticos, literatura que mais circulava em minha infância, lia todos os textos, explicações e exercícios, talvez responsáveis por me introduzir no magistério, cursado em nível de 2º grau.
Assim que me formei professora fui trabalhar na antiga escola multiseriada e dar aula passou a ser o meu tempo. Instituí, por conta própria, o turno integral, atendendo a comunidade que tinha, assim, onde deixar suas crianças e ainda poderiam “aprender mais”, mas atendia também a minha mente fantasiosa de professora: um turno para atividades de estudo, para “desenvolver os conteúdos” e o outro turno para atividades alternativas, como passeios, experiências, cultivo da horta, preparo coletivo da merenda e “reforço” para alguns alunos. Nas férias fazia curso intensivo na Universidade de Passo Fundo – Licenciatura em Educação Artística.
Como professora de artes tive pouca atuação. Fui convidada para dar aulas no colégio em que havia cursado de 6ª à 8ª séries do Primeiro Grau, deixando, com o pesar dos alunos e da comunidade, a antiga escola multiseriada e, de minha parte com festa e orgulho, por me tornar professora no “Ginásio”, como ainda era conhecida a única Escola de 1º e 2º graus de Putinga, sede do município onde morava. Naquela instituição trabalhei como professora de Educação Artística de 5ª à 8ª série, História em três turmas de 5ª série e História da Arte no segundo grau. Foram atividades muito desafiadoras, pois aprendia a ser professora e, paralelamente, aprendia o que deveria ensinar. Com certeza, são esses desafios que convidam para desalojar, desterritorializar pensamentos, crenças e concepções, fazendo com que novos problemas se instalem e requisitem outras respostas, forjando outro patamar de atuação.
Realizei Concurso Público para professora de Educação Artística na Rede Estadual e passei a residir em Porto Alegre: desde muito cedo aprendi a desbravar caminhos, a resolver problemas, a sobreviver. Morar sozinha em uma cidade (que de início me parecia tão grande) foi um lindo aprendizado, assim como viver com o Sergio, com quem compartilho o cotidiano.
Ingressei na Faculdade PortoAlegrense para cursar História, à noite, e na Escola Estadual em que fui nomeada, assumi as aulas de História de 5ª à 8ª série. Ali iniciei um trabalho mais reflexivo, entrei em contato com livros de Paulo Freire, fiz a primeira greve, muitos cursos, grupos de estudo, discussões sobre educação e sobre ensino de História. A compartimentalização dos conhecimentos e o desgosto dos alunos com a escola me angustiavam e impulsionaram um trabalho interdisciplinar, envolvendo História, Artes e Língua Portuguesa.
“Mas eu sei que alguma coisa aconteceu, tá tudo assim tão diferente.”
Se, por um lado, estudar e trabalhar reduz as possibilidades da dedicação exclusiva ao estudo, observando-se por outro viés, o trabalho como professora de História, concomitante ao curso, impôs questionamentos à licenciatura e colocou-se como contraponto para os estudos teóricos. A escola, embora um espaço não reconhecido na especificidade da investigação científica, também se oferece para a pesquisa e creio que, na docência, ocupei também o lugar de investigadora, enfrentando desafios e buscando respostas para compreender as relações de poder, a submissão e as formas de resistência ao aparato burocrático, o disciplinamento e a homogeneização para manter a ordem social estabelecida, já que a instituição escolar se apresenta como um dos vários agenciamentos coletivos de produção da subjetividade capitalística. (Guattari e Rolnik, 1993).
A licenciatura em História, concluída em 1985, foi marcada pelo marxismo, embora, após a conclusão do curso, ao aprofundar leituras na perspectiva teórica citada, percebi o quanto fora “panfletário” o viés presente no curso, aliás, característica das graduações naquele período em que os discursos genéricos seduziam pela denúncia das injustiças sociais. Não creio que as denúncias sejam desnecessárias, mas é preciso aprofundar o entendimento da complexidade social e buscar alternativas que não sejam reduzidas, que nos enredam e nos imobilizam, pois não apontam saídas. A realização do curso de História me marcou desde uma trajetória anterior que a ele me levou, ou seja, as vivências, as leituras, a docência concomitante, entrelaçadas à militância sindical e político-partidária. Acredito que a História me acompanha em todos os espaços que transito, pois é nela que busco ferramentas para desvelar aquilo que é mostrado como natural ou eterno, é nela que me inspiro para atuar na perspectiva das transformações, de acreditar que o futuro não está dado.
Também foi importante minha formação política-partidária, atuando na esfera sindical e nos movimentos comunitários na década de 80, período em que nasceu Marina, minha filha, hoje com 14 anos. Foi um tempo marcado por muitos sonhos que ainda me acompanham, apesar dos apelos que apontam para o fim das utopias.
Nesse contexto de envolvimento político, troquei a escola estadual do bairro de classe média, por uma escola da periferia da cidade, me integrando a um grupo de professores que desenvolviam um Projeto de Educação Popular na Vila Santa Rosa, em Porto Alegre. Naquele ambiente, me deparei com problemáticas que até então conhecia superficialmente ou através de leituras. Vi onde se concentram os excluídos da sociedade: desempregados, crianças sem escola, reprovações em massa, moradias precárias, inexistência de saneamento básico[1]. Participei ativamente de mobilizações, entre elas a luta para a ampliação da escola, que em 1988 passou a contar com 12 turmas de primeira série, ou seja, aproximadamente 300 crianças em processo de alfabetização. Deixei de ser professora de História e fui alfabetizar.
Na escola, realizávamos estudos sistemáticos, grupos de estudo para ler Emília Ferreiro (ainda antes de ser traduzida para o Português), seminários internos, reuniões com a comunidade explicando a psicogênese da língua escrita para que acompanhassem suas crianças e valorizassem o processo de alfabetização Em 1989, iniciei um curso de especialização sobre Alfabetização em Classes Populares, no GEEMPA (Grupo de Estudos sobre Educação Metodologia da Pesquisa e Ação). Foi uma época em que Porto Alegre vivia um momento ímpar em relação à educação: a Secretaria Municipal de Educação implementando um programa pioneiro de formação de professores, com grandes palestras e seminários, o Laboratório de Alfabetização da Secretaria Estadual de Educação, são exemplos concretos dessa efervescência.
Marcada por um ambiente peculiar do GEEMPA, que realizava pesquisas sobre alfabetização em classes populares, fui seduzida por tal temática e passei a me dedicar ao estudo dessas questões a partir da prática escolar com as crianças da Escola Estadual Santa Rosa, nos grupos de pesquisa do GEEMPA e na Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre, onde trabalhei como ativadora curricular no período de agosto de 90 a dezembro de 92, assessorando professoras de segunda série do primeiro grau.
Através do GEEMPA e pela amplitude que passou a ter o trabalho da Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre, vivi momentos de muito estudo e pesquisa, visando atender demandas de escolas e assessorar as professoras que desejavam dar conta da sala de aula, contemplando novos paradigmas que invadiam as escolas. Trabalhei como docente em cursos dirigidos a professoras de séries iniciais, como em Recife (PE) e Salvador (BA), em projetos conveniados com a UNICEF. Assessorei diversas Secretarias Municipais de Educação no Rio Grande do Sul e em Betim, Minas Gerais. Esse contato com realidades sociais diversas requisitou outras explicações, que me fizeram extrapolar a compreensão prático-teórica produzidas numa realidade social específica, ou seja, em Porto Alegre. E, em um movimento intenso, marcado pelo discurso Construtivista, cujos aportes teóricos mais representativos encontrava em Piaget e Vygotsky, sendo requisitada interna e externamente para dar conta de um trabalho que se ampliava em relação às respostas que deveria dar, decidi realizar Mestrado em Educação. Ingressei no Programa de Pós-Graduação em Educação na PUC/RS, buscando ampliar, aprofundar e, até mesmo legitimar as análises que fazia em relação às possibilidades da escola e da alfabetização.
Destaco um aspecto que considero relevante em minha atuação enquanto professora, qual seja, o de conferir um significado social aos trabalhos, de um comprometimento ético-político decorrente da inconformidade, diante de tantas injustiças que produzem uma revoltante exclusão social. Atribuo essa característica à formação cristã da minha infância, ou por um traço solidário que desenvolvi em minha trajetória, pelos lugares que circulei, pelas coisas que fiz, pela indignação diante das disparidades sociais e pela crença na possibilidade de atuar como sujeito histórico.
Sobre esse compromisso ético-político que orienta minhas ações venho refletindo nesses últimos tempos, até como sujeito de uma história social e individualmente construída e que requisita, para compreendê-la, um tensionamento que impulsiona minha formação como professora. E nesse processo, práticas e leituras me fizeram/fazem ver que não existe um único caminho, nem tampouco uma única verdade, mas muitas possibilidades, marcadas por certezas provisórias e um constante vir-a-ser, que faz adentrar no inusitado e viver a sensação de que a plenitude não existe, mas, conforme Gilles Deleuze (1992), “existem territorialidades e movimentos de desterritorialidades”, que nos jogam nesse construir permanente.
“Se lembra quando a gente chegou um dia a acreditar que tudo era pra sempre...”
É redundante dizer que o Mestrado oportunizou o encontro com teorias mais amplas referentes à Educação, modificando as fronteiras do quadro teórico guetizado que havia constituído, na tentativa de salvaguardar uma proposta que imaginava redentora da Educação e da Alfabetização. O problema que procurei dar conta na pesquisa foi desenhado desde o universo da alfabetização, qual seja, apropriação da Língua Escrita e a produção da subjetividade como possibilidade de singularização: cartografia de uma sala de aula de segunda série, cujos dados foram coletados numa escola municipal de Cachoeirinha.
Faço especial referência ao meu encontro com Félix Guattari, pensador francês e teórico de plantão durante minha pesquisa, cujas idéias contribuíram intensivamente na constituição do espaço intelectual necessário para identificar as questões que procurei dar conta em minha investigação. O trabalho da dissertação buscou compreender a escola como um agenciamento produtor da subjetividade capitalística, mas também um espaço habitado por vários devires que oferecem possibilidade para singularização, pois contém o potencial de linhas de fuga que podem provocar desterritorializações, já que esta escola é histórica e socialmente produzida.
Ainda durante a realização do Mestrado, iniciei um trabalho de assessoramento à Escola Técnica José César de Mesquita, trabalho que em 1995 transformou-se em coordenação pedagógica junto ao primeiro grau. A escola é mantida pelo Sindicato dos Trabalhadores Metalúrgicos de Porto Alegre e tem como objetivo principal, colocado pelos próprios dirigentes sindicais, a constituição de uma identidade de trabalhadores para a educação que se desenvolve na escola, já que foi construída, no início da década de 60, com a finalidade de ser uma escola de/para trabalhadores.
Menciono esse ambiente o qual partilhei com profissionais que também se moviam pelo desejo de construir uma escola com uma proposta político-pedagógica que pudesse ser referência para os trabalhadores. Esse trabalho, que realizei até agosto de 1998, requisitou um constante questionamento forçando a busca de alternativas dinamizadoras, já que o cotidiano escolar insiste em se repetir. Nessa escola, sobressai o esforço para construir coerência entre as idéias postuladas de solidariedade e cidadania crítica e as relações concretas impostas por uma instituição que, pela sua função histórica, se quer repetidora, homogeneizadora e conformadora social.
Essa temática do papel e identidade da Escola Técnica Mesquita venho discutindo na pesquisa que realizo atualmente sobre a história da instituição[2]. Conjugado à pesquisa, está em andamento, juntamente com um grupo de profissionais da escola, a organização do acervo documental, como possibilidade de resgatar e preservar uma memória cara ao coletivo dos metalúrgicos, à história da educação e aos trabalhadores em geral. Esse projeto, instituído como extensão universitária da Faculdade de Educação, denomina-se “Documentos e Memória: Acervo Histórico da Escola Mesquita”.
Meu trânsito no Ensino Superior iniciou-se em 1996, como professora convidada na Universidade Regional de Blumenau/SC e na Fundação Educacional de Brusque/SC, ambas para cursos de Especialização em Alfabetização, trabalho que exigiu uma grande versatilidade para atender as diferenças individuais de uma sala com cinqüenta alunos, o tempo das aulas condensado em fins de semana, bem como para garantir uma aprofundamento teórico das turmas de professores que afluíam a esses cursos.
Em agosto de 1996, fui selecionada para um contrato temporário como professora substituta no Departamento de Ensino e Currículo da Faculdade de Educação da UFRGS, onde trabalhei durante dois semestres com as disciplinas de Prática de Ensino de História e Estudos Sociais: Conteúdo e Metodologia. Esse ambiente me fez retornar à História, retomá-la como objeto para pensar a Educação e repensar o seu ensino, buscando possibilidades para a História na escola, possibilidades que venham a constituir linhas de fuga que afastem progressivamente daquilo que molda, que enquadra numa ordem social que se coloca como única e natural. Diante desses desafios e buscando elaborações mais sistemáticas, passei a participar do Grupo de Trabalho sobre ensino de História da ANPUH (Associação Nacional de Professores de História).
“...sem saber que pra sempre sempre acaba.”
O retorno ao universo da História, a possibilidade de desenvolver um trabalho conjugando História e Educação, o desejo de pesquisar e consolidar um trabalho mais sistemático de ensino, me impulsionaram a buscar a Universidade como campo de trabalho. Realizei concurso para Professora de História da Educação no departamento de Estudos Básicos da Faculdade de Educação/UFRGS, no qual fui a primeira classificada e nomeada um mês após a realização do mesmo, ou seja, no dia 10 de agosto de 1998. A possibilidade de entrelaçar ensino, pesquisa e extensão está sendo vivenciado em sua plenitude, conferindo uma elevado grau de satisfação e qualidade ao trabalho que realizo.
No Departamento de Estudos Básicos passei a atuar como professora de História da Educação e, marcada por uma prática que problematiza o ensino da História que tradicionalmente é realizado, trouxe essa preocupação para o ensino de 3º grau. Acredito que a forma de aprender produz junto às alunas, futuras professoras, uma forma de ensinar. Acredito também que o professor não transmite conhecimentos, mas a sua relação com o conhecimento e com aquilo que ensina.
A partir da súmula da disciplina História da Educação no Brasil, organizei o programa de forma que pudesse conferir visibilidade aos setores sociais minoritários, às práticas educativas silenciadas na História. Privilegiei, nesse programa, a História da Educação (escolar e não-escolar) das mulheres, das populações negras e indígenas do Brasil, excluídos, não só da História, mas também da escola. Ali se alinhavaram as primeiras questões que provocaram meu desejo em pesquisar a História da Educação dos povos indígenas, considerados “sem educação” pelas elites que contam a história desse país numa visão eurocêntrica.
Em um trabalho interdisciplinar que agrega História, Filosofia e Sociologia da Educação, já em sua terceira experiência junto às turmas de Pedagogia, organizamos coletivos de pesquisa, para que, em grupo, as alunas investiguem temas que acompanham as aulas, mas extrapola a universidade porque busca outros espaços educativos e realiza o princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. A questão da educação escolar junto a grupos que não aparecem nos compêndios de História, como as escolas itinerantes de acampamentos, dos assentamentos do MST e escolas das Áreas Indígenas, passaram também, entre outras temáticas, a figurar em nossos estudos.
Com a preocupação em constituir um lastro de conhecimentos sobre a temática da educação indígena realizei alguns movimentos: convidei antropólogos que assessoram o setor de Educação Indígena da Secretaria Estadual de Educação do RS para falar sobre o tema aos alunos e às alunas de Pedagogia; visitei uma escola da Área Indígena de Inhacorá/RS; organizei um acervo de textos sobre o assunto. Creio que, se essa temática fizer parte da formação, as futuras professoras poderão tratar de forma diferente a questão indígena na sala de aula, questão historicamente negligenciada e que colaborou com o etnocídio praticado ao longo dos 500 anos de presença européia no Brasil.
Nesses movimentos descobri o quão instigante é a história da educação dos povos indígenas no Brasil: em primeiro lugar pela compreensão de totalidade presente na forma tradicional de educar - formar as novas gerações - que predomina entre a maioria das comunidades indígenas até o presente e que podem inspirar a reflexão sobre a nossa forma fragmentada de ensinar. A concepção de educação reduzida ao espaço escolar, próprio da modernidade européia, desconsiderou e continua a desconsiderar a educação da cultura indígena, impondo a necessidade da escola como único espaço educativo reconhecido, crença que contribuiu para o avanço da escolarização entre os povos indígenas.
Porém, num processo singular de apropriação da escola e das práticas que nela vigoram, as comunidades indígenas vêm se organizando e interferindo nos caminhos de uma escola possível, que atenda aos seus anseios. A contribuição de pesquisadores que se coloquem ao lodo desses povos, que reconheçam as especificidades de sua cultura, que acreditem na autogestão e nas decisões de cada comunidade, são necessárias nesse momento, contribuindo para a legitimação dos conhecimentos de cada etnia.
Acredito que é compromisso da Universidade Pública realizar pesquisas junto aos povos indígenas, buscando compreender uma cosmovisão que se reestrutura em cada movimento de contato, ao se apropriarem e recriarem práticas que não constavam em sua cultura tradicional - como a educação escolarizada, a escrita e a convivência com uma língua que não era a sua. Busco conhecer um povo que luta pela terra que lhes foi usurpada, pela manutenção da sua língua - memória lingüística - e por uma identidade étnica que permita sobreviver com dignidade. Busco, com a ética-política que me move, um espaço de pesquisa para compreender a conquista da escrita entre os povos indígenas, a relação entre cultura de tradição oral e cultura escrita, bem como o papel das escolas, que já somam 50 nas Terras Indígenas Kaigang e Guarani do Rio Grande do Sul.
Encerro com palavras de Ilya Prigogine (2000), que expressam um sentimento em relação à História, em relação ao próprio movimento da sociedade e as possibilidades que são colocadas para quem acredita que o futuro não está dado.
No geral, bifurcações são a um só tempo um sinal de instabilidade e um sinal de vitalidade em uma dada sociedade. Elas expressam também o desejo por uma sociedade mais justa. (...) Mas qual será o resultado dessa bifurcação? Em qual de seus ramos nos encontraremos? A palavra ‘globalização’ cobre uma grande variedade de situações diferentes. É possível que os imperadores romanos já estivessem sonhando com a globalização, uma cultura única dominando o mundo. A preservação do pluralismo cultural e o respeito pelo outro exigirá toda a atenção das gerações futuras.
Maria Aparecida Bergamaschi
30 de maio de 2000.
Referências Bibliográficas
CALVINO, Italo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
DELEUZE, Giles. Conversações. Rio de janeiro: Editora 34, 1992.
GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: Cartografias do Desejo. 3ª ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1993.
LE GOFF, Jacques. Tempo e Memória. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1996
PRIGOGINE, Ilya. O Nascimento do Tempo. Rio de Janeiro: Edições 70, 1991.
___________Carta para as futuras gerações. Folha de São Paulo, Mais, 30/01/ 2000.
RUSSO, Renato. Por enquanto. Cássia Eller ao Vivo. São Paulo: Globo/Polydor -Somlivre,1986, compact dis/digital audio.
[1] Hoje a vila Santa Rosa encontra-se totalmente atendida por água tratada, energia elétrica, esgoto e ruas pavimentadas, povoada por crianças que “inventam” os eternos carrinhos de lomba.
[2] Trata-se da pesquisa “A criação do ginásio Vocacional José César de Mesquita: um estudo das décadas de 1960/70”, pesquisa esta que faz parte do meu plano de trabalho do Estágio Probatório.
Um comentário:
Em primeiro lugar agradeço ao colega RAfael a oportunidade de conhecer o Memorial da Cida. Em segundo lugar, quero dizer que fiquei encantada com a leitura! Tanta poesia no teu texto, amiga. Impossível não me emocionar. Peço licença (mesmo sabendo que não vou esperar a resposta) e vou levar o teu texto - um excerto - para meus alunos da EJA lá no CAp em um trabalho que faço onde eles também produzem memórias e autobiografias. Os bons exemplos precisam circular!Um abraço, Juçara
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