Memorial de João Santos Dreyer Netto

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades

“ Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o Mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.”
Camões


Naquele distante 27 de março de 1952, em Cachoeira do Sul, chega, após 12h de trabalho de parto, para a alegria dos pais e dos avós, o primeiro neto depois de cinco netas. Daí o nome: uma homenagem aos avós, pois ambos se chamavam João. Só não consigo aceitar a justificativa do Netto com dois “Ts” que, segundo a versão dos ancestrais, se justifica pelo fato de os dois avós terem sobrenome Sobrinho. Fui, naquele período, cercado das maiores atenções, principalmente, acho eu, por ser o primeiro varão numa família assumidamente machista, principalmente as mulheres.
Do que me lembro do período, foi de uma primeira infância vivida na chácara, localizada na zona urbana da cidade, entre vacas, aves, cachorros, porcos e um exuberante pomar onde andava de balanço. A água para consumo era tirada do poço através de um balde de latão atado a uma corda de cizal . O banho era em banheira redonda, também feita de latão, com água aquecida em fogão à lenha.
Por aquele tempo, fomos de muda para o interior do município, pois meu pai fora convidado para gerenciar uma granja de arroz. De lá, ficou a lembrança dos banhos de açude, da mãe lavando roupa agachada à beira d’água, usando, sobre uma tábua lisa, sabão em barra. Diariamente, ao meio-dia, eu ia para a porteira esperar o pai que chegava para almoçar montado num cavalo tordilho muito bem encilhado. Ele então me colocava na cabeça do serigote e me levava até os fundos da casa.
A primeira viagem a Porto Alegre, recordo que foi feita de trem.: o Minuano, que era o mais moderno carro de transporte ferroviário de passageiros da época. Registrei o fato de o vaso sanitário não ter fundo. Os excrementos caiam diretamente nos trilhos.
Nos fundos da chácara, morava uma família que tinha duas filhas e um menino. O Mauro foi, durante um bom tempo, meu companheiro de folguedos: caçada de passarinhos e corridas de cavalos sobre um pedaço de taquara.
Daquela época longínqua, ficou também, e de modo muito marcante, as marmeladas e as goiabadas que a mãe fazia num tacho de cobre, colocado sobre um fogo de lenha. Depois de tirado da vasilha, ela deixava eu raspar com uma colher-de-pau a rapa do tacho com a qual eu me deliciava. Tempos felizes que recordo com satisfação.
Apparício Silva Rillo retrata muito bem em seu livro Rapa de Tacho 3 o meu prazer infantil:

Rapa de Tacho




I III
Da cana fica o meldado Dos sonhos menineiros
- diz um ditado que acho. Pouco ficou - quase nada
E da tachada de doces De tudo restou-me o gosto
Só fica a rapa do tacho Da rapa da marmelada

II IV
Lembro o piá que perdeu-se E uma colher cantadeira
Dentro de mim, na distância Dentro da alma, plantada.
Timbram colheres no cobre
Como cincerros na infância

A transferência definitiva para a capital do estado deu-se em 1957, pois as possibilidades de trabalho tinham se esgotado em função da quebra da lavoura provocada pela intempérie e da inexistência de seguro-agrícola.
Em Porto Alegre, a primeira estada deu-se na casa dos tios. Período curto, pois logo nos mudamos para um apartamento que acabaria se tornando uma inesquecível dor-de-cabeça para nossa mãe (nessa época, minha irmã tinha três anos e eu seis), porque não conseguíamos ficar só no interior do prédio. Para brincar, nos dependurávamos nas janelas do primeiro andar do imóvel ou inventávamos correrias pelo interior da residência. As escadas que levavam ao térreo quase nunca eram usadas por nós, preferíamos o corrimão. Esse período durou, acho, um ano, quando então nos mudamos para a Tristeza, bairro em que passaria a residir até 1976, época em que iniciei minhas atividades docentes no interior do RS. Na Tristeza, a família montou um bar e eu ingressei no Jardim de Infância da Escola Estadual Osório Duque Estrada, onde permaneci até o final da segunda série. Mudamo-nos novamente, vendemos o bar, o pai tornou-se funcionário público federal e a mãe, funcionária pública estadual, cargo no qual veio aposentar-se. Da terceira série em diante freqüentei, por força da mudança residencial, o Grupo Escolar 3 de Outubro. No primeiro dia de aula da nova escola, fui trajado com camiseta, suspensório de pano de uma só tira que prendia, de forma enviesada, as bombachas sobre o ombro esquerdo e chinelos de couro – as havaianas surgiriam muitos anos mais tarde. Sucesso total. Os citadinos nunca tinham visto alguém vestido assim e várias professoras, inclusive. Para minha sorte, naquela época não existia o termo “E.T.” Em 1961 fui entronizado definitivamente na civilização urbana ao fazer a Primeira Comunhão e minha indumentária de “piazito carreteiro” já não despertava mais curiosidade. Naquele ano escolar, passei com relativa facilidade para o quarto ano. No final de 1962, para o quinto ano primário. Em 1963, conheci então a professora que me marcaria indelevelmente: logo no primeiro minuto da primeira aula, a primeira pessoa a quem ela se dirigiu fui eu. Apontando-me o dedo falou enfaticamente: -“Tu és um aluno muito saliente!” Confesso que só compreendi o que ela disse há poucos anos. Com ela, sempre fui um fracasso em Matemática e, na primeira vez em que ousei lhe perguntar algo que não conseguia entender, ela, pedagogicamente, me dizia: - “Seu asno, olha bem as contas que fizeste.” Pegava então uma das minhas bochechas e esfregava meu rosto no caderno. Nunca mais lhe perguntei qualquer coisa. De positivo ficou o fato de ter procurado num dicionário emprestado o significado da expressão “asno”.
Naquele ano, fiz, pela primeira vez, o Exame de Admissão ao Ginásio e fui reprovado. Iniciei, ainda naquele mesmo ano, o curso preparatório para sacristão. Concluído, tornei-me ajudante da missa dos domingos. Iniciei o ano de 1964, cursando o sexto ano primário. Era um ano extra, destinado aos alunos que não haviam conseguido aprovação no Exame de Admissão. Naquele período, presenciei o movimento dos tanques dos quartéis do bairro Serraria em direção ao Centro para cercarem o Palácio Piratini. Estava iniciada a Revolução de 64. Para nós foi ótimo, pois não tivemos aula durante uma semana. Nenhuma noção tinha da profunda crise política que assolaria o país nos próximos vinte e cinco anos. Em 1964, ainda, nasce o Érico, irmão caçula portador da Síndrome de Down. Ao final deste mesmo, consigo aprovação no exame de Admissão ao Ginásio. Me tornaria então aluno do Colégio Estadual Padre Reus, localizado no mesmo prédio onde se localizava o grupo escolar em que já era aluno. Em outubro de 1965, coincidentemente no mesmo dia em que assumiria, 29 anos depois, como professor da UFRGS, (19 de outubro), faleceu o pai. Esse fato forçou-nos a mudar para um apartamento de três peças cedidas por uma fábrica de móveis. Com o seguro recebido pela morte do pai, compramos um terreno onde foi construído um chalé de quatro peças, para o qual nos mudamos. Ali residimos de 1965 até o final de 1973, quando nos mudamos para o local onde a mãe mora atualmente.
Em 1966, obtive uma bolsa de estudos concedida pelo MEC e deixei a Escola Estadual e fui para o Colégio N. Sa. das Dores. Em 1969, formei-me no Ginásio e a solenidade de formatura foi no Teatro São Pedro, que seria fechado em seguida para reformas.
Desta fase em diante, este memorial abordará o período que principia após a conclusão do antigo curso ginasial em colégio de irmãos Lassalistas, cujas lembranças estão bastantes presentes e os acontecimentos, lá ocorridos, têm influenciado minha carreira profissional até hoje.
Após a conclusão do Curso Ginasial, vivíamos o período da férrea Ditadura Militar, enfrentava então as dúvidas pertinentes a todo jovem iniciante de ensino médio: Que carreira profissional deveria seguir? O Brasil, naquela época, buscava a formação de profissionais que atendessem às exigências da transformação social, econômica que o “ Milagre Brasileiro” dizia existir. Baseado nisso, num primeiro momento, decidi cursar o então chamado Científico na expectativa de adquirir conhecimentos que me capacitassem para desempenhar uma das profissões exigidas pela modernidade brasileira. Que decepção! A Matemática, a Física e a Química foram um verdadeiro suplício durante o transcorrer daquele período letivo. Além de não entendê-las, eu não conseguia vislumbrar um objetivo onde pudesse empregá-las profissionalmente. Conseqüentemente, a reprovação foi inevitável.
Por orientação de professor que observava nossa trajetória estudantil, decidi trocar de escola e cursar o Clássico, sem a necessidade de repetir o ano, pois as matérias do Científico não eram as mesmas do Clássico
No ano seguinte, estava eu em novo colégio, o Rosário, com novos colegas e outros professores. Minha identificação com os conteúdos ministrados foi imediata: a Filosofia com sua reflexões, a Psicologia que nos levava à auto-observação, as Literaturas Portuguesa e Brasileira que tanto colaboraram com nossa formação histórica, o Português aprofundado que nos inspirou a cursar, anos mais tarde, a Licenciatura em Letras e o Latim. O período necessário para a conclusão do Clássico transcorreu sem maiores sobressaltos, pois minha identificação com o curso era absoluta. Nessa fase, houve um aprofundamento na leitura dos autores clássicos.
Terminado o curso, ressurge a dúvida: Que profissão seguir? Entre as novidades da reforma educacional provocadas pela Lei 9.692/71 e a conclusão do Clássico, como ocorreu, no final de 1972, aparece a dicotomia entre cursar Direito, motivado, talvez, pelas aulas de Latim e pela estrutura legal deixada pelos romanos, ou fazer Medicina que, em tese, me permitiria ajudar os necessitados. Convém observar que o Vestibular, naquela época, já se apresentava nos moldes da atualidade. Para atender a essas expectativas fiz exame para Medicina na UFRGS e para Direito na PUC. A reprovação em ambos foi indiscutível.
No ano seguinte, em virtude de o Vestibular cobrar conhecimentos de Ciências Exatas, senti-me obrigado a fazer uma preparação adequada para enfrentar o próximo exame em melhores condições. Na expectativa de fazer uma faculdade relativamente curta e com rápida colocação profissional, escolhi Economia, obtendo sucesso na empreitada.
Passado o período de recepção aos “bixos” na PUC e a expectativa de ser acadêmico, nova decepção aparece: a desilusão com o curso. Como da outra vez, nada tinha a ver comigo. De novo a Matemática a atormentar-me, desta vez acompanhada pela Contabilidade.
Surge então, naquele mesmo ano, a possibilidade de ingressar, também através de Vestibular, em curso patrocinado pelo PREMEN e conveniado com esta Universidade Federal. Destinava-se à formação de professores através das chamadas Licenciaturas Curtas para trabalharem nas Escolas Polivalentes. Recebia-se uma bolsa durante o curso e tinha-se os mesmos direitos e deveres dos outros alunos da UFRGS. Além disso, após formado, o professor tinha garantida sua contratação pela SEC com um salário muito acima da média paga aos demais colegas que não se formavam pelo PREMEN.
Como ocorreu no início do Clássico, houve, de imediato, identificação do curso com meus objetivos. As cadeiras (modernamente competências no Ensino Profissionalizante) de Didática, Psicologia Social do Ensino (quando tive a oportunidade de conhecer e passar a admirar Piaget), Estrutura e Funcionamento do Ensino, juntamente com as demais que compunham a grade curricular do curso, colaboraram decisivamente para que eu me decidisse profissionalmente: ser professor.
Concluída essa etapa, e com emprego garantido, fui designado para a distante cidade do interior, Cruz Alta, onde defrontei-me com duas realidades até então impensadas. Uma: o grande número de colegas de outras regiões do RS com dedicação específica para atividades docentes. Éramos profissionais exclusivos da educação e o salário percebido permitia que vivêssemos apenas dele, contrariamente aos demais colegas. A outra: a certeza de que nasci para ser professor.
A escola a que fui designado, embora não fosse das mais modernas para a época, possuía equipamentos que a diferenciavam das demais pela quantidade e pela qualidade dos recursos oferecidos aos alunos e professores. Oferecia ainda aulas de iniciação técnica, permitindo que o educando entrasse em contato com disciplinas que enriqueceriam sua formação. Isso segundo a Lei 5.692/71
Todos esses fatos ocorriam num período de supressão das liberdades políticas, embora já se pudesse ouvir tênues rumores da insatisfação popular.
Nessa época, ainda, concluí a graduação, licenciando-me em Letras na faculdade de Cruz Alta. Desenvolvi, durante mais de seis anos, atividades em sala de aula, exclusivamente, com carga horária nunca inferior a trinta e cinco períodos semanais.
Em 1979, nasce a primeira das nossas filhas, a Paola, trazendo uma nova e maravilhosa responsabilidade: a de pai. Naquela época, ocorre a primeira greve do magistério público estadual e a escola em que trabalhava aderiu totalmente, sendo que muitos dos professores assumiram a liderança do movimento na cidade. Soube depois, que os professores das Escolas Polivalentes, como éramos chamados, exerceriam papel de destaque nas atividades paredistas dos períodos subseqüentes. Esse fato permitiu que eu amadurecesse minhas convicções políticas e passasse a crer que o processo democrático de fato não será real se não houver educação adequada a todos, indistintamente.
Entretanto, o comprometimento com o movimento paredista deixou-me conseqüências que influenciariam decisivamente minha vida e também da minha família. É de bom alvitre ressaltar que minha esposa, na época, era minha colega de escola e de PREMEN ( Aliás, vários colegas oriundos das mais distantes plagas sul-riograndense constituíram família entre si.). Fomos, durante mais de dezenove anos, além de colegas, cônjuges, pais, ativistas políticos, sindicais e religiosos.
Por questões políticas, foi-nos “oferecida” transferência para Porto Alegre, sob a desculpa de que, como já éramos daqui e tendo toda a nossa relação familiar estabelecida na capital, seríamos beneficiados. Já tínhamos, naquele ano, nossa segunda filha, a Roberta, que completaria, em 1982, seu primeiro ano de vida. Em agosto de 1982, recomeçamos, minha mulher e eu, nossas atividades docentes na Escola Polivalente Presidente Kennedy, de Cachoeirinha, onde permanecemos até o final daquele ano letivo.
Março de 1983. Reiniciamos nossas atividades educacionais em escola de vila periférica de Porto Alegre considerada problema, pela SEC, pelo nível de cobrança feito pelos professores. Defrontei-me ali com um núcleo de colegas profundamente ligados ao movimento comunitário e, por extensão, ao PT. Iniciei-me então numa nova trajetória profissional e comunitária quando passei a defrontar-me com a realidade da formação profissional onde trabalhava e residia. Observava que os profissionais ou colaboradores que ensinavam aos jovens uma iniciação no campo do trabalho não eram portadores de diplomas de cursos específicos para o magistério profissional. Na realidade, eram profissionais das mais diversas áreas que se dispunham a transmitir conhecimentos básicos a jovens que desejassem seguir a profissão de quem ensinava. Claro, isso ensejava também um acréscimo financeiro nos seus minguados salários.
Era comum naquela época e naquela localidade, a oferta de cursos do SENAI para jovens concluintes do antigo Primeiro Grau, conveniado com as associações de moradores. Nós, como não podia deixar de ser, orientávamos os alunos a freqüentar esses cursos e, muitas vezes, os preparávamos para a empreitada da seleção para ingresso.
Nesse envolvimento, transcorreram os anos de 1983 e 1984 e, como sempre fizera até então, a quantidade de aulas dadas nunca foi inferior a 25 horas semanais.
Em 1984, dois acontecimentos importantes: outra greve e o nascimento da nossa terceira filha, a Natália que se tornou uma censora amorosa, mas intransigente da minha postura ética. Conseguiu-se, através daquela empreitada paredista, a eleição indireta para Diretor, fato até então inédito. Em 1985, numa disputa política inesquecível pela novidade, fui eleito Vice-Diretor por uma das chapas concorrentes. Achávamos que, naquela longínqua data, os problemas da educação estavam, de uma vez por todas, resolvidos. O tempo se encarregou de nos mostrar que os problemas da Educação são muito maiores e complexos para serem resolvidos através de Direção eleita pela comunidade escolar.
Durante os anos de 1983 e 1984 participei de cursos de atualização de Literatura Brasileira e de Redação, ministrados por instituições particulares e por mestres de reconhecida competência, entre eles Édison de Oliveira.
Em 1986, fui convidado para trabalhar em cursinho pré-vestibular famoso em Porto Alegre. Aceitei prontamente por dois motivos perfeitamente compreensíveis e justificáveis: a questão salarial, que foi decisiva para a escolha e, além disso, a experiência profissional que adviria dali. Estava assim definitivamente entronizado na vida urbana, eliminando de uma vez por todas, o retorno à vida interiorana .
Tal decisão acarretou um acréscimo substancial de trabalho à minha carga horária. Passei a lecionar todas as noites, tendo em alguns semestres 48 aulas semanais. Essa sobrecarga de serviço impediu-me de freqüentar cursos de aprimoramento ou de atualização.
Durante o ano de 1987, surge outra mobilização paredista que se estenderia por 90 dias. Nesse movimento, notei que os políticos, de uma maneira geral, fazem pouco caso das promessas de campanha, embora me negasse a acreditar no que via. O final desse triste episódio foi a perda de minguados direitos obtidos pelo magistério estadual à custa de muita luta. É interessante destacar que aqueles que nos retiraram direitos vinham da oposição ao regime militar e criticavam as atitudes dos governantes. Bastou tornarem-se situação para fazer exatamente aquilo que tanto condenavam.
Em 1989, três acontecimentos marcaram significativamente minha carreira profissional. O primeiro deles foi a admissão ao curso de alfabetização de adultos no GEEMPA, coordenado pela insigne alfabetizadora Esther Grossi. Não pude, porém, desenvolver essa atividade de alfabetizador de adultos devido ao segundo acontecimento: ocorreu uma diáspora na escola em que trabalhávamos. A Delegacia de Educação, através de um “canetaço” transferiu mais da metade dos professores da escola da vila em que lecionava que tinham, de uma forma ou de outra, ligação com o PT. Assim, a partir de 1990, fui designado para trabalhar em escola que não pedi para ir, nem sabia onde ficava. Tal atitude obrigou-me a mudar de bairro, de casa, de vizinhança. O terceiro acontecimento: minha esposa e eu assumimos o compromisso de evangelizar crianças e jovens na sociedade kardecista a que nos filiáramos. Passei, assim, a dar aula também aos sábados à tarde. Entretanto esse fato tem uma relevância fundamental na minha carreira profissional, porque passei a utilizar o apreendido nas escolas e nos cursos nas aulas de evangelização e vice-versa. Através dessa atividade, a de Evangelizador Espírita, a qual exerço atualmente, vivencio experiências, entre muitas outras, como as de organizador do sistema de evangelização que hoje envolve todas as Sociedades Espíritas da zona norte de Porto Alegre, vinculadas à Federação Espírita do RGS (FERGS). Desenvolvi essa atividade na FEBEM, inclusive. Prefiro, contudo, apenas citar tal ocorrência. Evitarei, portanto, de aprofundá-la por ser muito extensa. Esse fato daria, certamente, um memorial específico.,
A partir de 1990, trabalhei em escola pública localizada em zona residencial habitada por uma comunidade pertencente à classe média média. Era uma escola convencional de Ensino Fundamental propedêutica ao Ensino Médio. Ali permaneci desempenhado as funções de professor nomeado para 40 horas semanais concomitante às aulas noturnas do curso pré-vestibular, até meados de 1993, quando foram abertas as inscrições do concurso para professor da Escola Técnica da UFRGS, que viria a ocorrer naquele mesmo ano.
Aprovado, passei, a partir de agosto de 1994, a trabalhar em regime de Dedicação Exclusiva (DE), abandonando definitivamente a função de professor do estado do RS que exercera por mais de 18 anos. Como professor de escola técnica de ensino médio, passei a notar, de forma mais acurada, que os profissionais das áreas técnicas específicas eram, geralmente, oriundos da iniciativa privada, sem licenciatura. Alguns poucos cursaram o antigo Esquema II, qualificando-se assim para desempenhar as funções docentes. Freqüentemente, os professores que mais procuravam as pós-graduações eram os de formação geral. Aos da área técnica, esse aperfeiçoamento pouco interesse despertava.
A partir da publicação da Lei 9.394/96, quando ocorreu, pelo menos em tese, uma reformulação geral e passou-se a trabalhar por competências, salientaram-se as dúvidas em relação a como agir perante as novidades. Nessa oportunidade, saltaram aos olhos os questionamentos sobre a formação do professor de escola técnica. Observando com alguma atenção notei que o Estado, tanto em nível federal, como estadual, em nada colaboravam para que o professor de ensino profissionalizante recebesse, pelo menos, atualização na sua forma de trabalhar. Nesse período a Escola passa por uma fase nova: a adequação as normas estatuídas pelo Dec. 2.208/97 e pela Port. 646/97. Assim a Escola Técnica da UFRGS deixa de ser uma escola de nível médio profissionalizante, para tornar-se uma unidade da UFRGS em nível pós-médio profissionalizante. Surge ainda o PROEP, mas em tal programa não existe referência alguma sobre a atualização ou capacitação dos professores desse modelo de educação.
Decidido a progredir e a atualizar-me sobre o ensino profissionalizante e a formação de professores, procurei, em diversas obras, informações que me esclarecessem. Com curiosidade li Luis Antônio Cunha, Sílvia Maria Manfredi e Acácia Kunzer emtre muitos outros, porém a realidade foi bastante dura. O material existente pouco oferece para a elucidação desta dúvida e, principalmente, porque não desenvolvi uma atividade sistematizada, nem orientada. Através de conversas informais com diretores de escolas técnicas estaduais comprovou-se a minha suspeita. A SUEPRO também não oferece condições para a formação e/ou atualização para esses agentes da educação técnica. Sobre a SETEC do MEC, observamos uma tentativa muito recente para resolver um outro problema, mas que poderá, por vias indiretas, trazer encaminhamento para tão intrincado caso: a formação de professores para trabalhar no ensino profissionalizante na modalidade educação de Jovens e Adultos.
Em 1999, um outro acontecimento importante protagonizou um choque profundo nas pessoas das nossas relações: o divórcio entre minha mulher e eu. O casal que muitos diziam ser perfeitos por se completavam mutuamente estavam separados. Era difícil de acreditar. Hoje, passado todo esse tempo e derramando um olhar menos envolvido com a situação, percebo que o tecido conjugal já estava roto demais para que a relação fosse mantida. Acabou-se um matrimônio de quase vinte anos, porém herdamos, minha mulher e eu, riquezas permanentes e realizadoras, que nos felicitam e nos completam: nossas filhas
Ainda, naquele mesmo ano, conheci a minha companheira atual, A Delu. Estamos, nestes quase nove anos, numa relação tão intensa e profunda que não nos exaure, nem se quer nos cansa, nem nos enfastia. Pelo contrário, nos completa ampla e profundamente, tanto no espírito como no corpo. A Delu mora na casa dela, e eu na minha, porém estamos sempre juntos...
Em 2006, após quatro tentativas de ingressar no Mestrado da UFRGS, surge a oportunidade de fazer especialização num curso conveniado entre MEC e FACED: A Especialização em Educação Profissional Técnica de Nível Médio Integrada ao Ensino Médio na Modalidade Educação de Jovens e Adultos – PROEJA, com o qual houve imediata identificação.
Para a conclusão do referido curso, elaborei um TCC sob a orientação da Prof. Dra. Maria Aparecida Bergamaschi, que foi também enviado para o VIII Congresso Iberoamericano da História da Educação Latinoamericana, ocorrido em Buenos Aires, com o título A Formação do Professor de Escola Profissionalizante. O texto foi aceito pelo comitê organizador. Isso me permitiu ser painelista, no dia 02/11/07, falando sobre o meu trabalho
Entretanto, o mais grave nisso tudo, é que muitos colegas parecem não ter se dado conta que o ensino profissionalizante exige, em face à nova realidade sócio-política predominante, uma nova postura em relação ao trabalho escolar desenvolvido. Afinal, queiramos ou não, estamos formandos pessoas que se defrontarão com o insensível mercado de trabalho. Em alguns casos bastante freqüentes, os profissionais das diversas áreas de formação agem como se estivessem atendendo a jovens infantes recém adentrados no Ensino Médio e necessitados de uma formação média geral. Inclusive setores de apoio como os SOEs, quando existem, agem assim.
Parece-me, e o tempo e os acontecimentos têm-me comprovado, que os alunos freqüentadores de escolas profissionais devam receber uma formação voltada para a conscientização, além dos conhecimentos técnicos indispensáveis, de que devem se apropriar para enfrentar uma rígida concorrência em busca de emprego. Essa rigidez não tolera vacilações nem outras atitudes que não sejam aquelas apropriadas a um profissional: responsabilidade, comprometimento, competência, e visão social acurada. Para tanto, é urgente que se capacitem professores para o exercício competente de tal função.
Em boa hora, o Governo Federal criou o PROEJA com a intenção de inserir socialmente a parcela da sociedade que não teve a oportunidade de formação nos moldes convencionais da nossa educação – isso é absolutamente elogiável – através do Ensino Profissionalizante e, atentamente, não descurou da formação dos profissionais que exercerão essa atividade educacional. A medida ainda é insipiente, mas já é um começo. Mesmo assim, essa decisão governamental instigou-me ainda mais a pesquisar, de maneira geral, o ensino profissionalizante e de maneira particular a formação dos profissionais dessa área educacional, agora acrescida pela realidade do PROEJA.
Por isso tudo, nesta fase de Brasil, que considero fantástica, pois, como brasileiro participo ativamente da transformação para a melhora dessa nação, embora a realidade seja dura e, muitas vezes, desestimulante, entendo, como educador, que a saída para o nosso país está na qualificação dos docentes e na inserção de toda a sociedade no processo de aquisição do conhecimento, a fim de nos tornarmos, de fato, cidadãos.
Novembro de 2007

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