Epígrafe
Os campos que nasceram verdes,
Às vezes, se vestem de bruma
E permanecem mudos.
Mas o céu não mudou
No seu constante azul,
Cristalizando o tempo na tela da saudade.
(Sueli Aprato Gonçalves, minha mãe)
Introdução
Elaborar um Memorial Descritivo foi um trabalho solicitado na disciplina de Invenções e Intervenções Pedagógicas, do Curso de Especialização que ora estou cursando. Trata-se de uma volta ao passado, para uns, passado próximo; para outros, como para mim, um passado mais remoto, visto que já percorri alguns anos a mais nesta fantástica trilha da vida. Minha vida transcorreu tranqüila, dentro da normalidade da vida de uma mulher batalhadora, sempre perseguindo seus ideais neste mundo de Deus e dos homens.
Passo aqui a relatar um pouco da minha jornada, desde criança, da intervenção da minha família, pais, esposo, filhos, todos ligados a mim direta e particularmente. Pena que não possa relatar muita coisa sobre a minha outra família: colegas de trabalho, meus filhos adotivos, milhares, aqueles adotados temporariamente a cada ano, meus alunos, e as pessoas com quem se convive através da escola. É impossível citar todos os nomes. Bem que eu gostaria, de lembrar de características de cada um.
Relato, então, um pouco da minha vida familiar e profissional, ilustrada com algumas fotos que ficaram registradas no papel ou por meio da tecnologia. Sinto não poder transcrever as imagens registradas na minha memória, como eu gostaria. Muita lembrança foi buscada no baú e outras vieram à tona com o auxílio de minha mãe, autora das poesias que enriquecem este trabalho e hoje com 79 anos e de meu pai, com 82. Eis então o meu relato.
Filha de mãe professora, desde menina eu afirmava que teria a profissão de minha mãe. Eu tinha orgulho de dizer que ela era professora e minha distração preferida era brincar com outras crianças das quais sempre eu era a professora.
Eu ainda não sabia escrever e pegava os diários de classe antigos de minha mãe e contornava as palavras escritas com lápis de cor, desenhando as letras, durante horas. Quando entrei para a escola, no Instituto de Educação Osvaldo Aranha, em Alegrete, eu gostava de ir à aula, pois sabia que minha mãe estava em uma daquelas salas dando aulas e isto me dava segurança.
Minha vida escolar transcorreu tranqüilamente até o final do ginásio. Então chegou a hora de optar em cursar o Magistério ou o Clássico ou o Científico. Nesta época, eu tinha mudado de idéia. Era final dos anos 60 e ser professora já não era uma profissão tão almejada, principalmente entre as minhas colegas. Eram tantas as mudanças políticas e educacionais na época, que as mães professoras, temendo pelo futuro da profissão, já não incentivavam mais seus filhos para seguirem a própria carreira. Então optei pelo Científico, porque um teste profissional apontava que eu tinha aptidão para ser psicóloga, profissão da moda na época.
Com 14 anos conheci o rapaz com quem me casei aos 20 anos e ainda hoje é o meu companheiro. Ao terminar o Científico, para eu estudar Psicologia, eu teria que morar em Porto Alegre. Mas eu estava noiva e não queria me separar do meu noivo. Meu pai tinha se tornado um importante comerciante na cidade, muitos o chamavam de “burguês”. Seus negócios estavam se expandindo, ele e meu tio, seu sócio, foram os pioneiros, na região, em dirigir “supermercados”, que eram os antigos armazéns ou “bolichos”, agora modernizados pelo sistema americano de “self-service”. Como o negócio era rentável, surgiu a necessidade de novas filiais, inclusive nas cidades vizinhas. Então minha família mudou de cidade: meu pai, minha mãe e meus três irmãos e eu resolvi parar de estudar e me casar.
Continuei morando em Alegrete e me tornei dona-de-casa. Antes de um ano, meu marido foi transferido para Santana do Livramento, onde permanecemos por seis anos e tivemos nossos dois filhos. Uma nova transferência nos trouxe de volta para Alegrete. No primeiro ano depois do retorno, trabalhei com meu pai, que também já tinha retornado com minha mãe e com meus três irmãos, no comércio. Mas, enquanto eu trabalhava, eu estudava, pois no fim deste ano eu faria vestibular na URCAMP, onde cursei o Curso de Letras-Português/Inglês. No primeiro ano da faculdade tivemos a nossa filha mais nova, que hoje tem 24 anos.
Eu estava ainda no final do sexto semestre da graduação, quando comecei a dar aulas de Língua Portuguesa, no Colégio Divino Coração, na 5ª e na 6ª série do Ensino Fundamental com 20 horas semanais. Não era bem com esta clientela que eu queria trabalhar, porque era preciso muito esforço para conseguir que meninos e meninas tão pequenos gostassem de estudar a língua materna através da gramática, tal como as ementas exigiam. Eu pensava em um ensino mais informal, através de leitura, produção textual dos alunos e mais prazer em aprender e ensinar. O tipo de avaliação, quantitativa, também era deprimente: alguns alunos, os que tinham mais facilidade em decorar regras, passavam a valer mais do que outros que custavam mais a aprender e repeti-las.
Então, em 1987, fui convidada para trabalhar como professora substituta na Escola Agrotécnica Federal de Alegrete, EAFA, pois a professora de Português/Inglês daquela instituição tinha entrado em licença-gestante. Aceitei o desafio: teria que viajar quase 60 km, ida e volta, diariamente, e trabalharia 40h, sendo que, na época, eu tinha três filhos pequenos para criar. Nos três meses como substituta, eu me saí muito bem. Quando terminou o tempo, fui convidada para continuar a lecionar Língua Inglesa, em forma de Cursinho, lá na EAFA. Continuei até o final daquele ano com 20h, dando as aulas de inglês e iniciei o Curso de Especialização em Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira. No início do próximo ano eu só estudei. Então, em setembro de 1988, fui novamente chamada para trabalhar na EAFA, agora com contrato. Retornei, então, com muita vontade de ser professora.
Apesar de a jornada ser exaustiva, saíamos de casa às 6h 50min e só retornávamos às 18h, devido à distância, 27km, e às más condições da estrada de acesso, era prazeroso trabalhar lá. Os professores eram pessoas camaradas e os alunos eram muito diferentes daqueles da minha escola anterior. Eram alunos mais amadurecidos, pessoas humildes, por isso, mais ponderadas e até mais educadas. Eu ministrava aulas pela manhã e pela tarde, às vezes oito horas/aula por dia, mas eu não me cansava, ao contrário, sentia-me muito bem em poder ajudar no crescimento intelectual e pessoal daqueles alunos que estavam ali, na época todos internos, para aprender tanto o ensino propedêutico como o profissional. Era preciso que, ao final dos três anos de curso, Curso Técnico Agrícola, eles soubessem se comportar como ‘cidadãos trabalhadores’, preparados para serem absorvidos pelo mundo do trabalho. E eu sabia que poderia contribuir muito para esta transformação. Naquela época, eu ministrava aulas de Língua Inglesa, Literatura Brasileira e Redação Técnica.
Os anos foram passando e entramos na década de 90, anos muito conturbados tanto para o Ensino Profissional como administrativamente. No início da década, o nosso Diretor Geral faleceu e uma nova direção teria que ser implantada. A escolha era através de lista tríplice, na qual apareciam os candidatos por ordem da preferência da comunidade escolar. Mas, na hora da decisão, no Ministério, por influência política da região, foi escolhido o terceiro nome, portanto o da preferência da minoria.
O desagrado da maioria foi evidente, muitas discussões e acusações surgiram e um grupo de oposição se formou. Tanta foi a pressão, que uma sindicância se instaurou na Escola e uma nova Direção, agora da vontade da maioria, foi eleita. Nós acreditávamos que então iríamos crescer como instituição e que as diferenças seriam diminuídas entre os dois grupos para que passássemos a nos preocupar com as mudanças que estavam acontecendo no Ensino Profissional e que atingiam o Ensino Técnico diretamente.
Mas não foi isto que aconteceu. A nova Direção, lentamente, demonstrou ser autoritária e intransigente e novamente a maioria estava descontente. O descontentamento aumentou quando, passados quatro anos de ‘ditadura escolar’ a mesma Direção foi reconduzida com a intenção de permanecer outros quatro anos no ‘poder’. A revolta se generalizou, o Ministério designou um “interventor” e houve até a ameaça de passarmos a ser UNED de outra EAF se os problemas não se resolvessem.
O que nós, professores, queríamos não era criar problemas; queríamos era poder trabalhar sem ameaças, sem sermos vigiados o tempo todo, queríamos participar das tomadas de decisões a respeito do futuro da Escola. Queríamos era poder reformular o nosso Plano Político Pedagógico democraticamente, podendo opinar e discutir pontos cruciais para a nossa ‘saúde pedagógica’, tais como: quais cursos profissionalizantes oferecer, garantir a manutenção do Ensino Médio nas Escolas Técnicas, transformar a antiga avaliação quantitativa em uma avaliação contínua e qualitativa, poder fazer cursos de atualização, promover atividades recreativas para nossos alunos, desenvolver projetos, enfim, ‘alimentar’ os nossos alunos culturalmente sem ‘dissabores’ profissionais internos.
Finalmente, depois de quase dez anos, hoje temos a Direção que almejávamos: democrática, séria, comprometida com o aprendizado e que nos ‘permite’, antes de qualquer outra coisa, sermos ‘educadores’. Hoje somos uma Escola em crescimento. Reformulamos o nosso Plano Político Pedagógico com a participação de todos os seguimentos da comunidade escolar; adotamos, depois de estudos especializados, a tão esperada avaliação qualitativa, que hoje nos permite avaliar o nosso aluno como pessoa, sem termos que dar ‘preço’ para cada um após exaustivas provas finais; elaboramos projetos que são desenvolvidos juntamente com nossos alunos, tais como: Gincana Cultural, Tradicionalista e Agropecuária, Amostra de Poesia e Teatro, Invernada de Danças, Seminários, Escolha de Peão e Prenda, Conjunto Musical e muitos outros também na área profissional como viagens de estudos, encontros, dias de campo dentre outros.
Em 1999, iniciei o meu Curso de Mestrado, Master of Arts in Teaching, num programa americano em parceria com a UNISUL, Universidade do Sul de Santa Catarina. Só que, apesar das promessas feitas nos três anos de curso, ainda não obtivemos a validação do nosso diploma, eu e mais vinte e quatro colegas. O que valeu foi o aprendizado adquirido, principalmente na língua inglesa, pois os professores vinham dos Estados Unidos para ministrar nossas aulas.
Sou apaixonada por línguas, afinal estou na área de Letras, então, depois de iniciar o mestrado, voltei para a graduação e cursei as disciplinas de espanhol, obtendo a habilitação para lecionar mais esta língua. Durante três anos ministrei aulas de Língua Espanhola, Literatura Espanhola e Hispano-americana, Literatura Portuguesa e Didática da Língua Espanhola no Curso de Letras-Espanhol, na URCAMP, Campus de Alegrete. No início deste ano interrompi este trabalho porque senti que eu não estava conseguindo trabalhar todo o dia na EAFA e, à noite na Faculdade, com a dedicação que eu gostaria.
Há três anos, também iniciei um Curso de Italiano Básico, eu e meu esposo. A nossa formatura foi há poucos dias. É uma língua muito bonita, um pouco difícil de falar e exige muita atenção.
Hoje estou com vinte anos de magistério e não gosto de me lembrar que em breve serei uma professora aposentada. Meus filhos estão formados: Alessandro, engenheiro, doutorando, hoje é professor universitário; Leandro, médico psiquiatra, tem consultório em Alegrete e Uruguaiana; Gisele, bióloga recém formada, faz pós-graduação em Curitiba. Não consigo me visualizar em casa, descansando, enquanto tenho saúde suficiente para me dedicar à educação e orientação de tantos jovens e adultos que estão aguardando uma chance para voltar a estudar e se inserirem no mundo do trabalho, em busca de uma vida melhor.
Por isso, quando, na Escola, foi feita a pesquisa para ver quem gostaria de se inscrever no curso de especialização que ora estou cursando na UFRGS, resolvi voltar a estudar sobre Educação Profissional de Jovens e Adultos. Sei que ainda tenho muito que estudar e auxiliar nossos alunos a encontrarem seus caminhos. Sinto que, em mim, ainda “há um sol ardente com sabor de lua” como diz a minha mãe nesta que é uma de suas tantas poesias e com a qual encerro este memorial:
Há um sol ardente com sabor de lua
Nas notas harmoniosas de teu nome.
Encontrei, afinal
Uma palavra estranhamente diferente,
Uma palavra que é sinônimo de paz, de luz e de alegria:
Teu nome!
Teu nome é paz,
Porque tranqüiliza minha alma;
Luz, porque ilumina a minha solidão;
E alegria ... Sim, alegria imensa,
Porque me canta ao coração
Uma canção de lídima ternura ...
- Sabes, minha filha,
Teu nome é para mim
Ao mesmo tempo
Murmúrio de tarde e azul de infinito.
Teu nome é um sol ardente
Com sabor de lua.
(Sueli Aprato Gonçalves – 1963)
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