Memorial de Liane Osório da Rosa

“Disseram-vos que a vida é escuridão; e no vosso cansaço, repetis o que os cansados o disseram.
E eu vos digo que a vida é realmente escuridão, exceto quando há impulso.
E todo o impulso é cego, exceto quando há saber.
E todo o saber é vão, exceto quando há trabalho.
E todo trabalho é vazio, exceto quando há amor.
E quando trabalhais com amor, vós vos unis a vós próprios e uns aos outros e a Deus.”
(desconhecido)

Em um primeiro momento pensei escrever um memorial a partir da minha formação mas, como foi muito bem colocado pelo professor Rafael na aula presencial do dia 28 de março, em Caxias do Sul, a história de vida de cada pessoa é responsável pelas ações no cotidiano da vida profissional de cada um.
Como havia comentado com algumas colegas, o tempo é o grande inimigo, pois, para retomar todo este percurso, refletir e associar ao desenvolvimento profissional exige muito tempo.
Natural de Porto Alegre, porém, a infância vivida na fazenda no interior de São Francisco de Paula. Meu pai sendo o filho mais velho interrompeu os estudos para administrar os negócios de meu avô. A família mudou-se para Porto Alegre para que os outros cinco filhos prosseguissem os estudos. Como era o sonho de toda família na época formaram-se um médico e uma professora. Filha de pecuarista que, por amor a terra e ao seu passado quando casou fixou residência no interior. Constituíram família e da terra tiraram o sustento e educaram os filhos. Meus pais cumpriram esta missão da melhor forma que lhes foi possível e com toda a dedicação. Foi deles que recebi os primeiros ensinamentos. Os ensinamentos dos valores mais significativos para vida como respeito, honestidade, solidariedade e dedicação. Ensinamentos que se trás de berço e que nos acompanham para sempre e são de extrema importância para nossa vida profissional.
Tivemos, eu e meus dois irmãos, uma infância alegre, tranqüila e saudável. Sempre em contato com os animais e a natureza, com muita liberdade. Grande parte de nossa alimentação era ali produzida.
Apesar desta abundancia de espaço e deste contato com a natureza, gostava muito de ouvir histórias infantis e, quando aprendi a ler os livros que eram ganhos as avó e da madrinha, eram logo lidos e relidos.
A escola que existia nas proximidades era estadual, rural e multiseriada. Escola simples do interior. O uniforme era o guarda-pó branco. Naquele tempo, os cadernos eram encapados com o papel reutilizado de compras que eram feitas na “venda” e, alguns alunos usavam o saco plástico do pacote de 5kg de arroz como pasta para carregar o material escolar (caderno, livro, lápis e borracha). Foi lá que aprendi a reconhecer as letras, soletrar as primeiras palavras e o gosto pela leitura aumentou a cada dia.
Quinto ano primário: Nesta época surge a necessidade de vir para Caxias. Centro mais próximo que oferecia as condições necessárias para a nossa formação e que permitia aos meus pais ir e vir, dando continuidade as suas atividades.
Em Caxias do Sul, ano de 1967, fui matriculada em uma escola particular, Colégio São José, pois, meus pais acreditavam que a educação em uma escola particular seria melhor. Foi um ano difícil, ano de muitas mudanças, adaptação ao novo: novos professores, novos colegas, nova escola. Recomeço de uma nova vida, na cidade. Apesar disto, até os dias de hoje nunca perdi o contato com o campo.
Após concluir o ginásio, surge a necessidade de trocar novamente de escola, pois, a escola que eu freqüentava oferecia apenas até esta etapa de ensino. Novamente optamos por uma escola particular – Colégio São Carlos. Tive que escolher um curso profissionalizante, pois, neste, ano aconteceu o início da reforma do ensino. Introdução das terminalidades no 2˚grau. Como a escola localizava-se próximo de onde morávamos e oferecia a terminalidade Auxiliar de Escritório, não tive muita escolha.
Foi nesta época que aprendi a fazer balanço e fechar caixa e, até gostava da parte dos cálculos, pois, sempre tive muita facilidade em matemática. O que eu não podia imaginar na época é que um dia eu iria assumir a direção de uma escola e voltaria a fazer o caixa, o balanço e até as prestações de contas, pois, na escola em que atuo, por serem apenas 240 alunos, não temos agente financeiro.
Três anos mais tarde chegou a hora de ingressar em um curso superior.
Sendo única filha mulher e a caçula da família, não tive a permissão de estudar fora. Por influencia de uma sociedade machista e fundamentada no pensamento de que a família havia se transferido pra Caxias por ser um centro que oferecia certa estrutura para uma boa formação, a família não permitiu que fosse fazer a faculdade de farmácia que era um sonho na época do vestibular.
Entre os cursos que eram oferecidos, restou optar pela formação em Licenciatura em Química, pois, a pretensão era de, quem sabe, trabalhar em um laboratório ou até, após a Licenciatura, fazer o curso de farmácia.
No final do curso vieram os estágios: primeiro o chamado mini-estágio – aulas eram ministradas para os próprios colegas-. Nesta época lembro muito claramente que recordei da época que dava aulas para as amigas e até mesmo para as bonecas quando estas não estavam presentes.
Depois veio o estágio final que foi quando realmente percebi que, talvez até pela influência de minha tia, a minha profissão seria realmente de educadora.
Fiz concurso para ingressar no magistério público estadual e, enquanto aguardava a nomeação fiz estágio por um mês no Laboratório de Enologia – análises e fiscalização de vinhos. Decorrido este tempo fui contratada. Neste momento estava ingressando no serviço público estadual. Sabia que era por pouco tempo, pois, havia feito o concurso para o magistério e aguardava ser chamada.
Final de 1983 e início de 1984 ou época de grandes mudanças em minha vida: primeiro a nomeação do magistério, para assumir o laboratório de análises químicas do Colégio Estadual Cristovão de Mendonza, pois, com a experiência que havia adquirido no Laboratório de Enologia e a falta de professor de química, a pessoa responsável pelo setor de recursos humanos da 4˚CRE ficou muito satisfeita e lembro muito bem da colocação feita na época que eu com a formação em química e a experiência do laboratório, seria a profissional ideal para assumir esta vaga.
Digo sempre não sei se foi sorte, ou se procuro colocar um diferencial em tudo o que faço, pois consegui iniciar a carreira de magistério no centro de Caxias enquanto na época a grande maioria das colegas tiveram o inicio de sua carreira no magistério muito sofrida no que diz respeito a distância e meios de locomoção.
Segundo, encontrei a pessoa com quem constitui uma nova família. Tivemos duas filhas: Letícia e Lisandra.
E a vida de professora seguiu como toda a profissão dias de muitas realizações, outros tantos não tão bons assim.
Sempre procurei fazer cursos de atualização em educação ou voltados a minha titulação em química.
Cheguei a fazer concurso para o município. Fui chamada para assumir, mas não aceitei. O que eu queria mesmo era dar aulas de química.
Era gratificante e me realizava quando um aluno dizia “aprendi a gostar de química contigo” ou “vou cursar engenharia química, pois gosto muito das aulas de química”.
Por ironia do destino aconteceu uma reforma no magistério estadual no governo de Alceu Colares, como eu era a última professora que havia entrado na escola que trabalhava na época fiquei excedida e fui transferida para uma escola onde só havia ensino fundamental.
Novamente uma grande mudança. A titulação eu tinha (ciências e matemática de 1˚grau e química de 2˚ grau), porém a experiência era de ensino médio e noturno que, geralmente, se convive com alunos de mais idade. Foi um grande desafio, pois não estava habituada com crianças tão pequenas, de 5˚ série.
No início foi difícil. Passado um tempo, posso dizer que me encontrei, pois era mais gratificante ainda ver a curiosidade e a realização de muitos alunos por coisas que para mim pareciam tão insignificantes.
Naquele tempo, as alunas da 5˚ série traziam flores para professora. Isto me fez lembrar quando, lá na escola rural, eu levava a flor colhida do jardim para minha professora. Isto é gratificante nos dá o impulso para continuar esta caminhada, que muitas vezes nos surpreende com um caminho tão tortuoso.
“E a vida não para”, como diz a música Paciência de Lenine. Nossa vida esta continuamente sofrendo mudanças, nós como seres humanos nos adaptamos facilmente a esta metamorfose, que faz a história de cada um ser tão diferente, com toda a bagagem genética que carrega somada as experiências adquiridas ao longo desta caminhada. Tudo isto faz com que cada um seja o protagonista da sua história.
E é justamente por causa destas diferenças e mudanças que o projeto político-pedagógico deve ser continuamente revisto e reformulado. Não é estanque, deve sofrer modificações de acordo com as desigualdades, diferenças e interesses da comunidade escolar.
No meu relato estou me aproximando aos dias de hoje e, mais uma transformação acontece. Em final de 2002 fui convidada para fazer parte da direção da escola como vice-diretora. Foi um trabalho interessante que jamais pensei que iria desempenhar, pois como já havia colocado antes, me realizava ensinando e despertando o gosto pela química.
Em agosto de 2006 algumas colegas me procuraram para que eu me candidatasse a Direção da escola. Confesso que no início foi um pouco assustador. Refleti muito e decidi enfrentar mais esta. Éramos duas concorrentes. Entreguei nas mãos de Deus “que seja o melhor para a escola e para mim”.
Assumi a direção e como gestora tenho procurado atingir todos os objetivos do plano de ação sempre colocando em primeiro plano o interesse do aluno.
Sei que carrego comigo não só os valores aprendidos com meus pais, apesar de considerar os mais significativos, mas a experiência que adquiro na convivência com outras pessoas sejam professores, colegas, amigos ou até mesmo alunos, é de grande importância na minha formação.
Entendo que é importante conhecer e abrir espaço para que se conheça a história de cada educador, pois a troca de experiências é importante para alcançar o principal objetivo que é o comprometimento e o sucesso do aluno, com suas diferenças, no processo ensino/aprendizagem.
Concordo com Maria do Carmo Canani quando coloca em seu memorial “...que é necessário dar um novo sentido para a escola, na perspectiva dessa ser um espaço de valorização da vida e de humanização das relações.”
Um dia desses, procurando uma música para usar como mensagem introdutória de uma reunião pedagógica encontrei a música: “Tocando em Frente” de Maria Betânia , que diz “... é preciso amor para poder pulsar , é preciso paz para poder sorrir ...” Diz exatamente o que penso para minha vida e para a minha gestão. Com amor e paz tudo se alcança.
Gostei muito de ter escrito este memorial. Hoje percebo a diferença que fez participar do curso “Escola de gestores da educação básica”. Passei por momentos de questionamento e já consegui mudanças dentro do ambiente escolar, pois com amor e dedicação tudo se torna mais fácil, o fardo fica mais leve.

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