Memorial de Ceres Labrea Ferreira

Ceres Labrea Ferreira
Porto Alegre - 2008
Introdução

Este Memorial aborda a desafiante tarefa da escrita de um texto marcado pela subjetividade e, portanto, sujeito à diferentes interpretações. Constitui-se de uma escrita complexa, na qual o discurso é expresso pelo viés dos sentimentos, das emoções, reflexões, memórias de vivências e de meu fluir pela vida como sujeito a um só tempo físico, biológico, psíquico, histórico, social e cultural (Morin2002).
Esse “garimpar” na minha trajetória educacional e profissional, o compartilhar experiências, o repensar (com idéias e imagens) de fatos significativos é marcado pela curiosidade, paixão e sensibilidade no ato de educar. De uma maneira geral, mas suficientemente aproximativa, este memorial me conduz ao desafio de um novo conviver com meu processo formativo/educativo, tocada por uma curiosidade epistemológica (Freire.1996, p.27), na ressignificação de minha docência em tempos de exigências de uma nova postura frente à realidade educacional.
A escolha do subtítulo Mosaico representa a reunião de elementos significativos, constituintes do meu fazer pedagógico. Mosaico também nomeia um disco instrumental, de Ângelo Primon, um querido músico gaúcho, a quem homenageio e agradeço, por alegrar minha alma no exercício desta escrita, sensibilizando-me, inspirando-me, por meio do seu trabalho, a buscar a delicadeza dos acontecimentos que me constituem como educadora.
Mosaico de “Con-Vivências” Educaionais
De acordo com o dicionário, Mosaico é uma palavra originária do latim (lat.tard.Mosaicus) que tanto pode significar “Reunião de pequenas pedras,quase sempre cúbicas, multicoloridas, justapostas de maneira a formar um desenho e incrustada em cimento” quanto “qualquer trabalho manual ou intelectual composto de partes visivilmente, distintas,miscelânea”. Ainda na busca de definições, descobri que a palavra Mosaico tem origem na palavra grega mousien, a mesma que deu origem à palavra música, que significa próprio das musas. Assim, penso minha constituição enquanto educadora: um mosaico que é misto de reuniões de pequenos acontecimentos, de “con-vivências” sociais, educacionais que formam um desenho um trabalho intelectual composto por uma miscelânea de idéias e de uma parte poética que me inspira ir ao encontro de outros saberes em minha história de vida, tecida por tramas e texturas de uma significância vivencial, emocional e afetiva.
Ao trazer o termo garimpar, como metáfora nesse processo de reflexão, várias são as imagens que me vêem. Lembrei da frase de Heráclito: “Nunca nos banhamos duas vezes no mesmo rio, pois na segunda vez não somos os mesmos, e também o rio mudou.” (Martins,1993, p.93). Neste garimpar, tenho a clareza de que já não sou a mesma desde que iniciei este memorial.
Con-vivências Primeiras
Ah, um banho de rio ... mergulhar e deixar vir à tona os acontecimentos pela reflexão presente...
Em São Luiz Gonzaga, pequena cidade no interior do Rio Grande do Sul, região missioneira – foram tecidas minha infância e adolescência através de um mosaico de aprendizagens e saberes sensíveis. Uma estadia de convivências, de explorações e descobertas junto à natureza; experiências cotidianas repletas de significações, desafios, frustrações, curiosidade e possibilidades.
Essa estadia, repleta de múltiplos encontros e movimentos, povoou meu imaginário e ajudou-me a compreender singularidades nesses espaços. Assim, fui dando sentido aos acontecimentos, construindo e compreendendo valores/significados, que penso serem necessários e referenciais na arte de educar. Falo de valores, construção de sentidos e compreensões mútuas entre os sujeitos, pois vejo o processo educacional perpassado por ações que deflagram construções de identidades constituídas de sentidos num contexto histórico-social
Naquele espaço geográfico tive a oportunidade de contatar com a natureza quase que diariamente, o que me oportunizou vivenciar brincadeiras recheadas de desafios, ousadias e poesia, juntamente com minha nômade família –ora vivíamos no campo, ora na cidade. Quando voltada para interesses agrários, reforçava este contato, bem como intensificava o estabelecimento de relações num circulo de amizades alicerçadas na simplicidade, na colaboração mútua, na autenticidade e na solidariedade. Ao vivenciar o espaço urbano, lembro com muito carinho das peças teatrais, realizadas no pátio de casa, de meu acesso a um bem cultural – o cinema – que, semanalmente, era freqüentado por nós. Muitas de minhas aprendizagens nasceram desse vínculo social, o qual tinha uma participação ativa de amigos do meu pai.
Paulo Freire (2001,p.20), considera que “aprender a ler, a escrever, alfabetizar-se é, antes de mais nada, aprender a ler o mundo, compreender o seu contexto”. Para mim, ter um convívio no meio social urbano, ter tido contato com a arte, ter aprendido a respeitar a natureza, a regozijar-me com os prazeres e desafios por ela ofertados através dos banhos de rio e de chuva, da brincadeira em gangorras de taquara; ouvir causos ao redor do fogo de chão, conviver com diferentes pessoas e animais, sem dúvida constituem um reservatório para meu processo de aprendizagem, um acervo de fenômenos, tal qual uma biblioteca com seu acervo de livros. Eu fui aos poucos, à medida em que me relacionava, lia e decifrava o mundo à minha volta, montando uma biblioteca: biblioteca de pensamentos, de imagens, de sentimentos, de afetividades, de conflitos internos, de superações, frustrações e de possibilidades.
Essa formulação me remete a Jean Marie Goulemot que, “ao entender a leitura como um evento do tipo “aqui e agora”, pensa sobre os elementos externos a ela, ou seja, as condições que o leitor tem nesse determinado momento. São condições que concorrem para a percepção dos efeitos de sentido, e são elencadas através de três variáveis: fisiologia, tempo e biblioteca. A variável biblioteca[1] chama atenção por pressupor culturas adquiridas pelo sujeito – “cada indivíduo carrega consigo uma biblioteca armazenada de experiências, o que, definitivamente, demarca um melhor nível de leitura.”(GOULEMOT,1996,p.113). Penso que essas vivências, ao serem acessadas pela iconografia da sensibilidade e pela consciência do inacabamento do ser humano,(FREIRE,1996) me tecem enquanto sujeito hoje.
Ao refletir sobre as vivências significativas de minha infância e adolescência também trago o pensamento de Berger & Luckmann (2004, p.14), que, numa análise sociológica, nos diz que “o sentido se constitui na consciência humana: na consciência do indivíduo, que se individualizou num corpo e se tornou pessoa através de processos sociais. Consciência, individualidade, corporalidade específica, sociabilidade e formação histórico-social da identidade pessoal são características essenciais de nossa espécie.” Percebo, então, que minha forma de me mover, de sentir, agir e intervir no mundo advém dessas relações, juntamente com outras experiências, que me ensinaram e me ensinam a atribuir significado aos acontecimentos e a ter um olhar construtivo frente à vida e na minha relação com os educandos.

Con-vivências Profissionalizantes

Ao realizar as leituras propostas nas disciplinas do Curso de Especialização em Educação Profissional e Técnica de Nível Médio Integrada à Educação Básica na Modalidade Educação de Jovens e Adultos dei-me conta da importância desse resgate histórico como condição sine qua non para que eu me enxergasse nesse processo e entendesse minha construção como sujeito docente.
Nasci em 1964 e ao ingressar na escola nos anos 70, recebi uma educação influenciada pelo tecnicismo, mas creio que respingada pelas influências de uma educação tradicional. Nesse período, com o desenvolvimento do processo de industrialização e a ênfase no desenvolvimento econômico, senti a aplicação da Lei 5.692/71 no contexto da educação – essa lei oficializava a formação integral do jovem, com preparação do homem para o mercado de trabalho.
Minha construção profissional iniciou quando ingressei no curso de Magistério em uma Instituição Educacional Confessional Salesiana, em 1979, na cidade de São Luiz Gonzaga. Hoje , através dos diversos estudos que empreendi, percebo o modelo inscrito na minha formação, que dava ênfase ao domínio de habilidades referentes ao planejamento de ensino, ao conhecimento e a utilização de novas tecnologias do ensino e recursos audiovisuais, a definição de objetivos, a avaliação voltada para o alcance dos objetivos propostos e a fragmentação no processo ensino-aprendizagem. O curso com três anos de duração e realização de um semestre de estágio, possibilitou-me a conquista do diploma de Educadora.
Minha primeira experiência como educadora foi numa escola particular Salesiana que primava pelo ensino de elite; naquela época trabalhávamos com grupos de crianças pretensamente homogeneizadas por um processo de seleção (Esteves,1995:96). Digo pretensamente porque a segmentação social era facilmente identificável e se refletia na divisão dos alunos em turmas diferenciadas econômica e cognitivamente.
Posteriormente, já com a formação de professora, atuei em uma escola Municipal da periferia, ainda em São Luiz Gonzaga, numa turma de 2ª série do Ensino Fundamental. Esta turma, pelo baixo desempenho alcançado no ano anterior, carregava o estigma de fracassada.
A diferenciação econômica, social e cognitiva (entre a turma da escola particular e a da periferia) foram o principal e primeiro desafio, que me instigou a usar uma espécie de rede de atividades, as quais eu entendia como alternativas, de forma a despertar o interesse dos alunos.
Buscando romper estigmas, valorizando o ser em sua complexidade, respeitando o tempo de aprendizagem de cada um no grupo, tendo uma consciência de unidade na coletividade e vice-versa, entendi como necessário, ensinar o conteúdo de forma mais lúdica do que a orientação tradicional indicava. Pretendia, assim, superar as limitações cognitivas apresentadas pelos alunos em relação à proposta formal de desenvolvimento do conteúdo. Naquela ocasião, eu trabalhava intuitivamente, empiricamente. Busquei resgatar a auto-estima do grupo através do acolhimento dos saberes. Lado a lado com as interações face a face, essas condutas foram protagonistas na troca de sabedorias dando-me oportunidade de experimentar também, as interações mediadas.
Nestas interações, o gravador, o jornal, a revista, os cartazes de filmes infantis, foram coadjuvantes indispensáveis nas diversas linguagens e atividades criativas e inovadoras para a época.
Essa experiência, garimpada em meio a tantas outras desse meu mosaico pessoal/profissional, vista até então como positiva, assegurou-me uma auto-credibilidade e uma credibilidade comunitária, de forma que os novos desafios profissionais me motivaram nesta busca de um maior entendimento dos processos de construção de conhecimento.
Mais que os resultados profissionais positivos alcançados, esta foi uma experiência que entendo como a primeira manifestação da ação educativa, fundamentada na idéia da Biologia do amor de Maturana e Rezepka (2001).
Paralelamente, anseios pessoais me moviam em direção à ampliação de horizontes – sair da cidade onde eu havia nascido, sair da casa de meus pais, mudar-me para a capital. Foram passos que senti como necessários para buscar minha independência. Porém, as condições objetivas de sobrevivência ou a leitura que fiz delas, me levaram a optar pelo curso de Educação Física na Universidade do Rio dos Sinos, no ano de 1986, pois vislumbrei a possibilidade de aliar o interesse pela educação ao trabalho corporal que o curso pressupunha. Minha percepção corporal foi ampliada, mas a insatisfação diante dos paradigmas presentes no desenvolvimento do curso e a necessidade de aprofundar e expandir meus conhecimentos sobre o corpo/consciência de si/ alargamento da visão educacional e compreensão histórico- social, me levaram a freqüentar vários cursos extra-curriculares, seminários e palestras sobre corporeidade cujos conteúdos abordavam entre outros, dança como terapia, alongamento, sensibilização e expressão através do movimento e da voz, cantos e danças sagradas. O intuito era encontrar maiores informações a respeito dos fenômenos resultantes da ação corporal, bem como ampliar meus horizontes sobre o significado da percepção, do auto-conhecimento e consciência corporal, pois, sobretudo, acredito que nossa educação começa pelo corpo e tudo aquilo que é captado de maneira sensível pelo corpo poderá resultar numa interação saudável e mais responsável com o ambiente que nos cerca. Nesse sentido, João Francisco Duarte Junior (2001,p.12), nos diz que “tudo aquilo que é imediatamente acessível a nós pelos órgãos dos sentidos, já carrega em si uma organização, um significado, um sentido”.
Por questões contratuais nunca atuei como professora de Educação Física nas escolas públicas. No entanto, por entender a necessidade de incluir a atividade corporal nos programas de currículo, sempre me vali desse conhecimento e o utilizei em todas as turmas em que exerci a docência.
Entre tantas experiências vividas com alunos de currículo, enfatizo uma atividade que chamo de resultado de vivências. Estas vivências foram desenvolvidas com uma turma com a qual trabalhei por dois anos consecutivos. Na época, eu tinha um sítio em Morungava/RS. Então, com aprovação da escola, fiz o convite aos pais dos alunos. Com a participação da orientadora da escola, vivemos dois dias e uma noite de fartas experiências potencializadoras da aprendizagem: as crianças realizaram atividades de cozinhar, arrumar a casa, nadar, explorar o local, dançar ,brincar e cantar em torno da fogueira. Manipularam o barro e o guache, vivenciando a magia de reiventar o inventado. Foram experiências que através de ações motivadas por afetos provocavam e reforçavam atitudes de autonomia, solidariedade e sociabilidade. E, distante de suas casas e atividades habituais, encerramos esta “con-vivência”- numa aventura que, com a visita dos pais, culminou numa grande celebração de carinho.
Essa experiência reforçou meu entendimento de que o trabalho de educação não se faz somente através da relação linear aluno/professor/sala de aula, mas sim, também, num ambiente prazeroso de interação social onde as relações de troca possam ultrapassar as fronteiras do espaço escolar. Comungando com a idéia de Freire de que a educação é uma tarefa possível e, sobretudo humana, penso que essa prática pedagógica teve o sentido de colaborar na formação de sujeitos sensíveis, criativos e responsáveis por seus atos.

Na EJA : Um outro encontro

As experiências narradas até aqui me possibilitaram acreditar na superação de limitações no processo de construção de novos saberes.
Um novo desafio e um novo contato se estabeleceram na minha trajetória profissional: trabalhar com jovens e adultos no Ensino Supletivo em Escola Pública Estadual. No contato inicial com minha primeira turma de adultos percebi o formalismo circulando nas relações, tanto de sala de aula, quanto por todo o espaço escolar. O currículo proposto para essa realidade reforçava a função dessa modalidade de somente concluir a escolaridade básica dos alunos conforme a lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB nº5692/71- “que continuou a vigorar, em seus traços gerais, na nova LDB nº9394/96. Uma das principais características da Suplência foi a incorporação das práticas de ensino regular mantendo a idéia da aceleração escolar”. (Cadernos Pedagógicos EJA-1. Política Pública de Educação de Jovens e Adultos.Secretaria da Educação.2001). Os três princípios norteadores eram: flexibilidade, identidade própria e metodologia.
A flexibilidade deveria atender à diversidade de contextos educacionais, a identidade própria, no sentido de respeito às características e necessidades desse público, e a metodologia basicamente refere-se à questão de idade.
Ao iniciar o trabalho no então Supletivo, assumi uma turma composta por alunos com idade entre 15 e 60 anos, a maioria trabalhadores. Tudo era novo para mim, então começaram minhas perguntas :
Quem são e de onde vêm os meus alunos? Como se sentem nesse espaço? Por que estão sempre tão calados? Temos um currículo que dá conta dessa diversidade que encontro na sala de aula? O que eles esperam dessas aulas? Vi-me num modelo de escola tradicional, com todas as características subjacentes, e os alunos e eu, embora com alguns avanços, também frutos dessa ideologia. Minha prática educativa centrada em princípios de valoração do ser humano e acolhimento dos saberes que cada pessoa traz em si, me levou a buscar, com minha sensibilidade e humildade, a possibilidade de juntos tecermos uma educação, a meu ver, significativa para esse público. Eles pareciam amarrados aos conceitos de uma educação tradicional, de tal forma que se posicionavam à margem do saber. Apresentavam-se - através de suas marcas - como uma espécie de pássaros presos, com medo de alçar vôo. Em seus olhares e gestos havia como que um pedido oculto: queremos voar mas temos medos, amarras.
Apostei no trabalho em grupos, percebendo simultaneamente a dificuldade apresentada pelo grupo em estabelecer relações e desenvolver seu potencial de interação. Entendi que era preciso fazer um contato (“con-tato”) para que o vínculo se estabelecesse - vitalizando e apostando nos seus imaginários, nas singularidades e legitimidades. Meu desejo ia além de entender e analisar essa interação, eu queria fazer parte dela. Para alcançar esses objetivos recorri novamente (creio que com uma consciência ingênua) a diferentes linguagens, onde a mitologia, a arte, a dança circular, o canto, a poesia, o acolhimento dos saberes e o amor pelos meus alunos constituíam meu plano de trabalho. O “encantamento”, a liga, aconteceu e, juntos, trabalhamos no sentido de percebermos nossas inibições, estigmas, preconceitos e ignorâncias - não no sentido pejorativo mas, pelo entender de Sara Pain: “ ignorância não é a falta de saber, mas a representação do que não se sabe” (Revista do GEEMPA. 1997). Os conflitos se fizeram presente, mas, respeitando o processo de cada um na desconstrução e reconstrução de sentidos e significados, no decorrer do trabalho, as diferenças de idade foram dissipadas e o respeito e a compreensão dos diferentes momentos de vida de cada um, acolhidos. Penso que o “reconhecimento do assumir-se como ser social e histórico, como um ser pensante, comunicante, transformador, criador e realizador de sonhos...” ( Freire, 1996.p.46) foram sendo construídos.
A gratificação foi intensa e ampliada quando recebi de presente de aniversário um cartão com o seguinte texto: “Você entrou de pijama cor-de-rosa... dentro do nosso coração! ” Para mim, ali estava a confirmação de que o contato havia acontecido.

Educação Infantil x inclusão

No transcorrer de minhas atividades profissionais, no ano de 1999, passei a trabalhar com a Educação Infantil na Escola Estadual de Ensino Fundamental Rio de Janeiro em Porto Alegre. Mais uma vez um novo desafio se fez presente com a entrada de um aluno portador de síndrome de Down na sala de aula: Como vivenciar o processo de inclusão de aluno portador de deficiência numa classe regular de Ensino Fundamental na Educação Infantil, sem ter nenhum apoio institucional e base teórica a respeito dessa realidade? Esta nova situação educacional provocou-me rupturas com paradigmas de educação ainda tão amalgamados em minha prática pedagógica. Neste mesmo período -1999/2000 - estava realizando o curso de Especialização em Teoria e Prática Pós – Construtivista das Aprendizagens Escolares – GEEMPA – Grupo de Estudo Sobre Educação, Metodologia de Pesquisa e Ação com o embasamento teórico, na teoria construtivista pós-piagetiana. Ali comecei a estudar teorias do conhecimento que trazem a idéia do deslocamento do enfoque do sujeito epistêmico para o centro do debate do sujeito desejante e social. (Revista do GEEMPA, 1996) Resumidamente, o curso provocáva-nos com uma didática própria, para a idéia de que todos podem aprender, que aprende-se uns com os outros, perguntando, discutindo, trocando saberes numa interação social, respeitando as autorias na construção dos saberes .
Embasada nesses novos conhecimentos teóricos, minha dinâmica na ação educativa para dar conta da inclusão alicerçou-se a partir três enfoques: uma nova estética na conformação da sala de aula, tendo o trabalho em grupo como potencializador das relações interpessoais, sem perdas da individualidade e identidades (GROSSI, 1995) confiança na minha autoria - prática reflexiva - ação tecida com afeto e respeito às diferenças - possibilitando a aprendizagem dos alunos para o processo de inclusão; e a escuta, a ruptura com os preconceitos, os enfrentamentos, as alianças e a delicadeza com a comunidade escolar.
Esta vivência singular gerou reflexões e clareza de que a vida é construída em cima de acordos com o ser, o fazer, e o transcender.
Educação na FASE: Possibilidade de Outros Saberes

“Interrogo signos dúbios
e suas variações caleidoscópicas
a cada segundo de observação.”
Drummond
Estar sendo docente hoje, na escola Tom Jobim, inserida na Instituição FASE - Fundação de Atendimento Sócio Educativo - é estar interrogando e alargando meu olhar nesse processo de educação, delineado por múltiplas resistências e possibilidades na prática educativa. Resistências diferentes das que eu havia encontrado em trajetórias anteriores: alunos em situação de privação de liberdade, salas escuras, alunos que se ausentam mesmo estando na instituição, portões com grades, material controlado, aulas canceladas, local insalubre, burocracias da instituição, entre outras. Esses fatores colaboram, muitas vezes, para um sentimento de impotência e de um vazio frente às minhas ações empreendidas nessa prática. Esse contexto me remete aos elementos de pressão que as mudanças sociais exercem sobre a função docente. (NOVOA,1995).
Nesse estar sendo, meu olhar, volta-se para o viés da sensibilidade, da receptividade, da disponibilidade, da suspensão de juízo e do automatismo da ação. Nesse sentido, conforme Rubem Alves (2002), “toda experiência de aprendizagem se inicia com uma experiência afetiva, que o pensamento nasce do afeto”, afeto - em latim “affetare”, significa “ir atrás”. Apostando nessa idéia, vou em busca de elementos que colaborem no sentido de compreender as complexidades e sutilezas apresentadas nesse espaço escolar marcado pela exclusão social. Encontro-me num momento onde tenho mais a interrogar do que a contar sobre essa recente experiência. Minhas dúvidas são minha fome e paixão por novos conhecimentos que auxiliem a uma aproximação de uma prática que possibilite a esses alunos um novo horizonte e um desvelamento sobre as representações que constroem sobre si próprios, sobre a realidade física, social e pessoal de que fazem parte.
São tantos os signos, as carências, as repressões, os desafetos, os preconceitos, o estreitamento de olhar, a resignação para com esses alunos, que silencio no intuito de alargar minha curiosidade epistemológica. Cultivo minha atenção, minha escuta, meu pensar, meu sentir para assim, num sentido espiral, ir traçando o desenho, a configuração que darei ao meu mosaico educacional na intenção de contribuir com uma prática pedagógica que não só constate, mas que seja capaz de intervir na realidade.

COMIDA
Bebida é água.comida é pasto.você tem sede de que?você tem fome de que?a gente não quer só comidaa gente quer comida, diversão e arte.a gente não quer só comida,a gente quer saída para qualquer parte.a gente não quer só comida,a gente quer bebida, diversão, balé.a gente não quer só comida,a gente quer a vida como a vida quer.bebida é água.comida é pasto.você tem sede de que?você tem fome de que?a gente não quer só comer,a gente quer comer e quer fazer amor.a gente não quer só comer,a gente quer prazer pra aliviar a dor.a gente não quer só dinheiro,a gente quer dinheiro e felicidade.a gente não quer só dinheiro,a gente quer inteiro e não pela metade.bebida é água.comida é pasto.você tem sede de que?você tem fome de que?
diversão e arte para qualquer parte
diversão, balé como a vida quer
desejo, necessidade, vontade
necessidade, desejo, eh !
necessidade, vontade, eh!
necessidade...

Composição: Arnaldo Antunes/ Marcelo Fromer/ Sergio Brito

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALVES, Rubem.A arte de produzir fome.Folha de São Paulo, São Paulo.29 out. 2002.
APRENDENDO COM JOVENS E ADULTOS: revista do programa de ensino fundamental para jovens e adultos trabalhadores, Porto Alegre.:UFRGS,n.0,1998.
ARANHA,Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires.Filosofando: introdução à filosofia.In 2ª ed. rev.atual.São Paulo:Moderna,1993.
BERGER, Peter; Luckmann, Thomas.In: Os fundamentos da significância da vida humana.Modernidade, Pluralismo e crise de sentido: A orientação do homem moderno:Petrópolis. RJ: Vozes.2004 Cap.1,p.14-24.
BONDÍA,Jorge Larrosa . Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Tradução de GERALDI, João Wanderley,n19.2002, Universidade Estadual de Campinas.
DUARTE JR. João Francisco. O Sentido dos Sentidos, a educação (do) sensível. Curitiba: Criar Edições, 2001.
ESTEVE, José M.Mudanças Sociais e Função Docente.In:NOVOA, Antônio(Org). Profissão professor. Porto , Portugal: Porto Editora,1995.p.96.
FREIRE, Paulo.A importância do ato de ler.São Paulo:Moderna, 2003
FREIRE, Paulo.Pedagogia da Autonomia: Saberes necessários à prática educativa.São Paulo:Paz e Terra, 1996
GOULEMOT, Jean Marie; CHARTIER, R(org.). Da leitura como produção de sentidos. Tradução de Cristiane Nascimento.Estação Liberdade. São Paulo. 1996.
GOVERNO DO RIO GRANDE DO SUL. Política Pública de Educação de Jovens e Adultos: Cadernos Pedagógicos EJA-1.Secretaria da Educação. 2001
GROSSI, Esther Pillar (org). Celebração do conhecimento na aprendizagem.Porto Alegre:Sulina,1995.
MATURANA, Humberto; REZEPKA, Sima Nisis de. Formação humana e Capacitação.Petrópolis: EditoraVozes,2001.
MORIN,Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez, Brasília, DF: UNESCO, 2002.
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ROCHA, Ana Luiza Carvalho. A renuncia à razão triunfante e o retorno aos saberes tradicionais. Revista GEEMPA:O fio e a rede do equilibrista,Porto Alegre, n.1, p.96-102, julho.199






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