Memorial de Luciane Ines Ely

“Cada um de nós compõem a sua história”

Outubro de 2006



(...) Mais difícil do que escrever ficção é, certamente, escrever sobre a realidade.
Mais difícil do que inventar é, na certa, lembrar, juntar, relacionar, interpretar-se.
Explicar-se é mais difícil do que ser.
E escrever é sempre uma ato de existência. Quando se escreve conta-se o que se é.
Parece que se inventa, mas não: vive-se. Parece que se cria, mas na verdade aproveita-se a história como que está pronta dentro da gente.
(...) A história é mais real do que qualquer explicação. (...)
(Ruth Rocha, 1983)

Primeiras palavras

“Histórias moram dentro da gente, lá no fundo do coração. Elas ficam quietinhas num canto. Parecem um pouco com a areia no fundo do rio: estão lá, bem tranqüilas, e só deixam sua tranqüilidade quando alguém as revolve.” (Munduruku, 2001, apud, Caminhadas, 2006, p. 15)

Em outubro de 2006, aos 31 anos, as professoras Maria Aparecida Bergamaschi e Simone Valdete dos Santos, da disciplina de Organização Histórico-Social da Educação Escolar do curso de Especialização em Gestão da Educação pela UFRGS, solicitaram-me a escrita de um memorial. Assim como o agricultor revolve a terra para a germinação da semente, fui instigada a revolver minhas memórias. O que será que irá germinar? Como estas lembranças irão me afetar? Estou ansiosa e curiosa, pois num primeiro momento parece que não tenho muitas lembranças, principalmente da escola, mas veremos... Por onde começo?

Concomitantemente à escrita do memorial, como estratégia de inspiração e evocação, li o livro “Caminhadas de Universitários de Origem Popular”, uma publicação do Programa Conexões de Saberes / UFRGS. As memórias destes autores suscitaram muitas das minhas memórias. Coincidência? Penso que não. Identifiquei-me com muitas das trajetórias dos autores deste livro. É estranho até, mas quando se começa a escrever e lembrar, mais e mais lembranças vêm... mais e mais lembranças a memória nos permite acessar.

Cabe destacar também que não pretendo neste texto me restringir às vivências e aprendizagens institucionais. Entendo, fundamentalmente, que os valores mais significativos da vida foram aprendidos com meus pais, parentes ou do grupo no qual vivi / vivo. Assim, compartilho com a idéia de Caleffi (2004), que afirma que a “educação é um amplo processo não vinculado necessariamente a um sistema de ensino institucionalizado ou mesmo à existência da língua escrita, mas a educação como o processo de socialização dos indivíduos em uma dada cultura” (p. 32).
Por falar nos meus pais, vou rapidamente apresentar parte das suas trajetórias.

Meus pais

Meu pai, Elmo, é um dos 14 filhos da minha avó Suzana e do meu avô Reinaldo. Estudou numa escola construída e mantida pela comunidade em Picada Augusta, Cruzeiro do Sul - RS. Clarice Nunes, no artigo (Des) encantos da modernidade pedagógica relata os castigos aplicados nas escolas do Rio de Janeiro, como palmatória, puxões de orelha, permanência de joelhos em cima de grãos de milho ou feijão. Nesta escola em Picada Augusta percebe-se que os castigos físicos aplicados nas Escolas do Rio de Janeiro em meados da década de 30 são os mesmos aplicados na década de 60 nessa Escola em que estudou meu pai.

Aos 14 anos aprendeu a tocar trompete, instrumento conseguido por um irmão que estava estudando numa Escola para Padres. Este irmão ensinou noções básicas de notas musicais e já aos 15 anos meu pai estava tocando em uma banda de baile. Com isso, ajudou meu avô a pagar os estudos do irmão mais velho e de outra irmã, que foram incentivados pelo professor da época a continuarem os estudos, pois tinham cabeça boa. Essa visão do professor influenciou a vida destas pessoas, pois a partir disso o meu avô fez de tudo para que continuassem os estudos. Até que ponto os ditos, os enunciados, as afirmações, as falas, os incentivos e as “verdades” de um professor podem afetar as vidas das pessoas? Assim como alguns apanhavam porque tinham cabeça fraca, outros recebiam o estímulo para continuarem os estudos. Esse olhar e essas expectativas do professor influenciaram significativamente as vidas desta família.

A renda advinda da música também ajudou na compra de seu pedaço de terra, sua casa, e aos poucos foram adquirindo o necessário para o conforto da casa, conseguindo até comprar um carro usado.

Minha mãe, Maria Lovani, é um dos onze filhos do casal Romilda e Aldino. Estudou até a 4.ª série na Escola Particular São José, em Santa Clara do Sul, mantida pela Congregação das Irmãs da Divina Providência. Neste estabelecimento, atualmente, localiza-se a Escola Municipal de Educação Infantil, na qual fui professora e diretora nos anos 1996-2000 e 2002-2003, respectivamente.

Minha mãe conta que apesar de ser motivo de gozação entre os colegas por causa das roupas, da merenda - o que denunciava sua condição econômica - era muito valorizada pelos professores pois escrevia muito bem, o que lhe dava também prêmios, como cadernos, lápis de cor, que ela dividia com seus 10 irmãos. Estudou mais 2 anos no antigo Ginásio e, por dificuldades financeiras, deixou de freqüentar a escola.

Escolas públicas eram raras no interior do município de Lajeado. Nessas localidades, em sua maioria constituída de pessoas de origem alemã, era a própria comunidade que construía e mantinha a escola, visto que o governo ainda não conseguia assegurar escola para filhos das comunidades teuto-brasileiras. Mas
“(...) decididas a não abrirem mão do passado cultural e religioso, as comunidades puseram mãos a obra, antes que fosse tarde. Muniram-se de todos os recursos disponíveis para prevenirem a ameaça de uma ruptura cultural eminente. E o meio que lhes pareceu mais eficaz, encontraram-na na própria bagagem cultural trazida de além do oceano: a escola”. (RAMBO, 1994, p. 14)
Evidencia-se, assim, a importância político-histórico dada à escola primária.

Nem sempre o Ensino Fundamental foi compreendido como um direito, sendo obrigatório e gratuito.

“A escola primária, enquanto forma de socialização privilegiada e lugar de passagem obrigatória para as crianças das classes populares, é uma instituição recente cujas bases administrativas e legislativas contam com um pouco mais de um século de existência”. (VARELA, 1992, p. 62)

Naquela localidade do interior do município de Cruzeiro do Sul ter acesso à escola era privilégio que poucos tinham. Como manter os filhos na escola quando a maioria das famílias eram pequenos agricultores que tinham dificuldades financeiras? Talvez isso seja um dos motivos da descontinuidade dos estudos da maioria das pessoas que viviam na região naquela época. Para pagar as mensalidades, meu avô paterno, por exemplo, quando a colheita não rendia o esperado, realizava serviços para as freiras, como arar a horta, ou trocava as mensalidades por produtos coloniais, como carne, hortaliças, leite, etc.

Uma das maneiras encontradas para continuar os estudos era estudar nas instituições de formação para a vida religiosa, que foi o caso de todos os meus tios que continuaram os estudos. Porém, só um deles seguiu a vida religiosa, e é o único que tem Doutorado.

Minha mãe, além da lida na agricultura, era uma pessoa muito ativa na comunidade. Além da liturgia na Igreja (a escolinha se transformava em Igreja nos finais de semana), havia o Clube de Mães e o Clube de Bolão. Além disso, na comunidade ela sempre era chamada para fazer curativos, aplicar injeções - apesar de não ter formação nenhuma para isso. Enfim, ela era uma enfermeira da comunidade, assim como meu avô era um veterinário da comunidade. Poderia a escolarização ter influenciado suas vidas, suas profissões?

Meus pais foram os grandes educadores dos valores da vida: justiça, igualdade, solidariedade. Até com os animais não podia haver injustiça: se um cachorro ganhava comida, outro tinha que ganhar também. Lembro-me dos meus pais ajudando um andarilho da comunidade, ou ainda protegendo e defendendo um rapaz portador de necessidades especiais mentais que servia de chacota para os outros rapazes da comunidade.

Meus pais se conheceram na década de 70, sem participação nas mudanças ocorridas nesta época no País. Conta meu pai que a época da Ditadura foi um excelente período para os agricultores, e que eles conseguiram adquirir muitas coisas nesta época com o dinheiro e a renda das colheitas e do leite. Vendo desta forma, percebe-se que as mortes, as perseguições políticas não eram preocupações destas pessoas, e talvez não fossem sentidas por esta comunidade do interior. Lá a preocupação era com o trabalho para a sobrevivência de cada dia. Talvez isso explique minha tardia preocupação e compreensão por temas sócio-políticos.

Minha infância

Em 1975 eu nasci. Ao falar de mim e no relembrar de minha trajetória percebo que as vivências e imagens da infância influenciaram meu jeito de ser, fazer e pensar educação. Vivi o tempo de criança e adolescente no município de Santa Clara do Sul, interior do Estado. Brincava nas matas, me banhava nos córregos, nos tapetes de água feitos pela chuva nos potreiros, construía “casinhas” nas árvores, ajudava no cuidado com os animais domésticos e na limpeza da casa. Livros? Só depois de entrar na escola. Não faltavam histórias fantásticas contadas pelos meus pais e pela minha avó paterna, o que me fazia viajar por outros mundos, já que não tinha tempo, talvez nem vontade, de assistir TV. Enfim, tive uma infância “infantil”, feliz, com liberdade de expressão, com espaço em abundância e aprendi a conhecer aquilo que me rodeava.

Que sentido a escola teve em minha vida? O que me afetou enquanto estudante?

Chegada a época de ir pra escola, expectativas das mais diversas pululavam minhas emoções. Queria aprender, fazer muitos amigos, ter uma professora, brincar com mais crianças.
Mesmo morando na mesma localidade, diferentemente dos meus pais, eu estudei em Escola Pública. Entrei com 6 anos na 1.ª série em uma Escola Municipal multisseriada na qual não havia muitos alunos. Lembro da seriedade da professora de 1.ª e 2.ª séries, da professora simpática e querida da 3.ª e 4.ª séries, das brincadeiras do recreio, os namoricos, a horta, as limpezas do pátio. Nós mesmos preparávamos nossa merenda, muitas vezes, com as hortaliças que havíamos plantado. Lembro-me da pequena biblioteca da escola, que ficava junto da Secretaria, na qual raramente entrávamos. Sempre fui muito comportada e, apesar de não ter sido muito estudiosa, sempre passei bem de ano. Eu adorava estar na escola!

Como nesta escolinha tinha só até 4ª série, para continuar os estudos passei a estudar numa Escola Estadual em São Rafael, Cruzeiro do Sul /RS, que ficava há uns 6km da minha casa. Quando não chovia íamos de bicicleta, em grupo. Tenho presente a imagem da chegada desses amigos para juntos pedalarmos até a escola. Isso era uma festa!

Não guardei muitas memórias da aprendizagem escolar, talvez porque estivesse sempre muito ocupada em brincar, ou porque o que acontecia fora da sala de aula era mais significativo. Daí a questão que emerge é: pode a escola se constituir enquanto um espaço de aprendizagens significativas, sendo isso feito com alegria, com prazer?

Quando estava na 8ª série, aos 14 anos, já comecei a trabalhar numa fábrica de calçados durante o dia e ia para a aula à noite. Estudos? Pesquisas? Leituras? Nada muito além do exigido para as provas. Durante essa época eu li um livro que me encontrou na biblioteca da escola, do qual não lembro o título, mas que, em suma, dizia que se o ser humano não mudasse suas atitudes, teria o mesmo fim dos dinossauros: desapareceria do planeta terra. Outros dois livros também me marcaram: Feliz Ano Velho, de Marcelo Rubens Paiva e As Meninas da Praça da Alfândega, de Sérgio Caparelli.

No Ensino Médio passei a participar de um Grupo de Jovens. Além de ter um motivo para estarmos juntos, nós promovíamos debates, ensaiávamos teatro e músicas para a missa jovem, o que garantia Igreja cheia. Neste período, tendo acesso à revista Mundo Jovem, do qual o Grupo de Jovens tirava algumas reportagens para discutir, comecei a trocar correspondências com presidiários. Ainda tenho essas cartas guardadas.

No período de conclusão do então Segundo Grau, chegava a hora de decidir o que fazer da vida. A única certeza que tinha era de que eu não queria parar de estudar. Eu era mais uma dentre grande parte dos jovens que sofrem da falta de orientação quando concluem o Ensino Médio e não sabem o que fazer de suas vidas. Pensava em fazer psicologia na UFRGS, mas como me sustentar numa cidade como Porto Alegre se as aulas são durante o dia? E, além disso, a UFRGS era vista como um “bicho de sete cabeças” e eu não me sentia capaz de acessar a Universidade Pública. Cursinho não teria condições de fazer, então decidi continuar trabalhando e pagar meus estudos numa faculdade particular. Dentro das possibilidades que se apresentavam, decidi fazer o Curso de Letras, já que decidi, na época, ser professora de Inglês. Talvez porque gostasse de traduzir músicas do inglês para o português. Dentro do Curso de Letras, adorava inglês e literatura, no entanto sentia que algo faltava. Em 1996 fui nomeada recreacionista na Prefeitura de Santa Clara do Sul. Gostei tanto de trabalhar com crianças que decidi trocar Letras por Pedagogia. Como na época não tinha Pedagogia com ênfase em Educação Infantil, fiz Séries Iniciais.

A decisão pelo curso de Pedagogia surgiu com objetivo de qualificar meu trabalho com as crianças. Eu virava uma criança com minha turminha! Se até então a escola se consolidou essencialmente num espaço do estar junto e do conviver, na graduação, principalmente na Pedagogia, o estudo começou a se transformar, também, num espaço de reflexão. A fala dos professores, as discussões com colegas, as leituras, afetaram minha forma de ver e compreender o mundo, as pessoas. Naquele momento, dentro das possibilidades de tempo, comecei a ler mais, me interessar mais pelos estudos.

Para complemento da renda, cantava numa banda de bailes. Neste período, além de trabalhar 6 horas por dia, estudava a noite e nos finais de semana cantava numa banda de bailes. Mantive essa rotina por três anos, mas tive que optar. Esse gosto pela música se mostrou / mostra muito presente. Cantei em corais (infelizmente a falta de tempo nos obriga a deixar o lazer de lado) e além disso, para a conclusão do curso de pedagogia elaborei um projeto de educação musical. A música é um alimento para minha alma. E este envolvimento se deriva das vivências musicais dos meus pais e demais familiares. Acho importante destacar a origem desta influência da música na família. Meus avós paternos estudaram nessa mesma escola que meu pai estudou, porém o professor era outro. Contavam que professor, que tocava violino, cantava diariamente durante 30 minutos antes de começar a aula.

Numa entrevista que realizei com meu tio, filho mais velho do casal, no ano de 2003, Adriano nos conta:
“Eu me lembro de meus pais e meus avós (Pais do vô Reinado), à luz de querozene fazerem sessões de canto à noite, em casa, depois da janta, junto com alguns vizinhos, principalmente os de melhor voz, como os Schneider (Basílio e Asselo). Eu devia ter uns sete para oito anos. Se cantava a duas ou até três ou quatro vozes, tudo de "ouvido". Os cânticos e letras eram do velho cancioneiro saudosista e popular e de dor de cotovelo alemão anotadas a lápis nos SängerHeft, da Heimatland, em manuscrito gótico. Algumas, lembro, foram trazidas pelos imigrantes e transmitidas de geração em geração.”

Fico imaginando a sonoridade daquela casa nas silenciosas e frias noites de inverno, com vozes afinadas adultas e infantis, masculinas e femininas, misturadas aos sons da natureza, dos grilos, do vento, das corujas...

Adriano termina a entrevista dizendo:
“Tentei, apenas, resgatar um pouco do ambiente rústico mas sadio em que fomos criados - sem rádio nem a pilha ou bateria - que chegou bem mais tarde - sem piano, ou violão ou academia, mas onde os sons se gravaram nas nossas mentes e corações para sempre.”

Percebe-se que essas aulas de música dadas na escola na geração dos meus avós se transformaram em hábitos familiares que prevaleceram, e que deixam marcas de geração em geração.

No curso de Pedagogia tinha certeza de que sendo professora poderia ajudar a mudar o mundo. Pensava que pudesse “esculpir” a mente dos alunos, da mesma forma que fazia com tocos podres transformados em casinhas para brincar enquanto criança. Quando assistia algumas aulas no ensino fundamental eu enfatizava nos registros as atitudes dos professores que eu considerava “errôneas e ridículas” perante os alunos. Hoje, a partir de um lugar de docente, percebo o quanto fui injusta e imatura, pois estar em sala de aula apresenta grandes possibilidades, mas também erros e barreiras. Novas vivências vão construindo novas verdades. A cada época vivida, novas questões se colocam. A realidade acontece a cada época. As certezas de ontem não são as do amanhã. Hoje, no lugar de docente, compactuo com a idéia de que “...eu só levo a certeza de que muito pouco eu sei, eu nada sei...” (Amir Satter e Renato Teixeira)

Um dos trabalhos mais significativos da graduação foi realizado numa disciplina de Sociologia da Educação, onde o grupo do qual eu era integrante pesquisou o processo de escolarização dentro do Presídio Estadual de Lajeado. Fomos ouvintes e professoras das aulas neste estabelecimento. Quais são os cuidados que essa instituição tem no processo de humanização das pessoas privadas da sua liberdade? O que espera um presidiário da continuidade dos estudos? As observações e os relatos apontaram um grande número de analfabetos ou com pouca escolaridade e, quase que unanimemente, afirmavam que estudavam com a esperança de “conseguir emprego decente depois que saíssem dali”.

Depois me convidaram para trabalhar na Prefeitura, e atraída por um salário melhor (o meu anterior não era o suficiente nem para a mensalidade), saí de um lugar em que estava muito feliz e fui trabalhar na Prefeitura, inicialmente em serviços administrativos e depois passei a atuar junto da Secretaria da Educação, como assessora pedagógica.

Enquanto assessora pedagógica – desde um lugar da gestão - pude perceber que nem todas as vontades são possíveis e nem todas as possibilidades são vontades. As vontades, para se tornarem realidade, dependem de projetos, de verbas, de orçamento, do comprometimento das pessoas envolvidas.

Algumas vezes senti que havia muita vontade de fazer mudanças, tanto por parte da Secretaria de Educação, da coordenação, quanto por parte da direção, mas na época, pensávamos, havia falta de verbas, resistência dos professores, falta de apoio da comunidade. Hoje, vendo de outro lugar, questiono: será que são realmente esses os limites que fazem com que uma necessidade, um sonho, não se concretize? Será que faltou qualificação para a equipe da gestão dar conta dessas demandas? Como a falta de envolvimento, a resistência, a falta de qualificação de uma equipe de gestão podem afetar o processo educativo?

Outras vezes, entendi que o cansaço, a falta de empatia por parte da Secretaria de Educação com o diretor de determinada escola ou o desânimo que inundava a coordenação, a direção, fazia com que o possível se tornasse impossível. Até que ponto as emoções são potencializadoras ou despotencializadoras da rede de relações, inclusive na gestão?

Durante o ano 2002 e parte de 2003 fui eleita diretora pela comunidade escolar da mesma Escola de Educação Infantil que trabalhei como recreacionista. Outra realidade, outros desafios, outro olhar, outro contexto. Nessa escola, a maioria das profissionais tinha formação de nível fundamental. Nessa época a educação infantil não era mais um espaço de “depósito” de crianças, mas um espaço para o cuidar e o educar. Nesse contexto, ficava a pergunta: Existe diferença entre educar e cuidar? Como discutir isso com as profissionais? Com os pais? Como dar conta de um projeto político-pedagógico construído coletivamente?

Quando os pais procuravam a direção para alguma reclamação, esta era normalmente relacionada com o bem-estar do seu filho. As preocupações eram do tipo: “Não sei o que está acontecendo, mas meu filho não quer mais vir pra escola”. Era o prazer que estava faltando! O prazer, peça fundamental no quebra-cabeça que forma o cuidado com a vida, com a infância. Como melhorar o ambiente de trabalho, torná-lo um lugar agradável de estar? Emergem emoções nem sempre fáceis de gerir. Cada professor, cada aluno, cada funcionário, com seus medos, suas aflições, suas carências, suas esperanças, paixões, constituem as partes de um todo, que é a Instituição. Afinal, que emoções, intentam, movem e afetam o olhar e o fazer de cada um?

As dificuldades do dia-a-dia da escola me impulsionaram a repensar minha prática como gestora e observar minha forma de “cuidar das professoras”. Conversas, cobranças, elogios e observações sobre o trabalho docente passaram a fazer parte do cotidiano. Com o tempo pude sentir pequenas mudanças no contexto daquela escola. Os professores pareciam um pouco mais satisfeitos, mais compromissados e, conseqüentemente, essa melhoria se manifestava nos rostos e sorrisos das crianças.

Em meados de 2003 vim morar em Porto Alegre. Depois de um ano fui nomeada professora de séries iniciais no município de Gravataí. Hoje, olhando e vivendo a escola, percebo, assim como destaca Bedin (2004) o turbilhão que a constitui. Percebo que, apesar das limitações da escola, ela é um espaço onde fervilham sentimentos de amizade, alegria, prazer, amor, compaixão, solidariedade, paciência, respeito, cuidado, descobertas.

Com essas experiências passei a perceber que as emoções vividas pelos sujeitos envolvidos numa escola tencionam o seu fazer, o seu pensar, sua disposição. Percebe-se, daí, a importância da comunidade escolar sentir-se parte integrante e importante de uma equipe, onde a escola seja um lugar de prazer, apesar das tensões e dos conflitos, onde as partes construam um todo fortalecido. Concordo com Bedin (2004) quando diz que a escola é uma teia tecida pelas relações dos sujeitos que a configuram.

Um grande desafio que percebo é a falta de tempo para encontros pedagógicos, e, quando estes acontecem, a falta de interesse de alguns para a construção coletiva da escola. Percebo que, muitas vezes, cada professor realiza seu trabalho de forma isolada, fragmentada, sem interconexão com os outros. Parafraseando Bedin (2004), acredito que assim como os frutos, as idéias precisam de tempo para amadurecer e ganhar sabor. E como amadurecer idéias num espaço fragmentado, onde não há disposição e tempo para pensar, construir, elaborar, saborear idéias de forma coletiva? Espera-se que as idéias sejam aplicadas, mas como fazê-lo se não são construídas, degustadas, saboreadas?

Dialogar com a educação é dialogar com a incerteza. Há leis a cumprir, há leis a criar, há políticas públicas sendo elaboradas, pensadas e aplicadas, mas nada determina seu fim. Sempre pode haver pedras no caminho que podem mudar o rumo das coisas. Compactuando com essa idéia, peço permissão ao nosso músico Toquinho para parafrasear sua música “Aquarela” como metáfora para a gestão em educação: a gestão é uma astronave que tentamos pilotar; não tem tempo, nem tem hora pra chegar; ninguém sabe onde vai dar; e depois nos convida a rir ou chorar.

A construção de caminhos que façam da escola um lugar favorável às aprendizagens implica, necessariamente, no diálogo permanente entre os tantos envolvidos na escola, enquanto instituição de ensino. Pode ser este um caminho para superar os limites colocados pelas políticas definidas a partir da Secretaria de Educação. Assim, podemos repensar os tantos pensares e fazeres que estão presentes na escola. Mas como fazer garantir que esse ENCONTRO aconteça se a escola não têm asseguradas as condições para ele? Como promover a autonomia que tantas vezes se diz que as escolas possuem, mas que na prática, é tão limitada?

Curso de Especialização em Gestão da Educação

Participar desse curso que está “provocando” meus conceitos, incitando para realizar novos estudos. Este curso está fazendo com que eu questione minha prática. Ainda não encontrei um novo caminho, uma nova forma de dar aula, mas estou tentando. Creio que uma das coisas que já estou conseguindo fazer, desde o lugar de docente, é a de não dar as coisas como verdades, mas como uma das possibilidades de compreensão, e também questionando as “certezas” estabelecidas, o que tem deixado muitas vezes os alunos bem incomodados, pois acham que “professor sabe tudo”.


O que tem me mobilizado ao participar desse curso de Especialização, é buscar compreender a evolução histórica das políticas de gestão escolar e suas implicações no cotidiano da escola, nos processos de gestão e construção coletiva da Escola. Espero pensar e observar essas questões com um olhar despido das viseiras condicionantes de um dever-ser (Bedin, 2004), para ver as coisas como elas são. Um olhar que compreenda, sem julgamentos. Afinal, sou filha da Escola Pública e atualmente professora de Escola Pública, portanto acredito nas potencialidades e possibilidades da Escola Pública e entendo que é necessário dar um novo sentido para a escola, na perspectiva dessa ser um espaço de valorização da vida e de humanização das relações.
Após a escrita deste memorial, momento em que revolvi as lembranças que minha memória permitiu, fica a questão: que memórias, enquanto professora e educadora, estou deixando em meus alunos?

Referências bibliográficas
BEDIN, Sílvio Antônio. Escola: da magia da criação as éticas que sustentam a escola pública. Tese (doutorado) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Faculdade de Educação. Programa de Pós-Graduação em Educação,Porto Alegre, BR-RS, 2004.
CALEFFI, Paula. Educação Autóctone nos séculos XVI ao XVIII ou Américo Vespúcio tinha razão?. In: Histórias e Memórias da Educação no Brasil, vol. 1 : Séculos XVI – XVIII / Maria Stephanou, Maria Helena Camara Bastos (organizadoras). – Petrópolis, RJ : Vozes, 2004.
Caminhadas de Universitários de Origem Popular: UFRGS / Alexsander Lourense Webber ... [ et al.]. – Rio de Janeiro : UFRJ, Pró Reitoria de Extensão, 2006. 184 p. – (Coleção Caminhadas de Universitários de Origem Popular).
RAMBO, Arthur Blasio. A escola comunitária teuto-brasileira católica – São Leopoldo: Ed. Unisinos, 1994
ROCHA, Ruth. Sapo-vira-rei-vira-sapo: a volta do reizinho mandão. Ilustrações de Walter Ono. – Rio de Janeiro: Salamandra, 1983
VARELA, Julia, Alvarez-Uria, Fernando. A maquinaria Escolar. In Teoria e Educação. Dossiê: História da Educação. Pannonica, 1992

Outras fontes:
CD de Maria Bethânia: A intérprete, música Tocando em frente, letra de Almir Satter e Renato Teixeira.

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