Memorial de Dalva Jorginha Balz Bender

MEMORIAL FORMATIVO

UM CORPO, UM NOME, UMA MULHER..., PROFESSORA:
“garimpando” trajetórias pregressas de uma aprendiz na arte de educar



Trabalho do Módulo I – Matriciamentos da Formação Docente do Curso de Especialização em Educação Profissional Técnica de Nível Médio Integrada ao Ensino Médio na Modalidade Educação de Jovens e Adultos - UFRGS.

O CORPO E AS PALAVRAS
Entre o dito e o não dito
[2004]

O corpo!
Texto vivo, palpável, sensível...
Encharcado pelo grande espetáculo visível!
Na inquietude se insere, se inscreve, se mescla.
Tudo vê, tudo percebe, tudo atesta...

O corpo!
Palavra, linguagem, conversa singular...
São cicatrizes no rosto, suplícios nos gestos, confissões no olhar!
Corpo dominado, silenciado, falado e falante...
Que secreto, subjetivo e místico,
na concretude e na visibilidade, se mostra a todo instante.

O corpo!
Está sempre sendo, sempre dizendo...
Dizendo mais do que ele sabe dizer...
Sempre querendo, querendo saber, querendo querer...

O corpo!
Que sonega a calma e desvenda a alma...
Procura pela beleza das coisas...
Das coisas ditas e não ditas
E, por isso, mais e mais bonitas...
Coisas não feitas.
Insatisfeitas.
Sofridas...
Queridas...
Coisas nossas,
só nossas...

Atraente e confidente...
O corpo não! Nunca mente, apenas sente...
É sublime e nada reprime...
Porquanto exprime,
o incontido desejo de querer...
de querer, simplesmente, SER!

RESUMO
Escrever sobre si é muito mais do que elencar fragmentos de uma trajetória pregressa. É recompor e reavivar, com um efeito particular, o conjunto de lembranças impregnado não apenas na memória, mas, no texto corporal em sua totalidade. É, especialmente, afiançar a singularidade do processo de formação profissional e recuperar, na reflexão das recônditas verdades sobre si mesmo, submergidas no tempo e no espaço, o sentido e o significado de escolhas feitas. Ao rememorar os caminhos oscilantes e estimulantes do processo histórico do “como” e “quando” me tornei corpo-professora, recorro ao amparo da imagem fotográfica que, associada ao meu “corpo inscrito e escrito”, se traduz numa narrativa contextualizada. Na experiência desse encontro, me (re) conheço, me divulgo. São memórias, valores, idéias, escolhas, tradições e comportamentos que contribuíram e ainda contribuem na construção-formação contínua do ser corpo-professora. A escrita do memorial, como metodologia formativa, textualiza crítica e reflexivamente um tempo vivido e, neste sentido, percorrer o eu em formação é fonte de sabedoria. Sabedoria sobre o meu corpo-sujeito histórico, sobre o entrelaçamento com e entre outros corpos-sujeitos (fontes de motivação), sobre os lugares, os tempos e os espaços, constituintes da identidade, suscitando, talvez, que esses saberes e (re)conhecimentos forneçam os elementos fundantes para a vinculação de novos conhecimentos, novas emoções-ações no contínuo exercício do sentir e do fazer cotidiano da arte de educar, educando-me.
Palavras-chave: corpos, narrativas, fotografias.
SUMÁRIO

1 Apresentação
1.1 O Corpo Como Texto Inscrito e Escrito: “nossa ancoragem no mundo”
1.2 A Memória e a Fotografia Como Instrumento Histórico
1.2.1 A Fotografia: uma janela de imagens
1.3 A Narrativa: o ser que conta de si
2. Trajetórias, Marcas e Saberes: “ancoradouros” dos 44 anos de uma vida
2.1 Um Corpo, Um Nome...Muitas Histórias
2.2 Primeiro “Ancoradouro”: Vila Manchinha, Três de Maio – RS (1962-2001)
2.2.1 A infância entre as brincadeiras, a escola e o trabalho: o corpo menina que constitui o corpo-trabalhador
2.3 Como Me Torno Corpo-Professora
2.3.1 A escolha pelo curso: Educação Física
2.3.2 Academia de Ginástica Cia do Corpo: uma experiência vivida e compartilhada
2.4 Segundo “Ancoradouro”: Igrejinha – RS, A História aos Pés das Montanhas (2001-2004)
2.5 Terceiro “Ancoradouro”: São Leopoldo – RS (2004)
2.6 Compartilhando Saberes com Professores da Educação de Jovens e Adultos –EJA: a mais recente inscrição corporal
O que Conta no Final é o que Fica Impregnado em Nosso “Texto-Corporal” e, Tudo Fica
Referências Bibliográficas

1 APRESENTAÇÃO

1.1 O CORPO COMO TEXTO INSCRITO E ESCRITO: “NOSSA ANCORAGEM EM UM MUNDO”[1]
O corpo que fala, também cala.
O corpo que chora, implora.
O corpo que cria, às vezes, silencia.
Porém, o corpo que sente e pressente, nunca mente.
O corpo sempre sendo,
é o passado mesclado no presente.
(BENDER, 2004, p.90)

Nas narrativas sobre si, o corpo, como texto histórico, torna-se o grande interlocutor da experiência viva e vivida e, conseqüentemente, de sua inserção no mundo como natureza, história e cultura. Paulo Freire já dizia que nossos corpos estão “empapados” de representações, de símbolos e das histórias que viveram. Assim, com todo o cuidado que as metáforas exigem, podemos designar o corpo como uma espécie de albergue que tudo hospeda, abriga, guarda e registra e, que, simultaneamente, manifesta nesse somatório, suas expressões visíveis e óbvias, porém, nem sempre. Há, também, os aspectos encobertos, invisíveis, obscuros e negligenciados, mas aí, no corpo, existentes. Nossas histórias são assim, escritas, reescritas e expressas a cada instante pelo novo tempo e lugar, pelas pessoas e pela sociedade na qual vivemos e convivemos, sem deixar, contudo, de agregar lembranças e ensinamentos de um espaço-tempo vivido e que permanecem impregnadas em nosso texto corporal. Assim, o corpo vivo (ou ainda que não esteja), como narrativa em movimento, está sempre falando, sempre dizendo e expressando. Em sua visibilidade concreta se apresenta como registro, como texto escrito e “tatuado[2]”, e como tal, há nele e com ele a possibilidade de leituras, diálogos, conversações e múltiplas interpretações.

Para Henri-Pierre Jeudy (2002, p. 83), a pele parece ser um dos meios primordiais de representação: “A pele, invólucro do corpo, aparece como uma superfície com textura singular, as variantes de sua cor, e como um conjunto de fragmentos que se casam bem com as diferentes formas do corpo”. Jeudy, com base em Didier Anzieu, assim escreve as funções do tecido epitelial:

O eu-pele encontra seu apoio em três funções da pele. A pele, primeira função, é a bolsa que guarda no seu interior o bom e o pleno que a amamentação, os cuidados e o banho de palavras acumularam. A pele, segunda função, é a superfície que marca o limite com o de fora e o contém no exterior; é a barreira que protege da avidez e das agressões que provêm dos outros, seres ou objetos. A pele, enfim, terceira função, ao mesmo tempo que a boca, e pelo menos tanto quanto ela, é um lugar e um meio primário de troca com os demais. (JEUDY, 2002, p.83) [grifo meu]

Contudo, Jeudy argumenta que a pele continua a ser apenas a superfície. Ainda que rompêssemos a sua camada superficial, tão pouco teríamos uma vista ampliada do que há por detrás dela, pois ela é apenas intermediária entre o fora e o dentro (id. p.84). Talvez, seja necessário, perceber a pele para além do invólucro do corpo. E, nesse caso, como superfície viva, que tem cores, aroma, que tocando, toca, é visível e sensível para si mesma e, na reciprocidade para os outros. Inscreve-se e escreve-se, indo ainda mais além. Ela, a pele, que escreve sozinha ao longo do tempo, nos trai quando não nos esconde nada. Para Jeudy (20o2), a pele já é escrita. “Seus traços, suas marcas, suas cicatrizes, suas rugas, tanto são sinais visíveis e palpáveis que revelam toda ambigüidade da apercepção do corpo” (2002, p.85).

N’outro dia, Rubem Alves (2003), “conversando[3]” sobre os corpos e a educação, nos falava de uma outra metáfora: conceituou o nosso corpo como um “palimpsesto[4]”, dizendo que há muitas coisas escondidas nele e o que nos move é exatamente esta escritura esquecida dentro dele. Para Alves, não somos “um corpo”, mas, sim, vários corpos encobertos dentro de um. Diz ainda, que: “o corpo está à procura da beleza das coisas perdidas”. Talvez, esteja aí, uma das justificativas em recuperar nossas memórias formativas. Assim, não só concordo com o autor, como afirmo que, ao me propor a compreender reflexivamente trajetórias pregressas da minha vida pessoal, eu esteja “me procurando”, confirmando em mim mesma, que trazemos em nossos corpos pontos de vistas que remontam à cultura, educação, crenças, relações, história... Com isso, quero dizer que, ininterruptamente, nos construímos e nos formamos enquanto corpos-sujeitos e, cada qual têm a sua própria maneira de “anotar”, manifestar ou encobrir as “coisas” do mundo e com o mundo.

Se cada um de nós, como um “palimpsesto”, usando a expressão de Alves (2002), possui a sua própria maneira de “registrar” as coisas, talvez seja interessante analisar, na escrita sobre si, as trajetórias individuais e singulares que permearam os caminhos da constituição e formação profissional e, na reflexão sobre as recônditas verdades, submergidas no tempo e no espaço, agregar sentido e o significado nas escolhas outrora feitas. Neste exercício, ao rememorar os caminhos oscilantes e estimulantes do processo histórico do “como” e “quando” me tornei corpo-professora (será que me tornei? Ou estou me tornando...), contando ainda, com o auxílio da imagem fotográfica associada ao meu “livro de carne” e as narrativas que delas emergem, aposto na experiência do encontro desse triângulo: corpo, imagem e narrativa – para, então reavivar as memórias, os valores, as idéias, as escolhas, as tradições e os comportamentos que contribuíram e ainda contribuem na construção-formação contínua do ser corpo-professora.

E ainda, a escrita do memorial, como recurso formativo, confirma e textualiza um tempo vivido onde, nele me (re)conheço e me divulgo elucidando as trajetórias, as representações históricas e culturais que me levaram ao encontro da escolha profissional. Neste sentido, a escrita do eu em formação é fonte “phronesiana” de sabedoria. Sabedoria sobre o meu corpo-sujeito histórico, sobre o entrelaçamento com e entre os outros corpos-sujeitos, sobre os lugares, tempos e espaços de formação e, suscitando, talvez, que, na reflexão sobre esses saberes e (re)conhecimentos forneçam os elementos necessários para a vinculação de novos comportamentos, novas motivações no contínuo exercício do sentir e do fazer cotidiano da arte de educar, educando-se.

1.2 A MEMÓRIA E A FOTOGRAFIA COMO INSTRUMENTO HISTÓRICO
O por quê das imagens fotográficas?
Bisbilhotar álbuns fotográficos, mexer em caixas e gavetas, procurar figuras, interrogar os outros sobre os registros escolares, se traduz num exercício de procura que inquieta. As imagens fotográficas instigam, emocionam, impressionam, incomodam, enfim, imprimem em nosso ser corpóreo sentimentos e movimentos diferentes. Uma simples olhadela nas fotos já nos remete às narrativas, às memórias, aos fatos ocorridos e aos resultados. Remete aos olhares aguçados sobre as aparências visuais provocadas pela passagem cronológica do tempo e, também sobre as mudanças provocadas no enfrentamento das diferentes e múltiplas situações da vida cotidiana.

O uso da imagem fotográfica, como um recurso pedagógico supõe, inicialmente, aguçar as nossas sensibilidades. Através das leituras das imagens, em que se ressalta que esse “olhar” em especial, não se traduz apenas em enxergar, pois ele vai além. Esse “olhar” remete a uma condição provocativa e singular diante da(s) figuras(s). Ao contemplar as imagens como um recurso metodológico, utilizamos o objeto fotográfico como parte de uma história, constituindo ele próprio um princípio de memória. Em Maria Ciavatta (2002) “[...] As fotografias são como monumentos que traduzem valores, idéias, tradições e comportamentos que contribuem para a identidade familiar e orientam formas de ser e agir” (p. 34-35). Como testemunho visual das aparências, como informação e como fonte de recordação e de emoção, a imagem fotográfica associa-se à memória e introduz uma nova dimensão no conhecimento histórico, atuando como legitimação da lembrança familiar, escolar e social, obtida tradicionalmente, pela linguagem oral e, principalmente pela escrita. (id. p.36)

Desta forma, a imagem fotográfica permite a articulação e compreensão fazendo uma ponte entre o registro denso do passado e o presente, com uma dimensão que lhe inerente, o futuro. Para Ciavatta a memória é fragmentada, e o sentido de identidade do indivíduo depende, em parte, da organização ampliada desses pequenos fragmentos. A fotografia, nesse caso, auxilia como um instrumento básico na organização desses fragmentos. Tanto a memória como as imagens fotográficas contribuem para situar o indivíduo no tempo presente, suas motivações e o significado de suas ações dentro das conjunturas de vida, na sucessão das etapas de sua trajetória.(id.)

Mais do que outras formas comunicacionais, a fotografia permite ressuscitar e recompor. Associada a sua interpretação oral, tem o privilégio de reavivar, com particular eficácia, o “caderno” de lembranças enterrado nas nossas memórias. Ao ressuscitarem essas lembranças, tanto a fotografia quanto a história oral nos levam a refletir sobre esse passado a partir de outros horizontes vivenciais adquiridos: o que vivemos, o que aprendemos. Em resumo: a nossa história individual e coletiva.

1.2.1 A Fotografia: uma janela de imagens

Nas sociedades contemporâneas, tidas como individualistas, a noção de biografia é fundamental. A trajetória do indivíduo, o corpo vivido como elemento constituinte da sociedade, possui um significado crucial, e a reconstrução da memória do indivíduo torna-se socialmente relevante. Sebastião Salgado (2003), um dos maiores fotógrafos do Brasil e reconhecido em todo mundo, trabalha com a “fotografia engajada[5]” e traduz essa técnica como sendo “uma janela pela qual podemos deixar entrar em nossas vidas as imagens de um mundo [...]” (id., p. 14). Adianta que, esse mundo não necessariamente precisa ser o mundo atual. O mais importante, nesse caso, é gerar diante da contemplação uma reação: “olhar, e não apenas enxergar”, argumenta o autor (ib., p. 13).

Contudo, alguém poderia dizer: como fotografar o tempo vivo, a vida dinâmica, o enredo que não é fotografável? Para tentar ameninar problemas dessa ordem, Ana Maria Mauad (1996) argumenta que, há a necessidade do estudo da cultura de uma determinada época, o estudo das dimensões simbólicas das diversas práticas cotidianas, o papel da ideologia na composição de imagens socialmente produzidas. Nesse caso, a fotografia é considerada como testemunho: atesta a existência de uma realidade, atesta as convenções, as opções culturais historicamente realizadas.

Tomando como base, a composição de um memorial formativo, ensejo, neste trabalho que, o uso da fotografia possa acender a reflexividade no debate sobre como, ao longo da minha história pessoal e profissional, fui sendo construída corpo-professora. Talvez, o uso das imagens fotográficas possa permitir a “presentificação do passado” e possibilitar um olhar sobre o contexto, sobre o mundo que me “abraçou” e que ainda “abraça” para que eu possa registrar e entender diferenças e ou semelhanças culturais, rupturas e continuidades sem fechar os olhos para aquilo que me cerca nos dias de hoje. Apesar disso, entre quem olha e a imagem, existem outros sentidos que devem ser avaliados. Para que o uso da imagem fotográfica se efetue como um processo educativo – educação pelo olhar – e para que contribua para a vinculação de novas reflexões e comportamentos, sugiro uma análise ultrapassando o senso comum e, nessa direção, agregando sentido e significado na sucessão das etapas da minha trajetória.

1.3 A NARRATIVA: O SER QUE CONTA DE SI

Escrever sobre si é “[...] ver-se e o ouvir-se” (LARROSA, apud Silveira e Souza s/d p. 203).

[...] cada pessoa encontra-se já imersa em estruturas narrativas que lhe preexistem e em função das quais constrói e organiza de um modo particular sua experiência, impõe-lhe um significado. [...] as histórias pessoais que nos constituem estão produzidas e mediadas no interior de determinadas práticas sociais mais ou menos institucionalizadas; um confessionário, um tribunal, uma escola, um grupo de terapia, uma relação amorosa, uma reunião familiar, etc... (id., p. 203-204)

A interpretação de si é dinâmica. Constrói e reconstrói possibilidades na relação com as histórias narradas e na problematização dos sentidos estabelecidos nessa trajetória. Dessa forma, a identidade – “quem sou eu” é algo que está sendo aprendida e modificada na conversação de narrativas que é a vida e na relação das e com as pessoas com as quais me relaciono (id., p. 206).

2. TRAJETÓRIAS, MARCAS E SABERES: “ANCORADOUROS” DE 44 ANOS DE UMA VIDA

2.1 UM CORPO, UM NOME... MUITAS HISTÓRIAS


“Não sou eu que me navega quem me navega é o mar.”
(Timoneiro: Paulinho da Viola e Hermínio Bello de Carvalho)

Porém, como dizia o “mestre dos mares da educação”, Paulo Freire:

A prática de velejar coloca a necessidade de saberes fundantes como o do domínio do barco, das partes que compõem e da função de cada uma delas, como conhecimento dos ventos e as velas, a posição das velas, o papel do motor e da combinação entre motor e velas. Na prática de velejar se confirmam, se modificam ou se ampliam esses saberes.(1996, p. 24)

Ao recuperar via memória, aguçada pela contemplação fotográfica, mais os “registros impressos na carne” desejo anunciar que, nesse mar de inúmeros ancoradouros, não sou uma mera convidada, nem uma simples articuladora de conversas alheias, como diz Mário Osório Marques (2001), sou antes de tudo, a responsável primeira pela minha escrita, isso porque não estou apenas inserida no texto, mas, sou o próprio texto. Para o autor este é um exercício primordial, não se pode “conversar produtivamente com os outros, sem antes muito e o tempo todo conversar consigo mesmo” (2001, p. 99). Portanto, a exigência primeira nesta aventura de me constituir corpo-professora é, também, trazer, entre outras histórias, a minha. É me mostrar por inteiro e me expor. Não só dispensar a formalidade que engessa e esconde, mas também abrir as janelas do meu viver e conviver, “para dentro e para fora”.

Assim, sou meu próprio corpo enleado por outros corpos. Normalmente atendo por Dalva, mas meu corpo também se move em outras vozes e direções: são vozes que o chamam de filha, mana, tia, dinda, mulher, mãe, professora, entre outros codinomes poéticos como, por exemplo, querida, amada... (*). Apresento-me, porém, sem pressa. E antes de encompridar nossa conversa, preciso salientar que a minha opção pela narrativa tem uma singular emoção-razão: a magia da escrita de si não está somente nas palavras, mas sim no encanto do gesto e na inter-relação dos sentidos humanos: A relação com o outro...Sim, o outro! Por que sei que neste momento, na inteireza do meu ser, estou encharcada de sentimento e quando um possível leitor ou leitora, estiver aí “de frente para o texto”, talvez, esteja igualmente impregnado pelo olhar curioso e reflexivo... Talvez... Por certo, isso nos põem mais próximos ainda, mais confiantes e informais. Acredito na reciprocidade humana e, o resultado disso, eu espero, é um entrelaçamento de emoções e linguagem que é comum ao gênero humano e que faz com que, mesmo à distância, possamos estar embrenhados no entrelaçamento das conversações.

Bem, como estamos juntos a “velejar”, não há, também a menor possibilidade de escrever sem pensar nesse outro que me acompanha na narrativa e, tomo a liberdade de escolher o tema que, aliás, nos inclui: desejo falar sobre trajetórias profissionais, sobre mudanças e boas lembranças! Peço licença para começar, respeitando, sobretudo o (seu) tempo, o (seu) espaço, pois cada um de nós é único em sua sensibilidade, historicidade e poesia...

2.2 PRIMEIRO ANCORADOURO: VILA MANCHINHA, TRÊS DE MAIO – RS (1962-2001)

Estou neste espaço-tempo há mais ou menos 44 anos, porque, em algum momento, no passado, Albino Balz (já falecido) e Mathilde Phfitcher Balz (fig. 03), meu Pai e minha Mãe, deixaram a emoção falar mais alto e autorizaram a embriogênese e, por conseguinte, o meu nascimento. Neste percurso me auxiliaram e me auxiliam a construir o meu eu, quem fui e quem “estou sendo[6]”.

Sou a caçula de quatro irmãos: José Bernardo, João Jorge, Ana Teresinha e, eu Dalva Jorginha... Sim, Jorginha! O que meu corpo tem a ver com meu nome? Nome inusitado e, por sinal incomum. Nasci no inverno de agosto de 1962, no dia 24. Segundo a minha Mãe, um dos invernos mais rigorosos da época, cuja neve no sul do Brasil se mostrava em belezas e agruras. Nasci frágil, com pouco peso: 1,6kg. Distante e desprovida de recursos mais sofisticados para atender a complexidade da situação[7], Dona Mathilde (Mãe), que fora aluna de colégio interno e professora muito antes da maternidade, pôs a sua crença e devoção religiosa a serviço da ciência e, “me entrega” a São Jorge para que “ele” cuide mim. Nesse caso, há um fenômeno a ser decifrado: seria ele um fenômeno biológico natural ou, um fenômeno espiritual ou, ainda as duas formas? Bem, o que posso afirmar que o nome do santo acompanha o meu registro de nascimento. Tenho sobre essa primeira relação de crenças, hábitos, fé e religiosidade na minha vida cotidiana, um profundo respeito e um sentimento de gratidão e cumplicidade. Apesar de, na época, ser corriqueiro utilizar nomes de santos e santas, a família, como instituição social e produtora de sentido e significado, auxilia a construir a nossa identidade e a cultura. “O nome é a marca simbólica que simultaneamente que nos identifica, também nos diferencia”, comentam Silveira e Souza (s/d, p. 210-211)

Nasci na Vila..., Vila Manchinha. Lugarejo situado na zona rural, à 15km do município de Três de Maio que fica na região noroeste no Estado do Rio Grande do Sul. Três de Maio, também reconhecida nacionalmente como “Cidade Canção[8]” que, nos dias atuais, “abriga” cerca de 23.000 habitantes, faz parte do conjunto de cidades da grande região missioneira.

Recuperar a profundidade da vida cotidiana desse lugar e as insurgências do vivido é “garimpar” na infância, que se constitui na ponta do iceberg de muitas de nossas escolhas hodiernas. Isso porque, as histórias se mesclam às imagens de tempos idos e, recuperar na memória o tempo e o lugar em que nascemos e vivemos boa parte das nossas vidas, é mergulhar na própria paisagem. Com beleza indecifrável, Vila Manchinha distrito de Três de Maio, é o lugar de terras férteis, de campos largos, mas, com divisórias estreitas[9]. Lá, onde o sol se põe lentamente no horizonte e, ainda longe, mostra-se visível, prolongando não apenas a luminosidade do dia, mas introduzindo a noite com as cores novas da esperança (fig. 05). A planície, para além do horizonte, mostra-se insaciável e convida à aventura balizada na liberdade e nas descobertas... Foi, assim, também, a minha infância.

2.2.1 A infância entre as brincadeiras, a escola e o trabalho: o corpo-menina que se constitui corpo-trabalhador

Narrar a subjetividade e a experiência humana, talvez exija de mim uma reflexão mais profunda sobre o tema trabalho. Não ao acaso, o subtítulo escolhido por mim traz à baila as trajetórias da minha experiência vivida e sentida como trabalhadora da zona rural, uma trabalhadora-da-terra.

Descendente de imigrantes alemães, filha de pequenos proprietários rurais que insistiam em permanecer em suas terras, retrata uma infância habitual para os que nascem filhos da terra. Os, apenas, 19 alqueires (herança dos antepassados), pareciam, para mim, então menina, uma imensidão, nas intermináveis capinas das carreiras de soja. Assim, minhas memórias não deslembram o trabalho com a terra. Nos anos 70, quando então, com oito anos, sob o sol escaldante do verão ou, então, sentindo o efeito das madrugadas de geada no inverno, já costumava lavorar a terra juntamente com a família e agregados. As capinas com base na enxada, os “colonos”, as “empreitadas”, entre outros, foram vocábulos comuns na minha infância. Anos de pleno trabalho (não de emprego) para muitos “agregados”, pois estávamos apenas no início da mecanização das lavouras. Lembro que, também ali, na ausência das atuais máquinas agrícolas que realizam (quase) todo o trabalho do homem da terra, envenenam o ar, os rios, as veias e as artérias com os pesticidas, entre as “carreiras de soja” ou “milho” e um contingente enorme de trabalhadores que empreitavam a limpeza da lavoura dos latifundiários, estávamos todos a cultivar o chão da terra juntamente com os nossos sonhos e esperanças. Dentre os muitos, havia também os que sonhavam em conquistar um “pedaço de chão” para, finalmente, deixarem de ser trabalhadores temporários ou “agregados” e serem proprietários de suas próprias terras. Mais tarde, especialmente nos anos 80 e 90, estes “sobrantes” da lavoura (e neles eu me incluo) vieram povoar a grande Região do Vale do Rio dos Sinos e Vale do Paranhana, na busca de outro sonho: “o sonho dourado”, isto quer dizer, o trabalho assalariado nas indústrias, especialmente nas indústrias calçadistas que proliferavam nos referidos Vales. (SCHNEIDER, 2004)

Porém, ainda que as lembranças e a escrita de si impossibilitem a certeza das coisas, pois nossa memória é fragmentada e a nossa compreensão sobre os fatos idos “desliza” sobre eles e não os tocam mais, acredito que ao refletir sobre o eu embebido de representações, de símbolos e de histórias que estão incrustadas em meu corpo-trabalhador, reflito criticamente sobre tudo aquilo que escuto, converso, analiso, recordo, aprendo e escrevo. O que eu quero dizer é que, desde pequena, fui ensinada a amar o trabalho e a respeitá-lo, valorizando-o. Acredito nessa dimensão como (ainda) um dos elementos centrais e identitários dos corpos-sujeitos nesse espaço-tempo-vida. Todavia, nos dias hoje, é preciso refletir e ponderar sobre qual a centralidade que interessa e, especialmente, a quem interessa. Mas falo do trabalho como produtor e transformador da vida humana, como sendo uma das formas de expressão, de inserção, de pôr em movimento nossas forças naturais e criativas, nosso corpo-sujeito. Entretanto, este tema exige análises mais profundas que remetem aos aspectos históricos, culturais e ideológicos que, talvez, não seja o propósito deste trabalho. Contudo, muitos são os legado que herdamos dos nossos antepassados. No meu caso, a importância dada ao trabalho é um deles. Também é possível que essa concepção seja fruto de uma cultura germânica que instiga ao trabalho e, muitas vezes, apenas ao trabalho.

Porém, nem tudo era “trabalho” em Vila Manchinha. Com exceção da minha mãe, que era habilidosa na costura e nos bordados, todos tendiam à musicalidade, isso porque, o pai, além de agricultor, era músico (baterista). Assim, todos nós: eu, minha irmã e meus dois irmãos herdamos e desenvolvemos (em parte) a musicalidade. Aos oito anos, com um violão maior que meu próprio corpo, já cantava e tocava, animando as datas especiais nos palcos da pequena escola da localidade. Mais tarde, no então, ensino de 1º Grau, já estudando na Escola Estadual Cardeal Pacelli e, sempre seguindo os passos dos meus irmãos mais velhos, participava entusiasticamente como uma “garota prodígio[10]” nos Festivais de Canção da região (fig. 06).

Irreverência e determinação também compunham minha personalidade. Dona de um trejeito independente e determinado (quiçá, frutos de uma educação responsável e autônoma) já, aos 14 anos, às avessas com meus pais, saio de casa do interior e passo a morar na cidade (Três de Maio). Neste período sou apresentada à “classe salarial” integrada ao mundo do trabalho e emprego, com novas nuance, hierarquias e poder. Assim, conheço a realidade do trabalho e da escola noturna e, por conseguinte, além do meu RG, passo a possuir a “carteira de trabalho” (fig, 07): o instrumento jurídico, comprovante do contrato de trabalho, “uma certidão de nascimento cívico” como traduz Santos, apud Franzoi (2006, p. 33). Vendia Discos (LPs) e gravava fitas (K7) numa loja de instrumentos musicais. Mas, também, cuidava do serviço da limpeza, do escritório...

Entretanto, as falas da ex-professora Mathilde (Mãe), que literalmente conduzia a família com “rédias curtas” ainda que à distância, já que meu pai padecia com a doença do alcoolismo, ecoavam em meus ouvidos e recomendavam insitentemente ao estudo e ao trabalho. Em momento algum, deixei de estudar e de sonhar, isso porque diante das dificuldades da vida interiorana, o estudo era o passaporte para uma vida melhor, pelo menos, era o que minha mãe sempre dizia... Aliás, sua voz mansa, mas, determinante e persuasiva, ouço-a ainda: “filha: nossa vida é um livro com páginas em branco, quem o escreve é cada um de nós, o lápis e caneta são as nossas ações”.

São essas as “marcas” e os saberes que martelam em nosso texto corporal e a forma como as experiências do passado encarnam e entrelaçam o presente. Experiências essas, formadoras de histórias, de sentido, de linguagens e significados que vão edificando e modelando, ao longo do tempo, a nossa história pessoal e a história de todas as gentes.

2.3 COMO ME TORNO CORPO -PROFESSORA?

Muitas são as singularidades que permeiam a minha constituição como corpo-professora. São interferências em nosso “constituir-se”, os múltiplos lugares, os sujeitos com seus muitos saberes que ensinam de múltiplas maneiras. Nilda Alves (2002, p. 119) questiona: “Como ‘incorporamos’ esses conhecimentos teóricos e práticos que nos fazem reconhecer, a nós mesmas e aos outros, como professoras?” (id.).
Segundo Tardif e Raymond (2000), as pesquisas dedicadas às histórias de vida de professores são relativamente recentes: remontam aos anos de 1980 e as que são dedicadas à socialização pré-profissional, datam somente de uma década. Esses estudos defendem a idéia de que a prática profissional dos professores põe em jogo saberes oriundos da socialização anterior à preparação formal para o ensino. Assim, a compreensividade necessária dessas trajetórias, o retorno ao passado, especialmente, utilizando o instrumento da fotografia, se traduz como uma verdadeira fenda por onde podemos bisbilhotar a nossa própria história. Estas janelas, como diria o renomado fotógrafo Sebastião Salgado (2003), quando “espiadas” de forma contemplativa e reflexiva, nos fazem perguntas: será que sou professora porque minha mãe foi? Porque minha irmã é? Ou, porque tive boas professoras? Ou, talvez, porque tive professoras más e, para que eu não fosse igual, me pus a ser diferente? Ou, ainda, porque minha infância está intimamente ligada à escola, pela proximidade física? Ou, porque não pude ser outra coisa a não ser professora? Perguntas, perguntas... Ainda para Tardif e Raymund (2000, p. 222), muitos professores, particularmente as mulheres, falam sobre sua escolha profissional a partir da origem familiar, seja porque vinham de uma família de professores, seja porque essa profissão era valorizada no meio em que viviam.

Desta forma, tendo como ponto de partida a imagem fotográfica e a narrativa que dela emerge, percebo que as escolhas determinantes na minha trajetória de formação, dentre elas, a opção pelo magistério, são construídas sob a base reflexiva de velhas trilhas e referendadas por antigos personagens, porém não só. Nesse caso, minha mãe é, sim, um corpo determinante, não apenas por ela ter sido professora, pois logo após o seu casamento com meu pai, abandonou o professorado para dedicar-se exclusivamente ao cultivo das terras, mas, a sua contribuição está, fundamentalmente, relacionada à sua trajetória de vida, da sua forma professoral de conduzir a educação de seus filhos. Dadas as dificuldades que encontravam no meio rural, às inconstâncias financeiras a que estavam submetidos e as expectativas de ascensão profissional quase inexistentes naquele lugar, Dona Mathilde atribuía suma importância aos estudos dos filhos, num tempo e lugar em que a grande maioria dos filhos e filhas de agricultores ainda permanecia na zona rural.

Com isso, eu diria que, a minha experiência pessoal na escola, associada ao incentivo permanente da minha mãe, foram decisivos na constituição, inicial, do meu eu como corpo-pessoa e, obviamente, na construção do corpo-aluna. Sim, pois, antes de sermos professores e professoras, somos o tempo todo, filhos e filhas, alunos e alunas. Talvez, a experiência de aluna seja mais significativa do que o fato de ter parentes próximos na área da educação. De um lado, não posso deixar de mencionar que, como “vivia na escola”, o cotidiano da minha infância mescla-se com o cotidiano do espaço escolar e, lembro, saudosa, da minha primeira experiência escolar, pois, morando ao lado escola, fazia dela o meu segundo lar, mas não apenas isso, nas séries iniciais fui “acariciada” por um desses “educadores amorosos” do qual Paulo Freire tanto nos fala. Lembranças essas que ficam armazenadas em nossa memória, carregadas de emoção. Entretanto, há também o outro aspecto, igualmente marcante: “martelam” em minhas recônditas lembranças as imagens da agressividade e a hostilidade de um diretor austero, disciplinador e autoritário[11]. Digo isso, porque são estas as imagens que vêm à tona quando tento falar sobre as primeiras vivências educacionais na Escola Municipal Frederico Lenz de Vila Manchina, interior de Três de Maio (RS).

No “dobramento” da história, sempre trabalhando de dia e estudando a noite, há no espaço tempo de 1978 a 1981, uma outra bela história a narrar, cuja importância e abrangência somente percebi anos mais tarde[12]: a minha participação como cantora do Grupo Musical Corpo e Alma. Os bailes, as festas, os casamentos, as reuniões dançantes nos estados do Sul e, também, além fronteira, como a Argentina, eram o meu trabalho em todos os finais de semana. Tempos entusiásticos, mas, também, difíceis... Atualmente a “Banda Corpo e Alma” é reconhecida nacionalmente, possui com vários CDs gravados e se traduz em orgulho para a “cidade canção” – Três de Maio – RS.

Concomitantemente a essas “aventuras musicais” se dá a minha primeira experiência como professora. Em agosto de 1981 sou convidada a trabalhar como monitora numa creche municipal: “Dona Dodó” foi o primeiro espaço-tempo de contato formal e corporal com crianças e escola. Antes, porém, trabalhei dois anos numa cabine de som da Estação Rodoviária de Três de Maio-RS. Minha tarefa: ao som de boa música, narrar o destino dos passageiros e desejar-lhes uma boa viagem![13]

No vai e vem das narrativas, desejo chamar atenção de que em todas as minhas atividades, quer seja no comércio, no Grupo Musical ou, ainda em outro lugar, envolvia duas peculiaridades que, na minha opinião, ainda hoje são essenciais para compor o meu entorno pessoal e profissional: a música e os entrelaçamentos com os (muitos) outros.

2.3.1 A escolha pelo curso: Educação Física!

A vida sempre fazendo novas perguntas, por vezes, se apresenta antagônica e, exatamente por isso maravilhosa! Aos 20 anos, tive que fazer a que seria uma das minhas opções que seguramente se tornaria uma das mais significativas ao longo da minha história: escolher entre continuar cantando e tocando ou, retornar aos estudos... Não vendo grandes perspectivas com a música e após a saída dos meus irmãos do grupo, optei em ingressar no ensino superior. Nesse período (1982) também o meu namoro com Luiz (bancário) se anuncia em casamento. E, desde então, somos namorados, amigos, cúmplices desta jornada e de muitas outras...

O ingresso no ensino superior foi marcado em primeira opção pela área de Comunicação e Jornalismo, mas acabei ingressando em segunda opção, na área da Educação e Saúde: presto vestibular para Curso de Educação Física da Faculdade Salesiana de Educação Física de Santa Rosa/RS, atualmente incorporada a UNIJUI[14]. Pois bem, minha opção profissional inicial, não é o de professora. Porém, já durante o curso, diferenciava-me da grande maioria dos meus colegas daquele período, pois, não era atleta, nem “medalhista”, nem tampouco tinha grandes habilidades nos esportes competitivos[15]. Confesso que, muitas vezes, fui abrandada por “alguns colegas” neste aspecto, e enaltecida pelo mesmo motivo, por “outros”. Contudo, sempre estive envolvida nas movimentações corporais geradas pela afetividade e sua expressividade com e através da música-movimento. Desta forma, já durante a graduação (1983), começo a trabalhar como professora de “ginástica e dança”. Mas, também, nesse período, descubro a habilidade da “espera” e da metamorfose do corpo-mãe. Roberto, meu filho, hoje com 22 anos, nasce no verão escaldante de 05 de janeiro de 1994, e revela a primeira das mais instigantes experiências femininas: a maternidade. Roberto é um trabalhador-estudante. Cursa o 6º semestre da Faculdade de Engenharia da Computação e já exerce a sua profissão, mesmo antes do diploma. Exigências do mundo do trabalho em constante mutação e as novas reconfigurações dos postos de trabalho.

2.3.2 Academia de Ginástica Cia do Corpo: uma experiência vivida e compartilhada

Em 1986, com o diploma na mão, seria então uma profissional[16] da Educação Física. Surge o dispositivo legal e possibilidade de constituir o meu próprio empreendimento - a Academia de Ginástica “Cia do Corpo”- empresa que se situava em Três de Maio (RS), a exatos 500 km da capital Porto Alegre.

“A tua presença é a melhor companhia”, “ser feliz é tarefa pra já”, “um abraço alonga o tríceps, o bíceps e amizade”, “juntos é a melhor forma de ser” [...], são alguns dos lemas utilizados pela empresa ao longo de 15 anos. Publicados em camisetas e eventos traduziam um pouco do que o codinome “Cia do Corpo” objetivava: não apenas um movimento rígido muscular, não apenas a ênfase ao tônus corporal, não apenas a beleza estética, mas, sobretudo, a busca de uma relação saudável com o próprio corpo e com os outros. Assim, concordo com Merleau Ponty (1994, p. 106), que diz que o “corpo próprio” cria a possibilidade do ser engajar-se em uma existência. Eu não posso fazer do meu corpo uma propriedade da mesma forma que me aproprio de um objeto ou de uma idéia. Ao contrário, é o meu corpo que, no movimento intencional vai ao encontro do mundo, se apropria dele, traz para si os objetos, incorporando-os e conferindo-lhes um significado e uma utilização e, sobretudo, construindo hábitos (id.).

Confesso que não tinha, até então, muitas leituras teóricas sobre “corpos” e a “corporeidade”. Entretanto, o convívio com as pessoas nesse tempo proporcionou-me muitas leituras da linguagem corporal e do cotidiano das pessoas. Sempre indagando sobre o que de fato elas “buscam” e “procuram” numa Academia de Ginástica. O que “mostram” em seus corpos, mas principalmente o que tentam encobrir quando os ignoram, seguindo padrões ditados pela indústria do belo e o consumo. Não posso negar que, atualmente, afastada destas atividades, sinto é muitas saudades desta “escola contemplativa e viva”, sinônimo de um grande aprendizado.
Foram anos de intensa e contínua formação, onde, simultaneamente, ministrava aulas e coordenava as diversas modalidades oferecidas, sempre vinculadas à missão de: “Trabalhar, respeitando a essência. Aprimorar a natureza original e liberar todo o potencial adormecido, gerando mais harmonia e também a mais satisfatória forma de viver...”

Trajetórias, saberes... Posso assegurar que já co-vivenciei várias facetas do mundo trabalho. O período da “Academia” fazia muito mais “uso de mim” do que a graduação poderia ter potencializado. Muitos foram os enfrentamentos e aprendizados: muito trabalho; cursos; eventos; novas tendências do mundo do mercadológico, especialmente do “mundo do fitness”, manutenção e crescimento do empreendimento, adesão e a permanência dos alunos na “casa”... A formação profissional nas “buscas” para as melhorias no desenvolvimento do negócio, concentravam-se, inicialmente, fora do nosso estado, por isso, eram freqüentes os estudos nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo. Nos últimos onze anos, Curitiba e Porto Alegre se tornaram cidades reconhecidas como pólos em termos de conhecimento na área da Educação Física voltada para saúde e qualidade de vida.

Mas, no ano de 1988, eu teria a culminância da minha segunda grande e grata “espera”. Dia 17 de novembro nasce Helena. Menina meiga, mas de personalidade forte e determinada, hoje com 18 anos, enfrenta as inquietações do tão esperado e “esperançado” concurso do vestibular. Quer ser arquiteta.

Durante este período, movida por uma paixão que envolve o “corpo inteiro” – o trabalho uma “artéria” jornalística pulsava forte e não calava e, simultaneamente, trabalhava como locutora numa Rádio FM com um programa de MPB: “O Brasil na Cidade”.

Contudo, tendo a persistência como uma virtude e grande companheira, sempre questionei os cuidados com a saúde através dos exercícios planejados. Neste sentido, o cotidiano da Academia ampliava seus serviços e externava seus convênios e projetos. Concomitantemente aos serviços já oferecidos pela empresa, mantínhamos o convênio com o SESC – Serviço Social do Comércio, que atendia aos comerciários e comerciarias, assim como também seus filhos e filhas. Além disso, outros projetos externos viabilizavam a expansão e o crescimento dos adeptos aos exercícios físicos e, também da Empresa, a exemplo da “Rua Ativa” (fig. 12) e “O homem total na empresa total[17]”, projeto realizado no ambiente de uma organização empresarial (fig. 13). Experiência esta, que me levou ao curso de especialização em Exercício e Qualidade de Vida, pela Universidade do Norte do Paraná –Londrina (PR). A convivência com os grupos jovens de todas as idades – assim como são carinhosamente nomeados por mim, todos os jovens, adultos, estudantes, trabalhadores, não trabalhadores, aposentados – constituiu-se numa comunidade de aprendizado recíproco. São essas ações que traduziram os estímulos necessários à motivação pessoal, a exemplo do desejo de ingressar no programa de Pós-Graduação em Educação e realizar a pesquisa que aprofunde e revele um pouco mais os mistérios da vida humana.

Mas, como estamos a velejar pelos mares da vida, que nem sempre calmos, estamos aprendendo os manejos do barco como diria Paulo Freire, e a ‘mudança’ por vezes torna-se necessária. Foi deste modo que, em conseqüência de uma transferência do meu esposo, Luiz Gustavo Bender – bancário[18] – e, principalmente pelo desejo em permanecer junto ao “porto seguro” – à família – que, Igrejinha (RS), é o meu “espaço tempo” de aprendizado desde junho de 2001. Preciso dizer ainda que, a experiência da mudança, por vezes dolorosa e necessária, também nos confirma que o ser humano se constrói e se modifica a partir do contexto no qual está inserido. Já posso assegurar que a Dalva de hoje já não é mais a mesma daquela de Três de Maio (RS). Porém, ainda são àquelas “águas passadas” que movem os “novos moinhos” e, neste caso, são as “experiências e os saberes vividos” associadas aos novos saberes, que me desacomodam e proporcionam a motivação necessária para continuar...

2.4 SEGUNDO ANCORADOURO: IGREJINHA - RS, A HISTÓRIA AOS PÉS DAS MONTANHAS[19] (2001-2004)

Na constituição do eu em movimento, vivenciei alegrias, tensões, perdas e ganhos... Bem, minha (nossa)[20] história não é diferente de muitas outras e, talvez, nossos desejos tampouco se diferem dos desejos dos nossos semelhantes... E assim, movidos pela ânsia de melhorar, inicialmente, como pessoas humanas e, diante dos nossos legatários (filhos), novos desafios se apresentaram: era chegada a hora de MUDAR! Mudar em vários sentidos, mas literalmente, mudar de lugar, de trabalho... E isso significou partir para uma grande e definitiva transformação das nossas vidas, tal qual o vôo decisivo da águia[21]!

Inicialmente, deparamo-nos com sérias e difíceis decisões: romper laços, raízes..., Mas, no fundo queríamos isso; desejávamos isso, caso contrário, ficaríamos frustrados por não ter tentado E, então, igualmente à águia, estávamos diante de duas alternativas: ou ficaríamos na “zona de conforto” e, no imaginário, acreditando que em outro lugar haveria melhores perspectivas ou, então, “voaríamos” para experenciar essas novas possibilidades. Sabíamos, contudo, que seria um processo arriscado, mas, até aí, ainda não sabíamos o quão grande seriam os nossos desafios. Decidimos mudar! E, diferentemente da águia, levamos os nossos “filhotes”. Nossas “malas” incluíam tudo o que temos e somos: nossas coisas materiais; pessoais; nossos bichinhos de estimação (gatinha, canários e periquitos..) e muitos, mas, muitos sonhos, amparados em muito trabalho, estudo e esperanças...

Coincidentemente ou não, nosso destino nos levou também para as montanhas: Igrejinha-RS. Localizada na encosta da serra, na região do Vale do Paranhana (que por sinal é lindo), Igrejinha se mantém cercada pelas montanhas e pelo verde da mata nativa. E é também com as montanhas que aprendemos as primeiras lições. Aprendemos, inicialmente que, o pôr do sol entre elas (as montanhas) é muito diferente do pôr do sol da terrinha natal. Nas montanhas, ele se esconde rapidamente como se quisesse abreviar a sua presença e, com rara beleza, nos põem repentinamente próximo à noite. Beleza tamanha e talvez despercebida por muitos, mas ainda assim, não maior do que o entardecer da planície, isso porque a “planície” é como nossa pele. Nela estão cravadas as memórias da infância. Diferenciada, a montanha parece que acolhe, abraça, cuida da cidade, da sua gente e dos seus mistérios. (essa é uma compreensão bem pessoal)

Foi uma permanência breve em Igrejinha, apenas 32 meses. Talvez, este não seja o tempo suficiente para realmente fazer tudo o que queremos fazer dele. Mas em 32 meses você pode realizar e descobrir muitas coisas ou, não. Entre procuras e encontros, nesse novo espaço-tempo, descobri que não sou eu que “moldo” ou construo o lugar em que resido e vivo, mas, sim, o lugar com sua magia, seus encantos, cultura e também “ranços”, constrói e “molda” o meu jeito “novo” de ser e de viver.

Nesse tempo aprendemos muitas coisas...! Principalmente eu, que literalmente joguei minha vida às avessas, aprendi muito. Aprendi, por exemplo, que mais do que qualquer outra pessoa, planícies ou montanhas... E, nesse caso, eu mesma e, somente eu sou a responsável primeira pelas minhas próprias escolhas. E, mais do que em qualquer outra situação, aprendi a assumi-las, correndo os riscos, pois foi uma escolha pessoal. Aprendi, por exemplo, que, poderia até desistir de tudo, caso quisesse... Mas, daí percebi, em tempo, que as escolhas próprias têm significado não somente para sua construção pessoal e profissional. Os filhos, o companheiro, os amigos, sua gente, se espelham em você. Percebe, então, que precisa se fortalecer, permanecer ao lado das pessoas que lhe amam e que você ama, e que isso significa lançar a âncora num porto seguro: a família. Bem, é ela que se constitui no leme nessa viagem maravilhosa que chamamos de tempo ou poderia ser a “própria vida”. É a família que de fato mostra os caminhos e que vai estar contigo nas “águas turbulentas” mas, também, vai estar contigo para gozar do prazer das calmarias...

Nesses tempos difíceis, aprendi realmente muito. Aprendi a guardar apenas na memória e no texto-corporal, a lembrança de ser àquela respeitada empresária do ramo do fitness, dona do seu próprio negócio, que abdicou de sua autonomia, de sua liderança, de um espaço conquistado ao longo de 15 anos, que abriu mão de estar com seus inúmeros amigos, para, então, subitamente, ser uma simples recreacionista-garçonete-guia-de-trilhas, num parque ecológico[22]. E, a partir daí, descobrir que, conhecer sobre aves exóticas é fácil; que cuidar de 400 crianças numa piscina pode exigir das suas competências profissionais de forma intensa, mas nesse caso a experiência materna vai contar muito mais, mas, ainda assim, é, relativamente, fácil. E mais: achando que está toda prosa, com uma larga experiência de liderança e persuasão, pensa que nada vai abalar a sua sólida história, passa a ser líquida. Mas, daí aprende que precisa sim, fazer um exercício de humildade para entender o sentido, a razão e, principalmente, a emoção de estar ali. Pois, nada se compara quando a sua agilidade, energia, coragem e “suposta sabedoria”, se faz esmorecer diante de jovens senhoras de 80 e 90 anos que, com suas dificuldades físicas, com suas costas arcadas, simplesmente esquecem suas limitações e lançam seus corpos com habilidade e destreza por sobre os lombos dos cavalos e, com excepcional domínio galopam pela grama verde. Num instante assim, como num passe de mágica, revivem a sua história e o seu tempo. Aprendi com grupos de vovós e vovôs que visitam o Parque Ecoland, o segredo de galopar.

Mas, nesse tempo, você pode realizar grandes feitos, ou não. Você pode, por exemplo, fazer vários concursos: um novo vestibular, concurso do magistério público estadual, municipal, concurso para o mestrado, na possibilidade de passar em um deles. E, de repente, se deparar com uma nova situação: passar em todos eles e, ter que fazer novas escolhas. E eu as fiz...

Nesse tempo, também é possível conhecer lugares fantásticos como Cambará do Sul, o templo Budista de Três Coroas, o Churrasco na Vala de São Francisco de Paula, ou simplesmente contemplar o luar entre as montanhas... (indescritível)

Também praticar muitos esportes radicais como: rafting no Parque das Laranjeiras (desci Rio Paranhana cinco vezes), dançar no topo de um trio elétrico cantando “um barril de chopp” durante o desfile da Oktoberfest, praticar rapel e outros esportes de altíssimo risco: fazer mestrado-trabalhar-cuidar-da-família-casa-gato(s)-passarinhos e, muito mais! Fazer ginástica, andar de bicicleta, jogar vôlei, dançar, cantar, namorar. Ah! Resgatar a fala na língua alemã, exercer o teu trabalho nessa mesma língua. Bem, sorri muito, mas chorei mais...
Chorei porque descobri muitas coisas. Percebi que meus filhos cresceram em todos os sentidos. Que um deles literalmente já bateu asas. Então, me descobri também como um corpo-mãe-protetor, que se julgava forte, atual e sabichona, mas, que não estava preparado para deixar seu filho “voar”..., Descobri em mim uma mãe ciumenta e, por conseguinte, uma sogra chata... (mas isso... já está bem melhor). Descobri que as mudanças nos aproximam ainda mais das pessoas que amamos. Após 24 anos de casamento, (eu e Luiz) estamos mais ligados do que em qualquer outro tempo. Grandes lições. A gente sempre aprende...

Em 32 meses que você descobre um sentimento novo e estranho, nunca sentido antes. Não se reconhece mais como era anteriormente e, tampouco, é reconhecida pelos outros. Não se identifica com o lugar, com o trabalho, com as pessoas. Sofre, e sofre muito. Descobre que sente saudades de si mesma. Como se a identidade tivesse sido “roubada”.

Mas, também, é nesse tempo que encontro um novo grupo (fig. 15). Um grupo que brotou num momento difícil, complexo, mas que antes de qualquer coisa, se mostrou solidário. Falo das minhas colegas da SME – Secretaria Municipal de Educação de Igrejinha, lugar onde exerço a minha então nova função de organizadora de eventos (2001-2004).

Penso que um grupo se constitui em circunstâncias muito especiais, talvez não seja somente destino, existem algumas “forças ocultas” que nos atraem e que nos são peculiares. As pessoas se unem em busca de objetivos comuns, ou por vezes se complementam: da ação de um, decorre a do outro, e assim, reciprocamente.

Entre o passado e o novo, Igrejinha reserva para minha formação docente, ainda um outro momento muito peculiar, especialmente para o corpo-pesquisador. Promove, através do Curso de Pós Graduação, nível mestrado, o encontro dos “sobrantes” da terra. Eu explico: ávida por novos conhecimentos, Igrejinha como um lugar diferenciado da minha trajetória de vida e trabalho (zona agrícola versus zona industrial), é também o palco das aventuras nos mares da pesquisa educacional: “Os corpos nos trilhos e nos bancos: do chão da fábrica para o chão da escola. Quais os lugares dos corpos dos trabalhadores-estudantes da escola noturna?”, foi o título da dissertação de mestrado defendida em julho de 2004.(fig.16)

A pesquisa traz uma reflexão sobre as questões que envolvem milhares de adolescentes e jovens: o cotidiano do trabalho e a escola noturna. A linguagem dos corpos nos seus movimentos, gestos, vozes e olhares, a escuta e também os silêncios embrenhados de emoções, convergem para a diversidade e multiplicidade dos corpos-sujeitos “desenhados” e “sugeridos” pela sociedade tanto no espaço fabril, como na escola. Na análise do estudo sobre os lugares desses corpos trabalhadores-estudantes da escola noturna, apresenta o espaço-tempo da escola como um lugar tímido, fazendo com que o corpo-sujeito que se constrói entre o passado e o presente, entre o trabalho e a escola, seja pouco referendado até mesmo ignorado. (BENDER, 2004, p. 8).E, ainda, a escola noturna não reconhece nem diferencia o trabalhador da linha de produção de outro trabalhador ou, ainda, daquele que não tem trabalho ou daquele que prefere contrariar a idéia de trabalhar. Como não aborda as diferenças e as singularidades dos sujeitos, restringe suas atividades aos saberes que julga mais importantes, preferencialmente em espaços reservados da sala de aula, com os estudantes “sentadinhos” nas cadeiras que sugere o disciplinamento dos corpos. Ela, a disciplina, está presente, sim, embora “entre aspas”, diluída em toda parte e em todo o tempo. (Id., p. 270)

Esse grande encontro entre a escola pública noturna, a universidade e os saberes, ditos anteriores, de certa forma, me levaram ao passado dos anos 70. Isso porque, grande parcela dos estudantes entrevistados na pesquisa são filhos e filhas dos “sobrantes” da lavoura. Meus conterrâneos[23]. Paulo Sgarbi, citando Alves, me auxilia a compreender essa trajetória. A autora sugere uma visão mais ampliada dos fenômenos. E, certamente, muitas dessas circunstâncias vividas e sentidas, me auxiliam a “estar sendo” corpo-professora.

[...] ver além daquilo que outro já viram e muito mais; [...] capaz de mergulhar inteiramente em uma determinada realidade buscando referências, sons, sendo capaz de engolir sentindo a variedade de gostos, caminhar tocando coisas e pessoas e me deixando tocar por elas, cheirando odores que a realidade coloca a cada ponto do caminho diário. (2003, p. 92)

Mas, nós (família) sabíamos que, a qualquer momento, novas mudanças poderiam surgir. E não deu outra: em fevereiro de 2004 Luiz (esposo) foi transferido para a cidade de São Leopoldo. “Vibramos”... Sim! Era o que queríamos, isso estava em nossos planos primordiais. Nova agência, nível melhor. Novas perspectivas...

2.5 TERCEIRO ANCORADOURO: SÃO LEOPOLDO – RS (2004...)

Providências primordiais: viabilizar a mudança! Sim, a exigência primeira da empresa do meu esposo é que ele resida no mesmo local de trabalho (velhas nuances perversas dos mundos do trabalho). Na conseqüência disso, “abro mão” do trabalho na SME de Igrejinha-RS. Então, lá fomos nós. Procurar apartamento, escola...E, em 13 de março de 2004 mudamos! Essas datas a gente não esquece.

Como eu estava na fase final do mestrado (pesquisa e análise dos dados) optei em me dedicar exclusivamente à dissertação e logo que a concluí, realizei a defesa (isso em 23 de julho do mesmo ano. Depois disso começo a caminhar na busca de trabalho...) Bom..., um novo lugar, uma nova cidade, novas referências...Novas pessoas, novas situações e, também, novos perigos: estávamos há apenas 20 dias em São Leopoldo quando fui vítima de um assalto à mão armada. Experiência difícil. É novo o aprendizado. Levaram o carro, documentos, dinheiro, mas, não me levaram e, tampouco, o meu otimismo....

Quando as coisas se “acomodam” entre aspas, começo a experienciar uma nova situação. Talvez uma das pequenas grandes lições que vivi até os dias de hoje. Por isso, o grifo em negrito. Na ocasião, com um currículo que incluía formação superior; especialização; mestrado; ampla experiência nos campos da educação, associados aos meus 42 anos, me deparo com uma das facetas mais cruéis do mundo do trabalho contemporâneo: o não-trabalho. Quero, com isso, apenas dizer que isto é um pouco da minha história, apenas mais uma, das tantas, ainda mais complexas, que nos sensibilizam diariamente (o que dizer diante das condições de pobreza em vivem milhares de são leopoldenses, dos moradores de rua, do aumento descomedido do trabalho informal que cresce assustadoramente na avenida central da cidade). E, por isso, não quero parecer um muro de lamentações. Não é nada disso! Tudo isso, na verdade, são escolhas (no meu caso), são experiências ou, melhor: são vivências sentidas e aprendidas e, por que não dizer, novas formas de lutar e procurar um espaço para novamente produzir, trabalhar, ser útil na sociedade, criar vínculos. Nesse caso, não é apenas a ausência do desemprego, é uma trajetória de vida-trabalho-produção que se depara com uma encruzilhada: “o não-trabalho que é mais que o desemprego” , como diria Castel, citado por Franzoi (2006, p. 36)[grifo meu]

Mas, falar de si é também falar de esperança. Paulo Freire novamente me ensina com suas palavras “mágicas”. É preciso "esperançar". Esperançar é diferente de esperar. Esperançar é ir atrás, é buscar no hoje aquilo que ainda hoje pode ser feito... E eu fui.

Depois de uma longa espera, em 06 de agosto de 2005, sou convidada pelas Faculdades de Taquara – FACCAT, para ministrar a disciplina de Fundamentos e Metodologia da Educação Física no curso de Pedagogia. Olha só, professores e professoras em formação. Diante da nova e grata situação, essa oportunidade se ampliou num grande e prazeroso desafio. O co-partilhar, co-auxiliar, co-ensinar e, sobretudo, co-aprender com os professores e professoras, considerando acima de tudo, os propósitos da Educação Física contemporânea, sugeriu como ponto de partida a formação pessoal do adulto-professor ou futuro professor. A formação pessoal do adulto, simultaneamente em que abordava as teorias e práticas referentes à Educação Física Infantil e de 1ª à 4ª séries, propiciava a vivência e a experiência (prática e reflexiva) das diversas linguagens corporais, considerando que, refletir sobre a nossa história pessoal e sobre como esta é “registrada” em nossos corpos, poderá se constituir num caminho para perceber e interpretar a linguagem corporal do outro e da outra.

27 de janeiro de 2006: concurso público para magistério municipal de São Leopoldo. Antes disso, férias adiadas para poder estar preparada para as provas. Em 04 de julho de 2006 sou nomeada como servidora pública municipal de São Leopoldo e convidada a trabalhar na Secretaria Municipal de Educação Esporte e Lazer de São Leopoldo – RS. Função: supervisora da EJA. Novamente um novo grupo, novos vínculos, desafios e grandes aprendizados.

Estar vinculada com Educação de Jovens e Adultos me põe a (re)pensar crítica e reflexivamente sobre minha prática docente. Especialmente sobre os sujeitos que compõem o cenário dessa modalidade educativa: professores e alunos, todos embrenhados nas grandes dimensões humanas: o corpo, a educação e o trabalho. Talvez, nosso grande desafio, como professores do século XXI, seja criar situações e espaços para que, na reflexão sobre “o quê” e “o como fazer” a Educação de Jovens e Adultos, a nossa intervenção seja aprender e experimentar incessantemente a nós mesmos, cuidando para o que nos revela a nossa prática pedagógica cotidiana.

Porém, ser e estar corpo-professora é, antes e, sobretudo, sempre ser um corpo-aprendiz. Num continuum me formo professora em todos os tempos e lugares, mas com especificidade no curso de especialização PROEJA/UFRGS.

“Estar sendo” corpo-professora é também exercer a docência in loco e mesclar-se aos alunos e alunas. Minhas ações mais diretas nesses campos estão enredadas ao um Projeto realizado junto aos Bombeiros de São Leopoldo – RS – Bombeiros Mirins -, que atende diariamente no turno inverso da escola, 15 meninos (crianças e adolescentes) com idade de 09 a 11 anos, desenvolvendo atividades de bombeiro. Essa vivência exige novamente a eminência do meu corpo-mãe, dadas as circunstâncias contextuais em que se encontram esses meninos. Filhos de uma realidade social excludente que assola a maioria da população desprovida de (quase) tudo em nosso país (menos da esperança), o encontro semanal com esses meninos tem sido a grande matriz propulsora que me move na capacidade de aprender e ensinar, mas, principalmente pela emoção que me proporciona em sentir a vida, que, por certo, está em todo meu ser e se faz sentir vigorosa e pulsante às vezes no visível e, outras, no invisível, neste surpreendente pulsar do sangue que corre em minhas veias.

O QUE CONTA NO FINAL É O QUE FICA IMPREGANADO EM NOSSO TEXTO CORPORAL E, TUDO FICA...

Ando devagar porque já tive pressa e levo esse sorriso, porque já chorei demais. Hoje me sinto mais forte, mais feliz quem sabe. Eu só levo a certeza de que muito pouco eu sei, nada sei. [...] Cada um de nós compõe a sua própria história. E cada ser em si carrega o dom de ser capaz de ser feliz... (Tocando em Frente: Renato Teixeira)

Os novos saberes, as novas (in)formações passam por velhos atalhos. Narrar, escrever, recordar, olhar imagens, conversar, compartilhar, ouvir histórias, comunicar, ocupa um espaço-tempo importante de como constituí professora a cada dia. O memorial, ora descrito meu texto-corporal, repaginou com clareza, as influências e saberes que surgem de toda ordem na escolha pela docência. Influências múltiplas que foram sendo construídas sob velhas trilhas e balizadas por antigos personagens tanto da história escolar pregressa, como da história familiar: grandes bases sustentadoras da escolha profissional e dos novos saberes. Mas o vínculo estreito com as pessoas, as relações e reciprocidades no espaço escolar ou fora dele, restauram em mim, o lugar significativo da figura do corpo-sujeito-professor/a no contexto educacional e, devolve, de certa forma, o Eros (desejo) que muitas vezes encontra-se adormecido dentro de cada um de nós.

Se Freire diz que estamos empapados de representações passadas, então, não estamos isentos delas, podemos dizer que somos a história mágica com seus encantos, sua cultura, suas heranças e ranços. Assim, entre continuidades e rupturas, construímos a cada instante e lugar o jeito-de-ser-corpo-professor/a. Assim, são as pessoas com quem ontem aprendi, mais a soma das pessoas com quem hoje compartilho os antigos e novos saberes que me formam. São as velhas e novas biografias que juntos construímos. Conscientes ou não, estamos inseridos desde a infância no “grande espetáculo da vida escolar” permeados pelas lembranças (boas e ruins), sotaques e trejeitos que carregamos em nossas subjetividades e, que, especialmente, neste texto, foram aguçadas pela contemplação das imagens fotográficas.

E, para que nos campos da Educação nesses “tempos incertos” como diria Enguita (2004), haja novas e boas histórias, vale lembrar uma citação do autor:

[...] existem poucas profissões, se é que existe alguma, nas quais a atividade realizada pelo profissional e o serviço recebido pelo cliente mostrem-se tão coexistivas, sejam no mesmo grau uma mesma coisa, como na educação. Primeiro, pela coextensão, no tempo, de docência e discência: o tempo de aprendizagem do aluno é, sobretudo, o que passa com o professor, e o tempo de trabalho do professor é, antes de mais nada, o que passa com os alunos, tanto mais precoce for o ciclo de ensino considerado. (p. 107)

Assim, comprometidos com a Educação, professores e professoras, não importa se dentro ou fora das salas de aula, deixam marcas e cicatrizes profundas, o que justifica por si só, a importância e a necessidade de refletir criticamente sobre trajetórias pregressas de professores e professoras que, de uma forma ou de outra, se mesclam a nossa própria vida. Se na contemplação de imagens pregressas há produção de história, como diz Alves (2004), as narrativas que delas insurgem, poderão, talvez, produzir outras imagens, com outras narrativas e, por que não dizer, com outras boas e novas histórias.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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[1] Expressão usada por Maurice Merleau-Ponty citada por Freitas, 1999, p.56.
[2] O corpo tatuado e, a tatuagem como prática primitiva, hoje em expansão, tem evidenciado que mais do que em qualquer outra época, os corpos pretendem registrar seu legado histórico permeado de emoções, não apenas no recôndito da memória, mas, sobretudo, no próprio tecido corporal. Nesse caso, escolher a superfície da pele para “escrever” a história de um modo singular é a forma e a opção que cada um encontra de exprimir a si mesmo e promulgar a sua história ao Outro e, quiçá, seduzi-lo com a escrita e a imagem. “A escrita do corpo simboliza a passagem da natureza à cultura, mas oferece também a prova do enraízamento da cultura na natureza”. (JEUDY, 2002, p. 92-93)
[3] Palestra sobre “A Poética do Corpo e a Educação”. (UNISINOS, 02 de abril de 2003)
[4] No Dicionário Brasileiro Globo, o conceito semântico da palavra é atribuído a um manuscrito em pergaminho, que os copistas medievais apagaram para nele escrever de novo, e no qual modernamente se tem conseguido avivar os primitivos caracteres. (FERNANDES; LUFT e GUIMARÃES, 1998, p. 451)
[5] (SALGADO, Sebastião, 2003)
[6] O “estar sendo” é uma concepção contemporânea da identidade, pois lhe confere um caráter de processo, de mudança e constante transformação. Identidade é um termo que se refere a tudo aquilo que seja vivenciado como eu em resposta à pergunta ‘quem és’. Nesse sentido um constante ‘estar sendo’, embora se represente como aparência de ser. (JACQUES, apud FRANZOI, 2006, p. 39-40)
[7] Naquele período o hospital mais próximo era da cidade de Santo Ângelo-RS, cerca de 70km de distância.
[8] Nos anos 70, Três de Maio era reconhecida como o berço da canção estudantil devido aos grandes festivais de música de nível estadual organizados e realizados pela Escola Estadual Cardeal Pacelli. O FEEC (Festival Estadual Estudantil da Canção) revelou grandes nomes da canção gaúcha e nativista. João Chagas Leite, Vitor Hugo, Rui Biriva, José Fogaça (atual Prefeito de Porto Alegre-RS), entre outros, iniciaram sua trajetória artística na tranqüila Três de Maio. Estes festivais são promovidos até os dias de hoje, porém não mais com a expressividade de outrora. Eu mesma, também de aventurei nestes palcos. (Fig. 06-07)
[9] Os latifúndios tomam conta de grande parte das terras. Sobrando aos pequenos agricultores apenas “tiras” estreitas.
[10] Aos quinze, entrei para uma banda estruturada (atualmente Musical Corpo e Alma) onde fui cantora e ritmista...Nos anos seguintes, o grupo atingiria vôos mais altos...

[11] Nos anos 70, ainda era possível presenciar figura do diretor com uma “vara de marmelo” sobre a mesa. Também a relação entre professores e alunos baseava-se nos “puxões nos cabelos” pouco sutis, nas ameaças e nos castigos, a exemplo da posição de joelhos sobre os grãos de milho ou tampinhas de garrafa, ou ainda, ficar trancafiado na sala de aula no intervalo do recreio.
[12] Tanto em meu viver e conviver a minha participação no Grupo Musical a trajetória de muitas outras pessoas (namorados, ex-namorados, casais...), cujos (re)encontros atuais com esses sujeitos reforçam esta fase como momentos vividos de intensa satiusfação. Esse período está registrado na Carteira Profissional de cantora na Ordem dos Músicos do Brasil.
[13] Fatalmente não há registro desse período na minha Carteira de Trabalho.
[14] Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – Campus Santa Rosa (RS).
[15] Após a 2ª Guerra (1939-1945), com a influência americana, o esporte levaria a criança a compreender a importância de aprender a regras, conviver com as vitórias e derrotas: melhores e piores; vencedores e derrotados; aptos e inaptos. A Educação Física torna-se um ideal de “adaptação social” (GALLARDO, et.al, 1998, p.19). O Brasil, fortemente influenciado por essa concepção, tardiamente começou se modificar, mas até do final dos anos 80, o ingresso nos cursos de Educação Física, seria ainda, “motivado” por uma característica comum: a maioria dos acadêmicos de Educação Física provinham da experiência e, principalmente do sucesso obtido nas quadras de voleibol, atletismo e outros esportes. O resultado disso foi a supervalorização dos corpos-atletas com possibilidades esportivas, excluindo das aulas e das quadras os “menos aptos”. Hoje, talvez, isso esteja diferente..., Talvez.
[16] Franzoi (2006) citando Hughes, traz uma importante contribuição para a construção do conceito de profissão: Para o Hugnes “o termo profissional dever ser tomado como categoria da vida cotidiana e ‘que não é descritivo, mas implica julgamento de valor e de prestígio’”. Outra denotação, não menos importante é “mostrar que o profissional é aquele que possui um diploma (licence) e um mandato, que lhe são atribuídos pela sociedade. O diploma é a autorização legal para exercer atividades que outros não podem, pela qual o profissional é separado dos demais. O mandato é a obrigação legal de assegurar uma função específica, pelo qual lhe é confiada uma missão”.(p.27-28)
[17] Programa desenvolvido em uma Empresa que englobava: ginástica laboral, recreação e lazer, avaliação física e palestras sobre Saúde e Qualidade de Vida para funcionários e clientes.
[18] Uma das características das grandes empresas estatais, quando instigam na busca de crescimento profissional de seus funcionários, é a exigência de mobilidade e a diminuição de vínculos com a sociedade de pertencimento. Essa foi uma das razões da nossa mudança. Mas, teve outras...
[19] Colonizada pelos germânicos em 1847[19], procedentes em sua maioria da região de Hunsrück (Sul da Alemanha), a cidade ainda conserva algumas características germânicas na arquitetura urbana, na gastronomia e nas manifestações culturais e artísticas, a exemplo das festas de Kerb e a Oktoberfest. Privilegiada por uma belíssima paisagem de montanhas (ainda) cobertas pela mata atlântica também reconhecida como a Encosta da Serra, Igrejinha é cercada pelas montanhas que revelam-na encantadora e com potencialidade turística. Eu diria, de uma forma poética que, como uma verdadeira orquestra sincronizada, os igrejinhenses trabalham e descansam no vale do rio Paranhana, “abraçados” pelas montanhas.
[20] Passo a utilizar a terceira pessoa do plural por estar narrando a história dos meus outros.
[21] Relembrando: A águia é uma ave que possui a maior longevidade da espécie, chega a viver em torno de setenta anos. Mas, para chegar a essa idade, aos 40 anos ela tem de tomar uma difícil decisão. Aos 40 anos ela está com as unhas compridas e flexíveis e não consegue mais “segurar” as suas presas, das quais se alimenta. O bico alongado e pontiagudo se curva. Apontadas contra o peito estão suas asas envelhecidas e pesadas em função da grossura das penas e então, voar já fica difícil. Quando isso acontece, ela, a águia, só tem duas alternativas: morrer...ou, enfrentar um dolorido processo de renovação que irá durar 150 dias. Esse processo consiste em voar para o alto de uma montanha, se recolher num ninho próximo a um paredão, onde nela não necessite voar. Então, após encontrar esse lugar a águia começa a bater com o bico numa parede até conseguir arrancá-lo. Depois de arrancá-lo, espera nascer um novo bico, com o qual vai arrancar suas unhas. Quando as novas unhas começam a nascer ela passa a arrancar as velhas penas. E, só após cinco meses, sai para o famoso vôo de renovação, para viver, então, mais trinta anos. (metáfora popular)
[22] Parque Ecoland: o primeiro trabalho em Igrejinha/RS.
[23] Durante as décadas de 1970 e 1980, o acentuado crescimento das indústrias calçadistas também foi o grande atrativo para milhares de micros e pequenos agricultores do estado do Rio Grande do Sul, mais precisamente da região do Alto Uruguai, Missões, Grande Santa Rosa e do Nordeste do estado[23]; visto como o “sonho dourado” para milhares de famílias, conforme o artigo de Antônio Machado[23]. Estes “sobrantes” eram os agregados excluídos do meio rural cujas condições de sobrevivência foram prejudicadas pelo processo de transformação da base tecnológica da agricultura gaúcha, que mecanizou as grandes propriedades de terras, reconhecida no período como “fenômeno soja” (SCHNEIDER, 2004, p. 36).