Memorial de Tania Beatriz Iwaszko Marques


TANIA BEATRIZ IWASZKO MARQUES[2]


“Trajetos” ou de como construí minha vida, buscando a beleza e a alegria no conhecimento. Apresento brevemente minha trajetória pessoal na relação com o conhecimento como forma de mostrar a maneira como me encontro envolvida com o tema proposto.
Como foi boa a sensação de ter aprendido a ler e a escrever! Não muito depois, já dominando o mundo das letras, sonhava em ser professora. Como era bom brincar de professora, o que, naquela época, brincava sozinha! Entrei na escola aos sete anos e, apesar de freqüentar uma escola pobre – o prédio era uma “brizoleta” – quanta alegria eu sentia em ir para a escola. Amava aquele lugar, não enxergava o quanto lhe faltava, o quanto era precário. Para mim, importava o que tinha de bom, e isso eu aproveitava, participando de todas as atividades, de todas as promoções, de todas as competições. Saber me fascinava e minha curiosidade era imensa.
Quando estava na quarta e na quinta séries, uma colega de aula, que tinha dificuldades em matemática, pedia-me ajuda nos estudos. Ia a sua casa e lá lhe ensinava as lições, que, para mim, eram banais. Para ela, eram enigmas insolúveis. Nessas ocasiões, creio que, como retribuição, sua mãe fazia torta de morangos. Desde aquela época dei-me conta de que nessas situações quem mais aprendia era eu, na medida em que tinha que entender o processo e os passos a serem dados para refazer o caminho daquela construção. Eu tinha que enfrentar desafios e assim crescia.
A biblioteca da escola era um lugar encantado, pois ali havia livros para responder minhas dúvidas. Na rua onde morava, minha família foi uma das primeiras a ter aparelho de televisão em casa. Isso foi no final da década de sessenta (nasci em 61). A gurizada da vizinhança reunia-se na sala, em torno dela para assistir aos Os três patetas. Só que, além de me fazer companhia, a televisão me ensinava coisas. E como aprendi coisas com ela! Todas as viagens, que não fazia na realidade, fazia com ela. Visitei outras galáxias com Perdidos no espaço. Aprendi Inglês com Fisk...
Mudei de escola ao ingressar na sexta série. Nessa minha segunda escola, a biblioteca, embora pequena, apresentava companhias maravilhosas: adorava ler livros de ficção científica. Exatamente nesta época a escola estava lançando um centro de línguas estrangeiras, pela iniciativa da Professora Helena Totta, e foi aí que aprendi inglês e francês.
Chegou, porém, a hora de ir para o segundo grau e, portanto, trocar novamente de escola. Dessa vez fui para uma escola grande – o Colégio Estadual Júlio de Castilhos – e havia a necessidade de escolher um curso profissionalizante: Auxiliar de Processamento de Dados. No período do curso não houve nenhum contato com um computador, mas aprendi estatística; continuei a gostar de matemática e continuei a ensinar a matéria para meus colegas. Li bastante: além de Érico Veríssimo, e os clássicos da literatura brasileira, deliciava-me com as obras de Josué Guimarães e Moacyr Scliar. Nesse período de segundo grau, além de usar a biblioteca da escola, aprendi a visitar a biblioteca pública. Que mundo fantástico!
Chegou o terceiro ano e a necessidade de me decidir por uma profissão. Optei por Psicologia e só me inscrevi para o vestibular da UFRGS, já que não teria condições econômicas de pagar uma universidade particular. Estudei muito e, felizmente, consegui passar na primeira tentativa.
Transcorrido o primeiro ano de faculdade, em que tinha uma carga horária muito intensa, chegaram as férias. O professor de “Psicologia Experimental” havia aberto a possibilidade de se cursar a disciplina durante as férias. Nesse período, trabalhei, durante dois meses, no Hospital de Pronto Socorro, em uma empresa que realizava o seu serviço de contabilidade. Comprei o livro (A Análise do Comportamento, de Holland e Skinner), para cursar a disciplina, que era feita individualmente, de acordo com a proposta de instrução programada de Skinner. Quando saía do HPS, ia para a UFRGS. Na época da minha graduação o curso de Psicologia funcionava no prédio do antigo Instituto de Filosofia, onde hoje funciona um dos anexos da Reitoria. Durante o verão cursei “Psicologia Experimental” e quando as aulas reiniciaram em março, o professor me convidou para auxiliá-lo junto a meus colegas que, agora, iriam cursar a disciplina. No final do semestre, passei a ser monitora da disciplina, tendo sido monitora até o final de minha graduação. Novamente, estava dando aulas para meus colegas, como já fazia há muitos anos. A retribuição já não era na forma de torta de morangos. Embora o valor da bolsa de monitoria fosse muito baixo, já estava sendo remunerada pelo meu trabalho como professora. Foi assim que aprendi a Psicologia Behaviorista, e as pedagogias nela baseadas, a qual me sinto em condições de criticar, justamente por ter estudado e convivido com ela durante um tempo. Na graduação, como a bibliografia disponível era quase toda em espanhol, aprendi a ler nesse idioma, com muita tranqüilidade.
Duas semanas após minha formatura em psicologia nasceu minha filha Danielle. Tudo que eu havia aprendido transformou-se espantosamente. Mas nem tudo foi fácil! A situação econômica era difícil. Formei-me em dezembro de 1983. Em janeiro nasceu a Dani e em agosto de 1984, juntamente com ela e seu pai, fui para a Bolívia. Ficamos lá durante seis meses, e aprendi a falar o espanhol.
Já era o ano de 1985 e retornei ao Brasil. Fiz seleção para o Mestrado da Faculdade de Educação da UFRGS e fui aprovada. No ano seguinte comecei a trabalhar em uma pré-escola (Berçário, Maternal e Recreação Mimoso). Na mesma época, iniciei atendimento em consultório montado juntamente com outras pessoas. O meu antigo professor de “Psicologia Experimental” estava deixando a ULBRA e precisava de alguém para substituí-lo. Embora não fosse uma disciplina com a qual eu quisesse trabalhar, foi aí que comecei a lecionar, tendo passado, algum tempo depois, a trabalhar com outras disciplinas.
Na época em que ingressei no mestrado, o mesmo era dividido em áreas de concentração e a minha área foi a de “Psicologia Educacional”. Adorava estudar e comparecia às aulas com uma satisfação imensa. Sentia-me crescendo, aprendendo, vivendo. A cada dia descobria novas maneiras de ver o mundo e era hábito ficar lendo até a madrugada. Meu orientador foi Fernando Becker, que, em suas aulas, me fazia pensar por causa do seu jeito construtivista de ir questionando, de não dar as respostas prontas e, ao mesmo tempo, de não ficar esperando indefinidamente, mas, ao contrário, de ir provocando dúvidas, produzindo desequilíbrios. Seu modelo foi fundamental para mim como professora. Foi com ele que retomei leituras de Piaget que fizera na faculdade e fiz muitas outras leituras, principalmente leituras do mundo. A partir disso fui a primeira pessoa a trabalhar com a teoria de Piaget no curso de Psicologia da ULBRA. Senti-me realmente mudando, senti que o curso realmente foi importante para a minha formação: cresci, aprendi, poderia ter aprendido muito mais, mas sem dúvida, ao concluir o curso não era a mesma, tinha descoberto novas lentes para interpretar o mundo. A escolha do tema do trabalho tem a ver com minha história, a partir da qual me questionei a respeito de alguns mecanismos, cognitivos e afetivos, que fazem com que se repitam determinados comportamentos, alguns prejudiciais ao indivíduo, mas que sustentam uma estrutura social organizada, às vezes, de forma injusta. Se fosse hoje, faria algumas coisas diferentes, porém, se sinto isso é porque pude crescer e cresci em função dessa experiência. Precisamos passar – para usar as idéias de Piaget – por determinadas etapas, para chegar a outras; portanto, certos passos são importantes, mesmo que pareçam inadequados ou incompletos após terem sido superados.
Concluí o Mestrado em agosto de 1989 e poucos dias antes prestei concurso para o cargo de Professora Auxiliar na área de Psicologia do Desenvolvimento, no Departamento de Psicologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UFRGS. Em março de 1991 fui chamada, em função da aprovação nesse concurso, para assumir a vaga de professora de Psicologia da Educação, junto ao Departamento de Estudos Básicos da FACED.
Desde lá tenho trabalhado como professora junto ao DEBAS, na FACED. No ano de 1992 parei de trabalhar no curso de graduação em Psicologia da ULBRA. Durante seis anos atuei como professora convidada nos cursos de especialização dessa instituição, sendo que minha primeira experiência nos cursos de especialização foi com a disciplina de Metodologia do Ensino Superior. Trabalhei também em outras instituições, em cursos de especialização, tendo viajado bastante para diversos municípios do Paraná e Santa Catarina, sempre com disciplinas da área de Psicologia da Educação. Em 1998 voltei a dar aulas no ensino de graduação da ULBRA, dando aulas de Psicologia da Educação para os cursos de Pedagogia e demais Licenciaturas, até julho de 2001.
Com o passar do tempo e com a convivência com Fernando cresceram, além do meu amor e meu carinho por ele, também o meu respeito e minha admiração como profissional. Embora pensasse que era hora de iniciar um doutorado, achei que poderia esperar e preferi planejar o nascimento de um filho antes do mesmo. Foi assim que, em 1995, chegou Bruno, meu melhor projeto conjunto com Fernando. Com Bruno pequeno, Danielle e Filipe (meu enteado) entrando na adolescência, era mais prudente adiar o ingresso no doutorado.
No início do ano de 2003 mudei meu regime de trabalho na UFRGS, passando de 20 horas para 40 horas com DE. Desde que comecei a lecionar, em 1986, não parei mais de fazê-lo e essa tem sido uma atividade que me encanta. O único período em que fiquei sem atuar como professora, ao longo desses anos, foi durante o ano de 2004 em que estive de licença para redigir este trabalho. Mesmo assim, tive algumas participações em cursos e palestras. Como já afirmei, adorava brincar sozinha de ser professora. Hoje, continuo brincando, já não mais sozinha, porém brincando. Talvez seja por isso que chame tanto a atenção dos alunos o fato de eu estar quase sempre feliz em aula. Mesmo quando estou cansada, triste, ou quando não estou com vontade de trabalhar, ao entrar na sala de aula o meu humor muda e me esqueço completamente de meus problemas pessoais. Porque estar na sala de aula, para mim, é brincar, embora às vezes seja uma tarefa muito desgastante, mas é uma brincadeira, tal como o brinquedo é descrito por Piaget: como uma atividade muito séria para a criança, muito importante, através da qual organiza o seu mundo. Meu modo de saber se a aula foi produtiva é o meu humor ao sair da mesma. Sinto-me satisfeita em sala de aula, gosto desse trabalho e quero aprender mais para ser melhor professora, sendo que, para atingir esse fim, senti a necessidade de envolver-me em atividade de pesquisa.
Trabalho, no ensino de graduação, com os cursos de Pedagogia e demais Licenciaturas, sempre com as disciplinas de Psicologia da Educação. Tenho atuado em vários cursos de especialização na área de educação, especialmente em disciplinas ligadas ao desenvolvimento cognitivo e afetivo e às teorias de aprendizagem. Além disso, venho participando em cursos de extensão, com disciplinas relacionadas às questões do desenvolvimento psicológico e da aprendizagem.
A idéia do doutorado foi sendo construída ao longo de vários anos. A razão pela qual escolhi o Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRGS é quase uma conseqüência natural do trabalho que venho desenvolvendo. É a área em que gosto de trabalhar e não me imagino estudando em outro lugar e, além da inegável qualidade do curso, não me imaginei, por razões práticas, saindo de Porto Alegre para fazer curso em outro estado ou país. Isso implicaria muitas mudanças concretas na minha vida que não estaria disposta a enfrentar. Isso diz muito a meu respeito como pessoa, na medida em que não tomo decisões abruptas, sem pensar. Também diz respeito ao meu modo de ser no sentido de seguir um caminho natural, de ir construindo as coisas gradativamente, de ir abrindo os espaços pouco a pouco. As minhas decisões nunca são repentinas; ao contrário, são lentas, porém duradouras. E a educação é um caminho que venho trilhando ao longo de toda minha vida. Fazer um doutorado nessa área foi dar continuidade ao que venho realizando há muito tempo. Não é apenas uma opção, mas um caminho natural. Finalmente, no início de 1999, resolvi começar a concretizar esse projeto e inscrevi-me como aluna sem vínculo, junto ao PPGEDU, tendo cursado a disciplina “A escola eletrônica”, com a Profa. Analice Dutra Pillar. Em agosto do mesmo ano, cursei a disciplina intensiva “Los problemas del cambio conceitual em conocimientos sociales” com o Prof. Castorina. No segundo semestre cursei a disciplina “Sujeito e cultura: a questão do objeto e do método de investigação” com a Profa. Margareth Schäffer, minha colega de departamento e de área. No início de 2000 participei de uma oficina de “Jogos Teatrais” com a Profa. Ingrid Koudela. Foram todas, cada uma de uma forma diferente, experiências fantásticas, sendo que sou muito grata por ter tido a oportunidade de ter podido realizá-las. Cada uma mostrou-me aspectos importantes da realidade com a qual precisava deparar-me. Cada uma em seu exato momento. Agradeço a cada um desses professores e ao programa que me aceitou como aluna sem vínculo. Porém, chegara, finalmente, a hora de decidir pela inscrição para a seleção e deveria optar por um orientador e definir o tema da pesquisa. Sinto-me feliz por ter sido aceita como orientanda da Profa. Dra. Analice Dutra Pillar, que é capaz de dizer tudo o que tem que ser dito sem jamais perder a doçura.
Sou imensamente grata à minha orientadora que soube compreender, com toda a paciência que lhe é característica, minhas inquietações e correções de rumo. Fui selecionada para o programa em 2000 e em agosto fiz minha primeira matrícula como aluna regular. Após a seleção redefini meu tema de pesquisa. Optei, finalmente, por investigar a construção do conhecimento no ensino superior, que é aonde venho desenvolvendo minha atividade profissional. Questões que já me acompanhavam, há bastante tempo, puderam, assim, ser pesquisadas. Questões relativas ao âmbito do desenvolvimento cognitivo, mais especificamente do ponto de vista da psicologia genética. Pude retomar leituras de Piaget, bem como realizar novas leituras e, sem dúvida, creio que a melhor maneira para fazer isso é realizando pesquisa, ou seja, estabelecendo relações, tentando responder questões pertinentes. Dessa forma, a opção pela linha de pesquisa O sujeito da educação: conhecimento, linguagem e contextos, da mesma maneira como o próprio Programa, também é sentida como conseqüência natural. Isso implica continuidade, não sem rupturas, de um longo percurso.
As universidades federais passaram por um longo período de greve no ano de 2001. Após isso, o calendário universitário permaneceu irregular durante vários semestres. A defesa de minha proposta de tese ocorreu no mês de novembro de 2002 e, naquele momento, fazia pouco que havia iniciado o semestre letivo 2002/2. Esperei o início do semestre seguinte para que pudesse iniciar a coleta de dados. Nesse ínterim, nasceu minha neta Luísa, o que me envolveu durante algum tempo.
A coleta de dados ocorreu ao longo do primeiro e segundo semestres do ano 2003. O semestre 2003/2 estendeu-se até fevereiro de 2004. Em janeiro de 2004 Fernando sofreu um pequeno acidente e precisei abandonar minha coleta, que já se encontrava no final, no ponto em que estava. Felizmente tudo transcorreu bem com a saúde do Fernando e com meu trabalho.
Apesar das interrupções, por motivos alegres ou tristes, a coleta de dados foi um momento rico, de dúvidas e descobertas. A análise dos dados, por outro lado, produziu angústias e inquietações, que trouxeram resultados inesperados para mim. A realização da pesquisa “Do Egocentrismo à Descentração: a docência no ensino superior” que apresento para avaliação tem, portanto, uma longa trajetória. E é com imensa alegria que eu a entrego para avaliação.
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[1] Este memorial faz parte da tese intitulada “Do Egocentrismo à Descentração: A docência no ensino superior” defendida no ano de 2005, no Programa de Doutorado em Educação, da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e realizada sob a orientação da Prof. Dra. Analice Dutra Pillar.

[2] Professora de Psicologia da Educação da Faculdade de Educação da UFRGS. taniabimarques@bol.com.br

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