Memorial de Alexsandro dos Santos Machado

Algumas de Minhas Memórias Inventadas[1]

Tudo o que não invento é falso
Manoel de Barros

I - Infância

O menino era ligado em despropósitos. Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos. A mãe reparou que o menino gostava mais do vazio do que do cheio. Falava que os vazios são maiores e até infinitos (...) a mãe reparava o menino com ternura. A mãe falou: Meu filho, você vai ser poeta. Você vai carregar água na peneira a vida toda. Você vai encher os vazios com suas peraltagens e algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos.
Manoel de Barros

Todo menino é cheio de despropósitos. Despropósitos são esses vazios cheios de significado que habitam as coisas simples e doidas. Como todo miúdo, eu gostava de encher minha vida de despropósitos. Além disso, quando crianças, temos a saudável pretensão de oferecer aos gestos outro sentido e ao tempo outra textura. Brincamos de ser gente grande com coisas de menino e fazemos as coisas de gente grande uma brincadeira cheia de infinitos.
Quando tomávamos conta do Armazém de “Secos e Molhados” do meu tio, por exemplo, eu e minhas primas transformávamos o boteco num grande Universo. Muitas vezes, transformávamos o boteco num grande supermercado fazendo do mostrador dos cigarros nossa caixa registradora. O baleiro era o centro da alegria. Os cheiros da lingüiça no varal se misturavam aos do fumo em rama dando àquele ambiente ares de paiol. Apesar de ser um universo rigoroso e cheio de responsabilidades, pois envolvia dinheiro (e a brabeza do meu tio!), havia também espaço para subversões, como tomar bitter escondidos na tampinha da garrafa.
De noite, quem assumia de verdade o posto do boteco era o meu tio. Isso porque a clientela deixava de ser senhoras e a piazada e passava a ser de homens que vinham fazer do boteco o centro de seus mundos. Mesmo contra a vontade da minha mãe e da minha avó, meu avô me levava praquele lugar mágico, onde cresci ouvindo histórias do interior carregadas de saudade, de caçadas, de chinaredos. Ali eu aprendi a sentir saudade daquilo que eu não vivera. Mesmo menino, eu sofria junto por não viver mais no campo, embora o campo seguir vivendo em nós, ainda que estivéssemos na periferia de Gravataí.

Muito mais longe que atravessar o oceano e chegar noutro continente era ir de Gravataí para Itati. Aquela viagem de 4 horas num ônibus pinga-pinga era a transposição de um planeta ao outro. Por muito tempo eu quis ser motorista de ônibus como meu tio-avô. Ele dirigia aquele Unesul com um uniforme branco e cumprimentava com solenidade todo ônibus ou caminhão que passava pela estrada. Eu cumprimentava junto e fazia de conta que eu era um segundo cobrador. Ficava de pé lá na frente. Ali eu contemplava o mundo em movimento e a travessia de mundos. Chegar “lá fora” era maravilhoso! Lá tinha rio, tinha roça grande, tinha cavalo e muito mais pessoas que falavam aquela língua estranha que meus avós falavam entre si, mas não ensinaram pra gente. Íamos bastante pra lá, mas muito menos tempo do que eu gostaria.

Ah, não posso me esquecer que ser o único neto homem e filho de mãe solteira tinha suas vantagens. Eu vivia junto com minhas primas e suas amiguinhas. Na minha primeira infância, brinquei muito mais de casinha do que de bola. E, como eu era sempre o único guri das histórias, sempre eu era o papai e o marido. A Shirley, nossa vizinha, filho do meu Dindo Zé, era a menina com a qual eu mais gostava de casar. Acho que a gente até namorava...
Além de querer ser motorista de ônibus eu também queria ser pastor. Ele tocava violão e falava bonito. Eu também tinha um violãozinho que eu tocava ao lado do pastor sempre que eu podia. Eu adorava brincar dentro da Igreja que minha tia-avó era zeladora. Era grande e bonito lá dentro. E tinha muitos bancos que se transformavam em viadutos.

Um dia meu bizavô (Vô Leodorino) ficou doente pra morrer. Ele era diferente do resto do povo lá de Itati. Era bugro, e não alemão. Quando ele decidiu morrer ele se isolou num quarto de casa. Ele queria mesmo era ir morrer sozinho no mato, como fizeram seu pai e o pai de seu pai. Mas a alemoada ficou horrorizada. Então ele se isolou lá dentro mesmo. Não queria ver ninguém. Ele só admitia que uma pessoa levasse água pra ele: eu. Levar água pro meu bisavô que estava indo embora não era uma responsabilidade, era uma obrigação que me tornava querido e importante. Mais do que levar água pro velho eu levava nas minhas mãos e olhar a leveza de guri e a esperança de sua continuidade neste mundo que ele tanto amou. Hoje entendo que o desejo do Velho grudou no meu Espírito como vocação.

II – Segunda Infância

Sempre admirei minha mãe pela força e coragem. Se eu nasci foi porque ela brigou para me ter. Brigou por amor. De cabeça erguida ela enfrentou a tudo e a todos pra me parir. Baita mulher a minha mãe. Quando eu tinha 7 anos ela se casou. Fui no casamento dela e achei tudo muito estranho. Depois de um tempinho, fomos morar em Sapucaia com o novo companheiro dela. Era uma casa que fica no fundo de um pátio. Tinham muitas árvores e um poço (fiquei feliz de ter um poço, que nem lá em Gravataí!) Era estranho essa sensação de minha mãe ter marido e de estar grávida. O que este homem era meu? Seria meu pai? Eu teria então agora pai? Então agora no dia dos pais eu ia ter pra quem entregar o cartão que fazíamos na Escola?

Aí um dia tomei coragem. Ninguém me deu a idéia, fiz sozinho. Era logo depois da Páscoa e eu tinha ganhado chocolate da minha Dinda. Criei coragem e fui até o quarto onde este homem tava sentado sozinho na cama. Com o as minhas mãos cheias de chocolate às minhas costas perguntei: “Tu quer ser meu pai?” Ele não disse nada, só balançou a cabeça afirmativamente. Aí eu dei o chocolate pra ele e sai correndo. Pronto! Foi assim que o Rato virou meu pai e eu virei o filho do Rato.

Minha vida então mudou muito. Ela se encheu de música, de risos, de novas histórias e de futebol. Agora eu jogava futebol todos os dias. Ganhei muitos tios e tias, muitas primas e muitos primos. Um novo universo se abriu pra mim. Aquele meu pai enchia (e até hoje enche!) minha vida com histórias engraçadas e cheias de aventura. Sorriso grande, mulato, carregado de uma ternura de uma paternidade bondosa e sem fim. Ali comecei a aprender que a vida não é só séria, mas pode ser leve e cheia de alegria.

Na Escola eu era muito bom aluno. Tanto na escola quanto nas Escolinhas Dominicais da Igreja. Eu era o orgulho da minha mãe. Ao mesmo tempo, meu novo pai me levava em terreiros de ubanda pra tomar cachaça, em pescaria e em muitos.... muitos campos de futebol. Ah, como eu agradeço essas ensinagens cheias de despropósitos de meu pai. Ele era meu herói em suas muitas histórias (muitas mesmo!) engraçadas e fantásticas.

Quando nasceu meu mano fiquei um pouco triste porque ele não era parecido comigo. Eu queria que aquele piazinho já saísse brincando comigo. Para que, afinal de contas, servem os irmãos senão para brincar? Mas minha mãe me botou pra cuidar dele. E aí começou uma verdadeira amizade, profundo companheirismo, que só viria a melhorar com o tempo (depois que ele parou de quebrar meus carrinhos, instrumentos musicais de brinquedo e colocar meus times de botão no vaso sanitário!)

III – Adolescência

Acho que minha Adolescência começou quando eu tava na oitava série e a Luenza (a guria mais bonita do colégio!) quis me namorar depois que a gente se deu um “beijo técnico” pra um teatro que inventamos pra aula. Dali pra frente, me senti realmente grandão.

Eu continuava gostando de jogar bola, de ir pro colégio e de participar das atividades da Igreja Luterana. No meu Segundo Grau eu ingressei no Curso Técnico em Mecânica de Precisão (CETEMP), em São Leopoldo. Por lá eu permaneci por alguns anos (não me formei!) fazendo amizades profundas, aprendendo muitas coisas.... menos mecânica!

Mas um novo universo para mim se abriu no dia em que uma guria que eu tava a fim me convidou pra participar de um Grupo de Jovens na Escola das Irmãs, em Sapucaia. Fiquei com a guria, namoramos um tempinho, mas depois acabamos. Mas o que por muito e muito tempo não iria acabar era o amor que eu descobrira na Pastoral da Juventude Estudantil.

Nosso grupo era assessorado pelos irmãos lassalistas. Reuníamo-nos semanalmente para refletir, nos divertir, rezar e para debater temas polêmicos (onde geralmente concluíamos que o causador de todos os problemas era o Roberto Marinho!). Também nos encontrávamos com outros grupos semelhantes em Retiros, Assembléias, Encontros, Cursos. Todas essas atividades eram organizadas pelos próprios coordenadores da PJE e seus assessores. Elas eram envoltas numa alegria contagiada de utopia, que invariavelmente nos conduzia a um comprometimento político através da Educação, especialmente junto aos meios mais empobrecidos. Nossas ações eram cheias de idealismo, espiritualidade, boa vontade, e um pouquinho de romantismo também. Eu me envolvi tão profundamente com tudo isso que me tornei Secretário Estadual da PJE e, logo em seguida, Secretário Nacional da PJE.

Entre os meus 16 e 21 anos (1994-1998) eu participei e ajudei a organizar inúmeros cursos, encontros, assembléias, etc. em todo o Brasil e em alguns países da América Latina. Sem dúvida alguma, foi um tempo de muita formação feita na ação, na fé e na utopia, através da Educação. Foi neste período que, através desta Pastoral, conheci muitos dos meus melhores amigos até hoje. E foi em 1996 que eu comecei a namorar com a Letícia, que participava da PJE em Caxias do Sul. Pouco a pouco, também foi aprendendo a mirar o horizonte de maneira amorosa e conjunta.

Foi também com 17 anos (1995) que entrei na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Eu e meu amigo Rafael Arenhaldt éramos os únicos homens de uma turma muito interessante (seguimos companheiros de projetos de pesquisa e de Educação, além de companheiros de Estádio Olímpico!) A FACED me ajudou a compreender também teoricamente o mundo da Educação no qual eu já estava completamente envolto através da PJE e do Movimento Estudantil. Foi um tempo de forte engajamento político e de estudos encharcados de utopia. Paulo Freire virou meu companheiro e seus livros meu alimento.

Ainda em 1995, cheia de gana por iniciar uma prática concreta numa escola, e também por necessidade financeira, comecei a trabalhar no Colégio Santa Inês, em Porto Alegre, onde eu ajudava a assessor o Grupo de Jovens e as Manhãs de Formação. E foi assessorando adolescentes em Educação que eu fui me dando conta que eu já não era (e nem podia ser mais) tão adolescente assim.

IV – Juventude

Depois de conviver e ser companheiro de tantos lassalistas era inevitável que o meu sonho mesmo era trabalhar no La Salle. E, em 1996, o Ir. Olavo Dalvit, que anteriormente fora meu assessor em Sapucaia, me convidou pra trabalhar no Colégio La Salle São João, em Porto Alegre. De fato, o São João foi o local por excelência de minha descoberta enquanto docente. Lá eu trabalhei entre 1996 e 2000 e entre 2003 e 2005. Nesses 8 anos, eu fui Assessor de Grupos de Jovens, Jornadas de Formação, Professor de Ensino Religioso no Ensino Médio, Psicólogo e membro da Equipe Diretiva. As histórias que criamos com os adolescentes e jovens da escola são incontáveis. Com eles, percebi que efetivamente eu não era um professor, mas um ajudador de olhares...

No segundo semestre de 1996 eu ingressei na Psicologia da ULBRA, em Canoas. Minha intenção inicial era fazer Pedagogia na UFRGS e Psicologia na ULBRA ao mesmo tempo. Até consegui por 1 semestre. Porém, eu fui cada vez me empolgando mais com meu trabalho no São João e na PJE... além disso, descobri que eu podia fazer Psicologia no turno da noite, na ULBRA de Gravataí. E assim, pouco a pouco, eu fui largando a FACED/UFRGS para trabalhar durante o dia e estudar somente Psicologia durante a noite.

Durante o Governo Olívio Dutra (1998-2000), fui convidado para organizar e articular um Programa de Formação de Lideranças Juvenis na 3ª Coordenadoria Regional de Educação, de Estrela. Nesse período, realizamos encontros formativos com jovens das 122 escolas da Rede Pública Estadual da Região do Vale do Rio Taquari. De certa forma, eu levei um pouco daquela metodologia encharcada de alegria e utopia da PJE para um projeto público em Educação. E ele foi muito, mas muito fecundo mesmo! Os jovens se organizavam e participavam ativamente dos encontros e do movimento estudantil. Foi um trabalho muito interessante de formação e transformação da Educação através dos estudantes.

No ano de 1999 iniciamos o Projeto Sonho Possível que culminou com a criação da Escola Fundamental La Salle, em Sapucaia do Sul. Inspirados na experiência dos Ciclos de Formação da Prefeitura de Porto Alegre, reunimos um grupo muito interessante de educadores em torno de um sonho muito intenso e profundo de mudar o mundo através da Educação. Para mim, era a oportunidade de trabalhar num projeto idealista de Educação Popular na cidade em que eu vivera minha adolescência. Grandes educadores se encantaram com nossa proposta e vinham de muitas partes nos assessorar. Dentre tantos, destaco a figura de Carlos Rodrigues Brandão e de Adriano Nogueira. Este, tornou-se grande companheiro e amigo pessoal. Realizávamos freqüentemente “Retiros Pedagógicos” a fim de estudarmos e construirmos o Complexo Temático da Escola a partir das falas da comunidade, recolhidas na Pesquisa Sócio-Antropológica. Lindas e ternas experiências de convivências em Educação por lá eu tive. No La Salle Sapucaia eu fui Professor da Turma de Progressão, Orientador Educacional e Membro da Equipe Diretiva. Mas talvez o principal aprendizado que por lá eu tive me fora reservado no fim. Com a saída de alguns religiosos engajados com o projeto, a mantenedora interveio radicalmente no projeto. O Sonho, enquanto aquele originalmente sonhado, acabara. A vida tem mesmo contornos trágicos. Não podemos viver somente de idealismos pueris. Muito menos se queremos efetivar transformações sociais, políticas, culturais... educacionais! Faz-se necessária estratégia e astúcia, mas acima de tudo, ética. Grande lições eu aprendi ali... grandes lições... amadureci um bocado!

Saí então do La Salle Sapucaia no fim de 2002. No começo de 2003 me formei em Psicologia, passei na Seleção do Programa de Pós-Graduação – Mestrado em Educação da Universidade Federal de Santa Maria e casei com a Letícia. Falar da Letícia é difícil. Impossível até... O que dizer da menina pela qual me apaixonei e com a qual cresci junto em amor. Amor, quanto amor.... Esta mulher tornou-se tatuagem no meu sangue, energia de minha vida, eterna presença de minha retina, matéria que compõe a minha alma....

Nesse período, uma série de sentimentos bons se misturava a outros tantos sentimentos amadurecidos e também doloridos. Mas todos muito amorosos. Desanestesiantes, portanto. Eu estava a degustar mais os sabores da vida. Mas também percebendo que para sentir o gosto, invariavelmente, tiramos um pouco da anestesia que nos protege da dor.

Entre 2003 e 2005 aproveitei muito o meu tempo de mestrado. Principalmente no ano de 2004, quando tive bolsa do CNPq e apenas estudei (pela primeira vez na minha vida acadêmica!) Escutando velhos educadores fui aprendendo a escutar mais a mim mesmo. Entre idas e vindas de Santa Maria (porque eu já estava vivendo em Porto Alegre) foi construindo um caminho de estudos e pesquisa muito fecundo. De maneira especial, destaco o companheirismo de meus colegas e amigos Márcio Tascheto e Sílvia Wermuth. Ali aprendi a aprender com o outro (quem foi que disse que a dissertação é uma experiência solitária?) Contar para viver: a Vontade de Potência dos Educadores pela Narração de suas histórias de vida foi minha dissertação, defendida em março de 2005. Ela foi indicada para publicação e virou um livrinho. O principal referencial teórico desse trabalho foi Friedrich Nietzsche, Aristóteles, Walter Benjamin e Paul Ricoeur.

Interlúdio ou o Não Lugar - África

“Hoje eu sei: África rouba-nos o ser.
E nos vaza de maneira inversa: enchendo-nos de alma”
Mia Couto


Depois que conhecemos alguns moçambicanos, que se tornaram nossos amigos através do Projeto Sonho Possível, Letícia e eu sempre alimentamos o sonho de ir viver na África. E durante todo o ano de 2006 vivemos no interior do interior do interior de Moçambique, próximo da fronteira com o Zimbábue, numa localidade chamada Mangunde. Lá éramos professores. Além disso, Letícia fazia de lá algumas reportagens (ela é Jornalista do Zero Hora) e eu trabalhava com Formação de Educadores, especialmente com aqueles que não tinham formação pedagógica nenhuma.

Viver num lugar onde o tempo não existe (pelo menos não mecanizado, como aqui no ocidente) nos remeteu para as diversas texturas de tempo e paisagens, dos inúmeros sons e sabores, cores e culturas dos incontáveis mundos que co-existem dentro disso que chamamos mundo. Conceitos como Educação, Compaixão e Esperança deixaram de serem meramente conceitos. As realidades nos remetem à imanência da vida. Eles precisam ser recriados a partir da seiva daquela terra.

Também fui descobrindo que a observação não acontece somente com o olhar. A boa observação, aquela que nos torna parte da paisagem, que nos faz oscilar no comprimento de onda do imanentemente vivido, se dá com corpo e alma inteiros. É claro que sou planta cujas raízes não estão na África. Meus ciclos de vida são outros. No ano passado, eu não invernei, nem primaverei. Chovi muito, mas depois tudo ficou seco. Seja como for, eu já vinguei também naquele chão. Dele vicei vida e nele depositei de mim. Para ele também quero voltar...

Os ciclos de lá, com certeza, são outros. E na maioria deles, eu não caibo. São antigos, transgeracionais e numinosamente atemporais. Porém, lentamente vou tentando compreender alguns. A vida realmente é frágil. Ela busca sempre delicados e complexos equilíbrios. Parafraseando o evangelista, carregamos tesouros em vasos de barro...
Com a ajuda de meus alunos moçambicanos fui aprimorando minha sensibilidade. Aos poucos, configurou-se a dramática intriga do meu olhar em África: como conciliar o amor incondicional que ofereço com a não aceitação efetiva do Outro, do evidentemente distinto, do eu estrangeiro de mim mesmo? Esta intriga é motor de câmbios de miradas, de perspectivas, de modos de Educar, de viver política, de viver espiritualidade, de sentir compaixão.
Uma das leituras etimológicas que podemos fazer do ato de “com-paixonar-se” poderia ser o sentir intensamente com o Outro, apaixonar-se com o Outro; ou ainda, sentir com o Outro ao ponto de adoecer. Sim, é verdade, nossa compaixão pode adoecer. Em Moçambique, senti-a muitas vezes doente. A compaixão pode ficar doente caso ela não seja constituída de um amor enraizado na terra. Efetivamente, dogmas produzem monstruosidades...
A compaixão transcendente tem como premissa a idéia de que há um ideal a ser seguido, uma meta a cumprir, tal como a redenção da humanidade pela palavra de Deus, ou a extensão da Declaração Universal dos Direitos Humanos para todos os povos do mundo. Ora, existem muitos mundos, recheados de outros valores, radicalmente diferentes dos meus. Em muitos desses, inclusive, não cabe a transcendência. Em meu caso, eu estava num desses mundos... Sendo assim, como viver uma compaixão imanente?
Hoje me perguntam se eu tenho saudade da África. Costumo dizer que tenho mais saudade de mim, do meu eu que segue vivendo por lá, noutro ritmo, com outra cor e sensibilidade. Espero (re) encontrá-lo cada vez mais na África do lado de lá do Atlântico, mas também na África que também agora vive em mim.

V – aos 30....

Daqui a exatamente uma semana farei 30 anos. Bah!... Como diria um amigo, “Tem cada vida que acontece na coisa da gente, né?!” Vivo tempos de metamorfoses. Saborosas e doloridas metamorfoses de um caçador de si. A vontade da paternidade vem tomando corpo em minha alma. A novidade vem se anunciando: novas texturas de tempo, novas responsabilidades, novas Esperanças, novas lutas. Como poderei eu constituir-me num ajudador de olhares ainda mais sensível e cuidadoso?

No ano de 2007 trabalhei como Professor Assistente no Centro Universitário La Salle. Tempo de aprendizagens interessantes. Além de dar aulas no Pós-Graduação, tenho trabalhado nos Setores de Avaliação Institucional, Núcleo de Assessoramento ao Universitário e Pastoral. Ano sabático, de revisão de vida. Neste ano Letícia e eu montamos a Exposição Fotográfica “Paisagens do Invisível: Infância, AIDS e Esperança em Moçambique”, que tem percorrido muitos lugares, suscitando conversar e olhares muito fecundos sobre nossas relações com os mundos que nos cercam, com o próximo e com o longínquo, comigo e com o Outro.

Ingressar no Programa de Pós-Graduação – Doutorado – em Educação na UFRGS é um desejo que vem ao encontro dos movimentos que tenho dado enquanto psicólogo, educador, homem e ser vivo. Tenho dito que mais do que escrever e/ou escolher um Projeto de Pesquisa eu fui escolhido por um. Ele veio com minha vida. Tem grudado em mim e exige providências. Especificamente na linha de pesquisa “Políticas e Gestão de Processos Educacionais” eu possa encontrar escopo para co-produção de pesquisa e reflexões acerca da Gestão do Cuidado.
Como não podia ser diferente, meu anteprojeto vai ao encontro do meu desejo de verificar a Relação entre Educação e Esperança através dos discursos de velhos educadores moçambicanos. O que seria Esperança para um educador “não-formal” numa língua onde não existe o tempo futuro? Que textura de Esperança reside nos gestos educativos dos educadores tradicionais moçambicanos? Quais são os contornos e as formas de Esperança encontradas na história tradicional viva, às margens do Império do Capital.

Para tanto, quero fazer uso de alguns referenciais teóricos tais como Edgar Morin, Michel Maffesoli, Humberto Maturana, Ernst Bloch, Gilles Deleuze e Ampaté Bá. Metodologicamente, quero prosseguir utilizando Histórias Orais e de Vida, fazendo uso de uma Escuta Sensível das histórias de vida de velhos educadores tradicionais moçambicanos. Para tanto, pretendo aprofundar as noções básicas que já possuo na língua do povo Ndau.
De maneira almada e cuidadosa, pretendo realizar pesquisa através da Educação, com a ternura de um menino, com a serenidade de um pai, cheios de muitos despropósitos que só o amor e o vazio conseguem explicar.

[1] Título inspirado na obra “Memórias Inventadas”, de Manoel de Barros. (São Paulo: Planeta, 2003.)

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